A obra é fruto
de uma preocupação política do autor com o fato de o século passado ter se
caracterizado, em boa medida, por abrigar e promover regimes políticos
ditatoriais, autoritários e totalitários em larga escala e em países como
Alemanha, Rússia, China, Cuba, Portugal, Espanha, muitos da América Latina e
Brasil (sem falar das teocracias islâmicas atuais). Em todos eles predominou
uma ideologia holista (o todo é mais real e legítimo do que as partes)
antiliberal contrária à democracia representativa que se exprimiu – e tem se
exprimido ainda - tanto sob a forma do fascismo quanto sob a do marxismo. São
ideologias que não reconhecem instâncias autônomas entre o Estado – onipotente
– e o indivíduo por ele oprimido.
Já o liberalismo,
segundo o autor, “se caracteriza pelo reconhecimento do público e do privado
como esferas distintas e igualmente legítimas – incluído neste postulado o
setor econômico privado e toda a variedade de associações subsumida na noção de
pluralismo”.
A obra associa a este
tema o do intelectual, haja vista que intelectuais influenciam fortemente a
evolução dos sistemas políticos num ou noutro sentido.
O autor distingue 3
tipos de intelectuais que denomina metaforicamente de: tribunos - os que
defendem pessoas, instituições, coletividades em situações concretas: o ex.
clássico é o de Dreyfus no sec. 19 francês, defendido pelo escritor Émile Zola
no artigo “J’accuse”); profetas – os homens das utopias, da conquista do céu na
terra onde construirá um mundo novo que assegura livre de
opressores e de oprimidos; e sacerdotes – sentinelas encarregados da triagem
das ideias (e das práticas) que como tal separa e distingue as boas das más,
sendo que lhes cabe enunciar tanto os princípios gerais que devem ser adotados
pelos cidadãos e governos quanto a “linha justa” a ser seguida por todos e pelo
partido no poder.
O autor nota de modo pertinente que muitos estudos têm se referido à
“morte” do intelectual (Julien Benda, Raymond Aron). O fato notável é que
certos “profetas” e “sacerdotes” provenientes sobretudo do marxismo anunciaram
no século 20 a morte do tribuno, do defensor dos direitos humanos.
Alegava-se que com o próximo advento da sociedade sem classes e da sociedade
justa ele, juntamente com sua parafernália burguesa dos direitos humanos
naturais, se tornaria ocioso. Mas, como diz o autor, “a ideia de um
feixe de direitos inerentes a todo ser humano não desapareceu; independentemente
da formulação técnico-filosófica que se lhe queira dar, a comunidade
internacional a conservou como uma parte fundamental de sua evolving
moral consciousness; e foi mais longe ao tipificá-la juridicamente nos
acordos de Helsinki de 1973.
Além desta tipologia
o autor estrutura sua obra recorrendo a 3 conjunturas que são, em geral, o
foco dos intelectuais: a construção do Estado, a industrialização e a
tematização da democracia. Munido destes parâmetros o autor estudará as
questões relevantes do liberalismo e do antiliberalismo em 4 países: Rússia,
Alemanha, EUA, e Brasil, procurando assim contrastar países que primaram pelo
antiliberalismo, como os 2 primeiros, com o liberal norte americano e ensejando
assim a possibilidade de melhor abordar seu tema de estudo no Brasil.
Por fim, e já no âmbito do Brasil, procede a um sintético mas rigoroso
estudo da história do nosso país no século passado, destacando o pensamento e
obra dos seguintes intelectuais: Oliveira Vianna, Celso Furtado, Mangabeira
Unger e Sérgio B. de Holanda, entre tantos outros.
A obra se divide em 9
capítulos (os 3 primeiros dedicados a esclarecimentos conceituais, os 4
seguintes aos 4 países mencionados e os 2 últimos aos intelectuais brasileiros
de maior projeção no século passado) e um prólogo.
Dilemas políticos
Como se vê, trata-se
de uma “exploração” bastante ambiciosa, escorada em uma vasta e consistente
bibliografia, configurando-se como uma obra que visa chamar a atenção do
público brasileiro para os dilemas políticos mais agudos que se perfilam no dia
a dia do cidadão. Trata-se de temas que, queiramos ou não, conheçamo-los ou
não, têm o poder de influenciar nosso modo de vida frequentemente de modo
decisivo (medidas governamentais antiliberais podem por exemplo sequestrar
nossas poupanças). Assim, esta é uma obra que contribui notavelmente para que
possamos todos refletir e aprender sobre o regime que mais nos convém e,
consequentemente, reunir as melhores condições para a escolha democrática de
governantes que melhor nos represente.
