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Newton Bignotto - 79 - Outubro de 2001
Voltar aos mitos
Foto do(a) autor(a) Newton Bignotto

Voltar aos mitos

A trajetória de Jean-Pierre Vernant como historiador e político 

Entre Mito e Política
Jean-Pierre Vernant
Tradução: Cristina Murachco
Edusp (Tel. 0/xx/11/3818-4156)
488 págs., R$ 48,00

NEWTON BIGNOTTO

Jean-Pierre Vernant talvez seja o helenista francês mais influente de sua geração. Estudioso perspicaz e original da Grécia, soube como poucos abordar temas e problemas que não faziam parte dos caminhos tradicionais dos outros especialistas do período, ajudando com sua prosa saborosa a iluminar com novas luzes um passado tantas vezes visitado.
"Entre Mito e Política" dá ao leitor brasileiro, em bem cuidada tradução, a oportunidade de conhecer não apenas os grandes temas que interessaram ao intelectual francês, mas também muito de sua trajetória de militante político e de pesquisador. O livro é composto de 58 capítulos nos quais se misturam textos autobiográficos, documentos políticos, entrevistas e escritos variados. O resultado dessa coletânea é um livro de fácil leitura, que cativa pela vivacidade da exposição e pela clareza com que o autor adentra terrenos especializados e problemas de atualidade.
É óbvio que nem sempre os textos são evidentes para os que não conhecem o autor. Esse é notadamente o caso de escritos curtos, produzidos para contextos específicos, como as resenhas do livro "Os Mestres da Verdade na Grécia Arcaica", de Marcel Detienne, ou o retrato do militante Victor Leduc. No entanto, inseridos no corpo do livro, mesmo esses escritos menos expressivos nos ajudam a compreender a trajetória de um intelectual que combinou como poucos sua atividade de pesquisador erudito com sua vida de ativista político.
Como ele mesmo diz : "Quando olho para trás, penso que, de fato, é possível representar o curso de minha vida e meu percurso científico como uma trajetória tensa, por vezes dilacerada, entre dois pólos inimigos, inimigos íntimos, os dois pólos opostos e associados do mito e da política".

Pesquisa e política
O primeiro aspecto que chama a atenção é justamente a maneira como esse autor -dono de uma vasta obra sobre a Grécia antiga, que inclui desde os clássicos "Mito e Pensamento entre os Gregos", "Mito e Sociedade na Grécia Antiga" até um sem número de artigos e ensaios sobre temas tão variados quanto a natureza do corpo dos deuses, as tragédias e os mais diversos mitos- foi capaz de conciliar a entrada no que ele chama de "religião" da pesquisa com uma atuação frequente na cena pública e um engajamento duradouro no Partido Comunista Francês.
Vernant foi desde muito cedo marcado pelo marxismo e não desmentiu jamais essa influência. Tendo rompido com o Partido, o fez, no entanto, "alegremente", pois "estava sendo absolutamente fiel ao que havia de mais profundo, de mais válido também, em meu primeiro engajamento". Sua sensibilidade para a política o conduziu a um envolvimento na Resistência Francesa ao longo dos anos sombrios do governo de Vichy. Das reflexões sobre esse período nasceu um dos mais belos textos do livro -o capítulo dedicado à amizade.
Misturando erudição e uma amadurecida reflexão sobre suas experiências vividas ao lado de muitos outros companheiros de luta, ele nos mostra como a amizade tece um laço fecundo entre o que nos vem do mundo privado da família com o que encontramos no terreno comum da cidade. O amigo é nessa lógica o igual com o qual aprendemos a respeitar nossas diferenças.
As referências frequentes às lutas políticas e a seu percurso de pesquisador só fazem aguçar a curiosidade do leitor quanto à trajetória desse escritor híbrido. Para penetrar um pouco na riqueza dessa longa vida é essencial prestar atenção ao tributo que ele dedica àqueles que chama de seus dois mestres: Ignace Meyerson e Louis Gernet.
Nenhum dos dois teve uma ligação tão íntima com a vida de um partido político quanto a de Vernant, nem foram atraídos pelo marxismo da mesma maneira. No entanto, foi com esses dois intelectuais que ele encontrou um caminho para um helenismo ao mesmo tempo arejado pelas teorias sociais contemporâneas e distante do mofo das pesquisas meramente técnicas, que caracterizou a produção em torno de temas gregos em muitos centros importantes.
Com Meyerson ele aprendeu o gosto pela psicologia histórica e a atração pelos temas religiosos, que o levaria a dedicar-se durante mais de 50 anos à análise de uma gama variada de problemas relacionados com a vida religiosa, em particular, ao estudo dos mitos. Como seu mestre, ele parte do pressuposto de que o homem é um ser inacabado e que por isso deve ser entendido não a partir de estruturas eternas e imutáveis, mas pela maneira como se inscreve na história. No campo metodológico isso significou adotar como máxima a idéia de que "não existe chave universal para entender o humano".

