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Nicolau Sevcenko - 84 - Abril de 2002
Virado à paulista
Foto do(a) autor(a) Nicolau Sevcenko

Virado à paulista

Socióloga explica o renascimento de São Paulo nos anos 50 

Metrópole e Cultura - São Paulo no Meio do Século 20
Maria Arminda do Nascimento Arruda Edusc (Tel. 0/xx/14/235-7111) 482 págs., R$ 39,00

NICOLAU SEVCENKO 

Em 1954, para celebrar seu quarto centenário, a cidade de São Paulo decidiu organizar nada menos que "o maior certame artístico do mundo". Era o mínimo que se poderia esperar de uma cidade há muito habituada a formular a sua identidade em termos de hipérboles. Exagero por exagero, dessa vez porém a escala e extravagância da festa estavam à altura dos proverbiais idílios de grandeza dos paulistas.
Para o palco do festival foi recuperada uma ampla área pantanosa, nas várzeas alagadiças do rio Pinheiros, transformada num amplo jardim público, o parque Ibirapuera, com cerca de 18 km2, ponteadas de áreas de lazer e prédios com destinação cultural, os mais notáveis desenhados em impecável estilo moderno por Oscar Niemeyer.
O parque se tornou o foco central de uma celebração multiartística, abrangendo mais de cem eventos diferentes, envolvendo as mais importantes celebridades brasileiras e uma elite de renomadas figuras internacionais. Dentre as várias atividades programadas algumas se destacaram pelas sementes férteis que lançaram ou por seu impacto junto do público. A criação do Balé do Quarto Centenário foi um dos marcos do desenvolvimento da arte coreográfica no Brasil. Sua direção foi entregue ao consagrado mestre húngaro Aurel Miloss, ex-diretor dos Balés de Paris, Berlim, Viena e do lendário La Scala de Milão. Para conduzir a Orquestra Sinfônica de São Paulo foram convocados os maestros Paul Hindemith, da Alemanha, Pierre Dervaux, da França, e Nino Stinco, da Itália.

Segundo ato de fundação
Para a 2ª Bienal de Artes Plásticas, concomitante às celebrações, foram reunidas mais de 4.000 obras dos mais conceituados artistas modernos internacionais, cujos trabalhos foram emprestados de 41 países diferentes, envolvendo contribuições de 71 museus e 313 galerias particulares. Dentre as obras da elite artística presente na mostra, sobressaía a emblemática "Guernica", emprestada pelo MoMA de Nova York, junto com mais de 80 outras criações de Picasso.
A esse acervo foram acrescentados trabalhos de cerca de 350 artistas contemporâneos brasileiros. Ao todo, o evento comportava algo como seis quilômetros contínuos de obras de arte de primeira grandeza. O sucesso junto do público foi extraordinário, algo nunca visto nem imaginado. Para a história da cidade, foi como um segundo ato de fundação.
Fosse pela amplitude, sofisticação ou planejamento rigoroso, o festival despertou admiração Brasil afora e não surpreendeu menos aos próprios paulistas. Desde que São Paulo perdera a posição de controle hegemônico do país, que usufruíra durante a Primeira República, em virtude dos impactos sucessivos da crise de 29, do golpe varguista em 30 e sobretudo do fracasso de 32, a impressão que se tinha era a de que entrara também numa condição de ostracismo cultural. Longe ia o fastígio dos anos 20 quando, sob a tutela da elite cafeeira, São Paulo passara a disputar a condição de capital cultural com o Rio de Janeiro. O declínio econômico, o desprestígio político e a tensão social polarizada por um operariado industrial crescente e radicalizado, repuseram a cidade à sombra da capital federal, à margem do farol getulista.
Como então explicar esse fenômeno peculiar, que se passou a denominar de "renascimento paulista"? Para nos ajudar a compreender a volta da fênix, a socióloga Maria Arminda do Nascimento Arruda elaborou uma ampla e meticulosa pesquisa intitulada "Metrópole e Cultura -São Paulo no Meio do Século 20". Ela não pretende -e nem poderia- abranger todas as dimensões em que se desdobram as experiências de inovação da cultura paulista nessa fase prodigiosa. Seleciona alguns focos privilegiados, que lhe permitem uma avaliação do quadro contextual, sondando o conjunto de fatores que estão na base desse processo de mudança ultra-rápida, seus desdobramentos e sua articulação com os reajustamentos periféricos da ordem capitalista após a Segunda Guerra Mundial. É um trabalho que reúne fôlego e sensibilidade.
Eis como a autora analisa o fundamento da nova prosperidade de São Paulo. "A economia paulista ancorava-se em condições extremamente favoráveis para seu desenvolvimento ampliando poderosamente sua capacidade de acumulação por via da integração das atividades cafeeiras, da agricultura variada, da rede introvertida dos transportes, da diversificação do pequeno comércio varejista ao grande atacado, pelo sistema bancário e, sobretudo, pela potencialidade revelada no setor industrial. Nesse processo não interrompido, a década de 50 é herdeira da de 40. (...) No período de 1950 a 58 houve uma intensificação dos investimentos, numa transformação qualitativa que torna a década um dos momentos cruciais para a industrialização de São Paulo. (...) Muda o padrão de industrialização e, portanto, do próprio processo de desenvolvimento do capitalismo entre nós. Abandonamos a fase da industrialização restringida e ingressamos na industrialização pesada."

