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André Duarte - 17 - Agosto de 1996
Tiranias da intimidade
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Tiranias da intimidade

 

ANDRÉ DUARTE

Eram três as fotografias que habitavam a escrivaninha de Hannah Arendt: uma de sua mãe, Marta Arendt, outra de seu marido, Heinrich Blcher, um alemão autodidata e ex-combatente do movimento operário espartaquista, e uma terceira, de Martin Heidegger, considerado por ela o maior filósofo do século 20. O conjunto é certamente formidável em vários sentidos e diz muito a respeito da própria Arendt em sua combinação peculiar do respeito por suas raízes judaicas, do interesse genuíno pela política em suas manifestações democráticas e participativas e do amor incondicional pelos caminhos incertos do pensamento filosófico.
Certamente, a última foto (ou seria ela talvez a primeira?) é aquela que desperta maior curiosidade. A presença e a proximidade de Heidegger em relação a Arendt chamam a atenção, pois trazem à tona inúmeras questões nas quais vida e obra, política e filosofia, respeito, perplexidade, distância crítica e ironia derrisória misturam-se em proporções difíceis de se calcularem. Tal cálculo torna-se ainda mais problemático, para não dizer impossível, se este complexo de fatores encontra como contrapeso o descuido estabanado do sensacionalismo folhetinesco, ao qual mesmo as melhores histórias podem prestar-se. Infelizmente, isto é o que acontece nas poucas páginas de "Hannah Arendt, Martin Heidegger", o livro de Elzbieta Ettinger que vem provocando uma pequena onda de escândalos e controvérsias nos países em que foi publicado. Nele, Ettinger acompanha o curso da relação privada entre ambos desde seu primeiro encontro, em 1924, até que falecessem, Arendt em dezembro de 1975, Heidegger em maio do ano seguinte.
Eles se conheceram na Universidade de Marburg, onde Heidegger lecionava e preparava "O Ser e Tempo", obra que o lançaria imediatamente para o centro do pensamento filosófico ocidental. Mesmo antes de sua publicação, em 1927, Heidegger despontava já como o "rei secreto" no âmbito do pensamento, espraiando entre jovens universitários o "rumor" de que era possível "aprender a pensar", como Arendt afirmaria em um artigo publicado no Brasil na coletânea "Homens em Tempos Sombrios". Na época do encontro, ele contava 35 anos, era casado e pai de dois filhos; ela, apenas 18, sendo entretanto dotada de uma inteligência e sagacidade incomuns, temperadas pela beleza enigmática e cosmopolita.
Desde a publicação da biografia de Arendt por Elisabeth Young-Bruehl ("For Love of the World"), em 1982, já não era mais novidade o fato de que os laços entre ambos haviam sido muito mais intensos do que os da mera relação professor-aluno. Heidegger encantou-se pela jovem estudante que, por sua vez, correspondeu apaixonadamente aos apelos do "pequeno mágico de Messkirch", como ele era conhecido, em alusão à sua cidade natal e aos poderes sedutores de sua mente. Ambos mantiveram um tempestuoso caso de amor secreto, que perduraria em encontros esporádicos até o final dos anos 20 e que se dissolveria, dado que Heidegger jamais cogitou abandonar sua família.
A ruptura decisiva ocorreria, entretanto, com sua adesão formal ao nazismo em 1933, tornando-se o reitor da Universidade de Freiburg, cargo do qual se demitiria no ano seguinte. Enquanto Heidegger oferecia suas idéias à legitimação acadêmica do movimento nazista, Arendt engajou-se no movimento sionista e foi presa em uma de suas atividades "subversivas", tendo de deixar o país às pressas e sem documentos. O contato entre ambos apenas se restabeleceria em 1950, por iniciativa de Arendt, e é a partir daqui que a autora revela seu verdadeiro interesse na história. Ettinger foi a primeira pesquisadora a ter acesso à correspondência entre Arendt e Heidegger, antes vedada à consulta pública. O resultado foi a produção de uma peça que poucos estudiosos da obra arendtiana parecem dispostos a comprar tal qual ela é anunciada e vendida, dado o caráter fortemente enviesado que comanda a sua interpretação das cartas que eles trocaram.
Em recente simpósio realizado em Harvard, para o qual Ettinger, que leciona no MIT, foi convidada mas não apareceu, não lhe faltaram críticas ferozes. O mínimo que se pode dizer é que ela não contextualiza suficientemente as passagens citadas ou parafraseadas (a paráfrase foi a condição imposta para o acesso às cartas escritas por Heidegger), tendendo a selecioná-las de modo a simplesmente justificar seu próprio ponto de vista sobre o reatamento da "amizade" entre ambos.
Sua tese, afirmada e repetida à exaustão, é a de que Arendt perdoou levianamente o engajamento nazista de Heidegger porque continuava sob o impacto do charme (intelectual) do filósofo. Este, por sua vez, como um bom príncipe maquiavélico, teria sabido como valer-se do romantismo ingênuo e infantil de Arendt, transformando-a em sua embaixatriz aos olhos do Ocidente. Quem melhor poderia desempenhar este papel do que uma judia cuja respeitabilidade intelectual fora construída com análises críticas e contundentes do totalitarismo?
Esta é a tônica do relato que Ettinger oferece a seus leitores: a redução de uma relação afetiva densa e matizada aos pólos complementares da subserviência incondicional e da manipulação traiçoeira. Para Ettinger, o grande escândalo é o de que Arendt, uma autora comprometida publicamente em desvendar a lógica do totalitarismo, teria sido incapaz de vislumbrar a evidente figuração do mal bem ali, à sua frente, na filosofia e na pessoa de Heidegger. Também por razões que a própria razão desconhece, Arendt teria ainda se dedicado a difundir o pensamento heideggeriano nos Estados Unidos, além de defendê-lo contra seu próprio passado político.
A conclusão implícita da autora é a de que deveríamos reler e reinterpretar o pensamento de Arendt à luz deste seu suposto ponto cego, tese que implica abolir qualquer espaço de autonomia entre a vida e a obra. Trata-se evidentemente de uma estratégia deficiente, típica daqueles que não têm competência para lidar com a complexidade dos problemas que a relação teórica entre Arendt e Heidegger suscita. Esta, por outro lado, vem sendo objeto de análises rigorosas por diversos acadêmicos interessados na discussão das continuidades e descontinuidades teóricas entre as obras de Arendt e Heidegger, tema que gerou até agora ao menos dois livros e inúmeros artigos (1).
No final das contas, as conclusões avançadas por Ettinger têm o mesmo efeito devastador que o da colocação de uma moldura de acrílico vermelho brilhante em um quadro de Rembrandt: perde-se a pintura em seu jogo de luz e sombras em prol de um brilho escandaloso, opressor. Um aspecto positivo: por causa de sua repercussão, acaba de ser permitida a edição e publicação integral da correspondência entre os dois personagens. Já era tempo.

Nota:
1. Veja-se: Taminiaux, Jacques, "La Fille de Thrace et le Penseur Professionnel", Paris, Payot, 1992; Villa, Dana, "Arendt and Heidegger, the Fate of the Political", Princeton University Press, 1996; com a publicação de "The Reluctant Modernism of Hannah Arendt", esperada ainda para este ano (Sage Publications), Seyla Benhabib acrescentará mais um capítulo a essa história. 

André Duarte é professor de filosofia na Universidade Federal do Paraná.
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