Interdisciplinaridade
Com Gernet, esse filósofo, sociólogo e helenista que começaria tardiamente a ensinar na França, depois de passar a vida lecionando em faculdades na África, Vernant aprenderia o gosto pela interdisciplinaridade e a considerar sempre as realidades coletivas e seu modo de funcionamento como ponto de partida fundamental. Essa postura, entretanto, não deve nunca nos levar a esquecer a importância de se estudarem as atitudes psicológicas dos homens sem as quais, como diz Vernant, "o advento, a marcha e as transformações das instituições seriam ininteligíveis".
"Entre Mito e Política" nos permite visitar muitos dos aspectos do trabalho desse pensador, que constrói sua obra no meio de uma gama variada de influências e que fez do convívio com especialistas das mais variadas áreas a ferramenta de um comparativismo que mudou a feição dos estudos sobre as sociedades antigas. Nesse itinerário, que o levou a se relacionar com muitos dos intelectuais mais expressivos de nossa época, nasceu uma obra que nos interpela em nossas angústias mais contemporâneas, pois, como já fora para seu mestre Gernet, estudar o passado é uma maneira de nos aproximar do presente, sem o que, ele nos diz, não faria sentido realizar esse tipo de estudo.
Por isso, se Vernant encontrou no helenismo um espaço de liberdade, que sua vida de militante marxista parecia lhe negar, ele soube conservar de Marx a inspiração de uma investigação que não se descura dos mais variados fatores que revelam a inscrição concreta dos homens na história e na sua vida material. Longe dos esquemas redutores, ele soube, sobretudo, abrir-se para problemas novos e criar uma obra que é plenamente contemporânea.
Dos muitos capítulos do livro, chama a atenção aqueles dedicados aos mitos. Como já dissemos, desde muito cedo nosso autor se dedicou aos mitos, buscando ao mesmo tempo compreendê-los, e à cultura que nasceu na Grécia no momento em que eles deixaram de ser a força dominante nas formas de compreensão do homem e do mundo que o circundava.
Voltar aos mitos, no entanto, nunca foi apenas voltar ao problema do aparecimento da razão, mas sim voltar às muitas possibilidades de organização do humano e de suas obras. Nesse sentido, explorar as figuras lendárias é para ele uma forma de investigar os homens em seu passado remoto, mas também em sua atualidade. Assim, por exemplo, embora o texto dedicado a Édipo seja muito curto e não revele toda a complexidade dos estudos de Vernant sobre esse personagem, ele tem o mérito de chamar a atenção do leitor para a importância de deixar de lado os estereótipos associados à imagem clássica do usurpador manco do trono paterno. Vale a pena mergulhar, segundo ele, para além do mundo dos trágicos, não apenas na tradição grega que associava a figura de Édipo ao processo de construção da vida política das cidades gregas, mas também no papel que ele veio a desempenhar em nossa época.

Razão e história
Um outro tema fundamental da obra de Vernant é a análise das tragédias. Dos textos do livro dedicados ao assunto, merece destaque aquele no qual ele retorna a Dionísio, em diálogo com Michèle Raoul-Davis e Bernard Sobel. Tendo de início declarado que não tem "nenhum tipo de afinidade com Heidegger" e que não concorda com a dicotomia nietzschiana entre o apolíneo e o dionisíaco, ele se lança numa acurada investigação da figura do deus. Ao oferecer um retrato muito diferente daquele dos autores mencionados, longe de produzir o simples confronto da visão de um especialista com aquela de dois dos pensadores fundamentais da contemporaneidade, o que ele demonstra é a fecundidade do retorno aos antigos para a compreensão dos impasses e das alternativas de nossa época.
Aliás, num momento em que ele se pergunta sobre a relação entre a razão de ontem e a de hoje, afirma que pode não ser inútil voltar à Grécia para entender a racionalidade triunfante de nossas ciências. Isso se dá porque, para ele, não existe racionalidade fora dos processos históricos que a engendram. Sendo assim, o estudo das diferenças que foram se construindo no interior mesmo de uma cultura que se fundou a partir da crença nas possibilidades da razão é uma ferramenta eficaz para os que desejam entender o significado do primado da linguagem matemática nas ciências atuais.
Ao final das mais de 500 páginas do livro, ficamos com a impressão de que o longo passeio pelo pensamento do intérprete privilegiado da Grécia antiga não precisava terminar. O sentimento que fica, no entanto, não é o da incompletude, mas o de que vale a pena retornar ao universo de Vernant.


Newton Bignotto é professor de filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais e autor, entre outros livros, de "O Tirano e a Cidade" (Discurso Editorial) e "Origens do Republicanismo Moderno" (ed. UFMG).

Newton Bignotto é professor do departamento de filosofia da UFMG.
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