Grupos da imigração
A transformação econômica é acompanhada pela mudança da paisagem social. No plano das camadas dominantes há um revezamento das elites. Entram em cena grupos provenientes da imigração, substituindo ou interagindo com quadros nativos, fossem eles locais ou membros das plutocracias regionais atraídos pelas oportunidades crescentes do mercado paulista. Investimentos educacionais e em particular no ensino superior, com a criação da Universidade de São Paulo (1934), de cursos técnicos e artísticos ligados à gestão cultural e o estabelecimento da Fundação de Amparo à Pesquisa Científica (1947-60), criaram oportunidades estratégicas para a promoção social das gerações dos filhos dos imigrantes e migrantes, adensando, diversificando e enriquecendo a produção de arte e cultura a partir de contingentes recrutados dentre as classes subalternas.
Essa multiplicação de diferenças na paisagem social se traduziria em uma infinidade de linguagens expressivas, impossibilitando o enquadramento desse contexto em qualquer registro definido ou correntes culturais dominantes. Maria Arminda se mantém prudente contra todas as tentações de redução desse panorama complexo a coordenadas fixas, ao mesmo tempo em que permanece atenta para condicionamentos, fluxos e tendências que assinalavam a peculiaridade da atmosfera cultural paulista.
De um modo ou de outro, os movimentos da imaginação na metrópole efervescente, catalisam constelações de valores que associavam os potenciais de crescimento da cidade com a propaganda da sociedade afluente do pós-guerra e os jogos projetivos típicos de economias dependentes. As palavras de ordem parecem ser técnica, planejamento e consistência sistêmica ou estrutural. A receita, enfim, do que viriam a ser os ingredientes básicos do desenvolvimentismo nas versões internacional ou nativa.
Desse panorama geral de tendências, os focos que Maria Arminda elegeu para a análise incidem sobre o que poderíamos chamar de uma versão negativa (ou pessimista) , representada pela obra do dramaturgo Jorge Andrade, uma variante positiva (ou otimista) encabeçada pelas vanguardas concretas e um caso de tensão extrema, manifestado pela chamada escola paulista de sociologia, a partir de sua figura emblemática, o professor Florestan Fernandes.
Nesse sentido, a reflexão sociológica cumpre sua trajetória analítica, revelando os quadrantes sociais e culturais que caracterizam o momento histórico, mantendo ao mesmo tempo abertos os espaços intermediários em que se estabelecem as negociações assim como as manifestações intercorrentes do diverso, do inédito e do contraditório. Essas indicações revelam como o livro de Maria Arminda não comporta apenas um estudo sociológico e histórico consistente, mas incorpora também uma valiosa reflexão metodológica.
A aplicação desse estilo desenvolto de sociologia cultural à obra de Jorge Andrade permite revelar seu teor complexo, em que a agregação de diferentes gêneros se combina com a perspectiva histórica, o toque autobiográfico e a reflexão crítica sobre o estatuto mesmo da dramaturgia no meio social paulista e brasileiro. O balanço final do teatro de Jorge Andrade destaca portanto a sua estrutura ambivalente. "A concomitância de tempos e espaços, que desemboca no estilhaçamento de ambos, transformam-no num autor identificado com as linguagens modernas; paradoxalmente um herdeiro crítico em relação ao próprio passado, cunhado no movimento de negação da herança, mas ainda pessimista frente às possibilidades do presente." Um sintoma que expõe de modo agudo os impasses de um meio cultural aturdido com os múltiplos rumos e o ritmo intenso das mudanças em que se via mergulhado.

