Hannah
Arendt, ainda que não tenha se dedicado a um exame sistemático do tema da
verdade, é constantemente desafiada a pensá-lo quando se vê frente seja aos
ideais tradicionais da verdade na política, seja aos riscos de a mentira total
dominar o campo público. É este debate que Geraldo Pereira mobiliza para
interpretar o pensamento político arendtiano e, penso eu, nossa própria
experiência contemporânea. Entre os riscos de uma Tirania da Verdade e de uma
Mentira Total, aniquiladores de um espaço público, o livro Verdade e
política na obra de Hannah Arendt, resultado da tese de doutoramento do
autor, persegue em seus quatro capítulos uma linha interpretativa que questiona
limites e excessos do agir político.
No decorrer da obra, Pereira traça
um fio argumentativo que leva em consideração a defesa arendtiana da dignidade
da política. Isto significa, em última instância, não fundamentar o mundo a
partir de elementos extrínsecos a ele, mas de compreendê-lo a partir de seus
condicionamentos internos e suas possibilidades plurais. Assim, em vez de uma
preocupação epistemológica com relação à verdade, Arendt a mobiliza em direção
ao seu espaço na política, isto é, relativamente aos fatos e levando em
consideração a contingência da realidade, a pluralidade humana e o caráter de
aparência do mundo. O desafio de Pereira, nesse sentido, é tentar delimitar uma
leitura da verdade que não leve ao perecimento do mundo, mas que o proteja. A
pergunta que move sua pesquisa é: “Como o tema da verdade, na estrutura da
teoria da ação de Hannah Arendt, implicaria a sugestão de elementos indicadores
de um horizonte de limite para a ação?” (PEREIRA 2019, p. 144). Há, aqui, tanto
uma preocupação com o tema da estabilidade do mundo, quanto em relação à
possibilidade da novidade proveniente do agir político da pluralidade humana.
Se Platão se viu impelido à
filosofia política após a condenação e morte de Sócrates na decadente
democracia ateniense, Hannah Arendt se percebeu repelida da filosofia pela
adesão da decadente República de Weimar ao Nazismo, ao passo que a irrupção
para compreender como tudo isso fora possível a conduziu ao campo das reflexões
políticas (id., ibid., p. 32). Sua adesão ao pensamento político não
poderia, todavia, configurar-se pelas mesmas categorias da tradição que ela viu
ruir, as quais, ela julga, tem origem na resposta platônica por meio de uma
verdade capaz de normatizar a vida da pólis.
Se, de um lado, pode parecer
desejável que a verdade fundamente as ações políticas, por outro, o seu excesso
impõe uma norma a ser seguida e que não aceita o debate plural entre os
indivíduos. A “imagem arendtiana de Platão”, como Geraldo Pereira denomina,
simboliza o modelo tradicional pelo qual “o Ocidente concebeu e obscureceu a
política” (Id., ibid., p. 41) ao reduzi-la a mera administração e governo.
No lugar de um espaço em que opiniões sobre o viver junto são apresentadas para
debate e persuasão, tradicionalmente foi posto um fundamento epistemológico-racional
que conduz a uma “tirania da verdade” e “aponta para a postura antipolítica do
filósofo” (id., ibid., p. 49). Segundo Pereira, há aí um caráter
excessivo da verdade no espaço público, pois finda por impossibilitá-lo ao
configurá-lo sob uma estrutura hierarquizada entre governantes que mandam e
governados que obedecem, sem espaço para as opiniões, perspectivas pelas quais
o mundo se nos revela e a partir das quais podemos emitir juízos.
O caráter excessivo da verdade
filosófica, todavia, não deve dar lugar à negação completa da verdade. O evento
totalitário mobiliza o outro extremo do excesso: a da negação completa da
verdade. Aqui, no entanto, não se trata apenas da negação da verdade racional-filosófica,
mas uma transformação da verdade fatual para que o mundo corresponda aos
ditames de uma ideologia desenraizada do mundo. Trata-se, também neste caso, de
um modo paradigmático de dominação dos seres humanos e do mundo, negação da
dignidade da política, aquilo que – na conjunção entre propaganda, mentira
total, ideologia e terror – possibilitou os campos de concentração.
Para além de uma crítica da tradição
filosófico-política e do evento totalitário, Geraldo Pereira aponta para o fato
de que “a verdade fatual, quando ocorre em oposição ao lucro ou satisfação de
um determinado grupo, é recebida com uma hostilidade maior que a antiga
intolerância à verdade racional”, pois “o que está envolvido é uma disputa pela
realidade, ou uma ameaça à sua destruição sistemática” (Id., ibid., p.
175-176). Nestes casos, dizer a verdade é testemunhar o que ocorre e ocorreu no
mundo e, nesse sentido, é se posicionar criticamente e, no limite, agir
politicamente. Na tese que o autor persegue, há certa “‘atuação’ política da
verdade dos fatos” enquanto resistência (id., ibid., p. 151-152).
Tanto a verdade quanto a mentira, ao
se pretenderem totais, acarretam o fim do mundo. A saída, ensaia Pereira, é por
uma reavaliação da verdade fatual. A contingência é uma das marcas do mundo,
bem como o é a pluralidade, descrita fenomenologicamente por Arendt como a
condição da política. Deste modo, a verdade fatual sempre surge como testemunho
dos indivíduos, o que lhe confere certa fragilidade na tentativa de manter uma
estabilidade e uma memória do mundo. A verdade dos fatos é tão frágil quanto as
opiniões, o que não permite que as igualemos, mas, sim, que a coloquemos em um
nível de horizontalidade e importância para que haja um mundo minimamente
estável para possibilitar a novidade que o agir humano persegue.
Trata-se de não sucumbir aos
excessos da verdade e da mentira, mas, sobretudo, cabe perceber que, nas
palavras do autor, “o imodificável da verdade dos fatos parece figurar como uma
oportunidade e ocasião para a ‘atuação política’ de um tipo de verdade, que
parece ser recepcionada numa ontologia da aparência e da pluralidade”, isto é,
a verdade dos fatos. Assim, “a resistência da verdade dos fatos é política na
medida em que (...) preserva as condições da ação” (Id., ibid., p.
166-167). Na falta de salvaguardas absolutas, testemunhar os eventos é uma
forma de resistir à dominação e tornar possível as opiniões e ações públicas,
de modo que a pluralidade, como condição da política, e a liberdade, como seu
sentido, possam existir.
Geraldo Pereira, portanto, contribui
com uma obra de vasta pesquisa bibliográfica e argumentos muito bem encadeados;
elenca problemas teórico e reais e, como deve ser uma obra de filosofia,
certamente nos faz pensar. O livro se destina, de um lado, à comunidade
arendtiana especializada e aos que buscam uma leitura complementar para
interpretar o pensamento de Arendt, mas, para além do interesse acadêmico,
trata-se de uma obra que propicia uma bela reflexão sobre nossa situação
política contemporânea.
LUCAS
BARRETO DIAS é professor de filosofia do IFCE