As vanguardas concretistas
Já o projeto das vanguardas concretistas, na poesia e nas artes plásticas, ia no sentido inverso, apostando nos potenciais da técnica e da razão planejadora como as matrizes capazes de redimir as mazelas da história que mantinham o país preso ao destino do subdesenvolvimento. "A relação aí se estabelece com os veículos de comunicação de massa, com a arquitetura, o design, com o "novo mundo das formas", das linguagens que pululam no presente e em processo de constituição no momento, desemboca na identificação do útil como princípio daquele mundo e do futuro. Explicita-se novamente a aderência dos concretos ao universo dos objetos e das chamadas "artes aplicadas", configurando uma outra modalidade de imersão na história que, se de um lado acompanhava as transformações ocorridas nesse campo na cidade de São Paulo, de outro reproduzia realidades inerentes às sociedades capitalistas centrais."
Frente a essas hesitações entre alternativas antagônicas, a figura e a obra paradigmáticas de Florestan Fernandes apontavam como uma espécie de fiel da balança. Um facho de lucidez que, se vislumbrava com clareza as dimensões contraditórias do impasse em que se encontrava a sociedade brasileira, buscava por outro lado um campo discursivo isento de preconceitos e compromissos, capaz de desencadear as opções democráticas e socialistas que as elites não admitiam como parte legítima do jogo político. Uma vez mais elementos biográficos iriam se fundir com processos intensos de transformação social e institucional, na configuração dessa escola paulista de sociologia que, fruto das transformações em curso, gerou a crítica mais contundente aos processos de modernização ultra-rápida em sociedades periféricas.
No movimento conclusivo do livro a análise acompanha a criação e consolidação das instituições que catalisariam os gestos de inovação para os quais o país se abria, entre entusiástico e vacilante no pós-guerra, o Museu de Arte de São Paulo e o Museu de Arte Moderna, em São Paulo, e o Museu de Arte Moderna, do Rio de Janeiro. Novamente aqui o foco do estudo elege um tema privilegiado para vislumbrar as variantes extremas que compunham o quadro de tensões históricas característicos do período. O Masp, sob a tutela de Assis Chateaubriand, representa a cristalização do vínculo entre as estruturas políticas tradicionais, o dinheiro novo e a clássica imagem civilizatória do museu de arte. A atuação de Lina Bo Bardi seria o diferencial coligando os questionamentos da arte moderna com a crise histórica que engolfava o país. O MAM do Rio supria a conexão do Brasil com a nova ordem do mercado mundial de arte, recomposto pela perspectiva novaiorquina do MoMA.
O caso mais notável entretanto é o do MAM encabeçado por Ciccillo Matarazzo. Afora a sua espantosa rede de contatos internacionais, envolvendo Europa, Estados Unidos, América Latina e Japão, Ciccillo prestigiava e se nutria do núcleo de intelectuais radicais da USP assim como do rico legado artístico das associações culturais das colônias imigrantes. Esse nexo surpreendente de fontes tão díspares derivou em uma gama de iniciativas de promoção das artes e incentivo ao debate de idéias que praticamente contagiou todos os campos da cultura. São Paulo, por um momento, se tornou um campo de experimentos em que fervilhava a imaginação radical.
Quando veio a repressão de 64 e sobretudo 68, seus epígonos brutais sabiam onde e quem atacar. O "renascimento paulista" foi sufocado, a fênix foi morta outra vez. O livro preciso de Maria Arminda veio despertar a vida latente por entre as cinzas.


Nicolau Sevcenko é professor de história da cultura na USP e autor, entre outros livros, de "Orfeu Extático na Metrópole" (Cia das Letras).

Nicolau Sevcenko é professor de história na USP.
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