O cap. 2 da obra destaca-se
por trazer para o primeiro plano um paradoxo. Durante boa parte do século
passado representantes do marxismo martelaram a tecla de que os direitos
humanos do liberalismo seriam uma pobre metafísica quando confrontado com
a a sociedade socialista que vinha sendo construída no leste europeu, na China
e em Cuba. Surpresa: no pós-guerra a violenta repressão aos intelectuais
soviéticos e ao povo em geral repôs o tema dos direitos individuais na ordem do
dia. E não apenas na URSS, mas um pouco por toda parte, em Cuba e no Brasil
(aqui o autor recorda a obra de Solzhenitsyn, a morte por greve de fome do
dissidente cubano Orlando Zapata Tamayo pouco antes da visita de um silencioso
e subserviente presidente Lula a Cuba). O capítulo por si só vale a obra pelo
faro agudo com que o autor capta todo tipo de desmandos e por sua
agilidade (lembra a luta da tribuna Yoani Sánchez e sobretudo que a revista do
Instituto de Estudos Avançados da USP ao tratar de Cuba recorreu
majoritariamente à intelligentsia oficial de Havana deixando a
Frei Betto a tarefa de assegurar aos leitores que (segurem-se em suas
cadeiras!) “em 52 anos de Revolução não se conhece em Cuba nem um único caso de
pessoas desaparecidas; assassinatos extrajudiciais; sequestros de opositores
políticos; torturas e prisões ilegais”!
Nos EUA não se
esquece dos tribunos Bob Woodward e de Carl Berstein e, no Brasil recente, de
Fernando Gabeira. Mostra também como os profetas, seguidores românticos de
Rousseau, distribuem-se por toda parte movidos por aquilo que um autor designou
como “the longing for total revolution” (B.Yack).
Sacerdotes
Quanto aos sacerdotes
nota o autor que as sociedades liberais possuem sacerdócio, mas não sacerdotes,
pois os vocacionados à figura de sacerdote são integrados nos debates em que se
enfrentam os vários partidos políticos. O sacerdote é portanto figura
característica dos partidos totalitários, onde se encarregam de ditar a “linha
Justa” a ser seguida pelos camaradas (o caso talvez mais notável foi o de Louis
Althusser que na França dos anos 60 empenhou-se loucamente em
“imunizar o PC francês contra um vírus idealista”. Recorda bem a propósito que
o acerto de contas com os heréticos não se limitava à teoria, como se soube
quando do assassinato de Trotsky no México a mando de Stalin em 1940. O mesmo
se verificava nos países da cortina de ferro com Mlovan Djilas detido por 10
anos por criticar a intervenção soviética na Hungria em 1956. Ou com Alexandre
Dubcek, líder da primavera de Praga em 1968, expulso do partido em 1970, bem como
com os filósofos Roger Garaudy na França e Georgy Lukács na Hungria.
Já nos domínios do nazifascismo a grande estrela sacerdotal foi o
filósofo alemão Martin Heidegger que em 1933 saudou o führer Adolph Hitler em
seu discurso de reitorado pondo sua filosofia a serviço dele.
Ao final do capítulo o autor chama a atenção para o fenômeno da atual
politização universitária que tem suas raízes longínquas na representação da
Universidade como “território livre” feita por estudantes argentinos durante a
reforma universitária de Córdoba em 1918. No Brasil pós transição e com o fim
do comunismo na URSS, a esquerda adotaria a ideia de um “socialismo em
construção” em que se associavam a Igreja pós Medellin, sindicatos e seguidores
de Gramsci. Como exemplo do fenômeno em questão cita a recusa da Faculdade de
Direito do Largo de S. Francisco “presumivelmente também para
combater o capitalismo, a postar uma placa de agradecimento a família que
financiou a construção de um auditório modernos nas dependências”.
Depois de recordar no cap. 3 o nascimento do termo Intelligentsia
(juristas, médicos, historiadores, literatos, clérigos, engenheiros e
cientistas com formação humanista) na Rússia tzarista (inclusive a importância
da participação das mulheres, ainda que como ouvintes na Universidade de S.
Petersburgo fundada em 1753), entramos no exame do antiliberalismo na Rússia,
pátria da Revolução Comunista no séc 20, no Cap. 4. Assistimos ali ao fracasso
das tentativas de criação de uma monarquia constitucional, bem como da
afirmação do liberalismo no século 19 simultaneamente ao descontrole da
violência. Já nas primeiras décadas do século 20 inicia-se um processo de
industrialização e o surgimento do operariado e de estratos médios que alteram
a estrutura social ensejando novos ingredientes à fermentação revolucionária
que se ensaiava e que explode com Lênin em 1917. Até então muitos intelectuais
destacavam-se como tribunos em atitudes semelhantes às de seus confrades na
Europa Ocidental. Mas com o advento ao poder de Stalin “a ideia de engajamento
na defesa de valores universalizáveis desaparece completamente e com ela a
figura do intelectual disposto a defender os direitos da pessoa humana como
tal, sem consideração de nacionalidade, de raça ou de religião”. Em seu lugar
surgiria o “oficialismo intelectual” sob o jugo do partido único que tudo
controla a poder de cacete e de cenoura. Desaparece o pouco da vida pluralista
que ainda vicejava na Rússia. O caminho que resta aos intelectuais é o do
exílio (Stravinsky, Berdiaev, Gorki...)
O intelectual dissidente
No pós-guerra veremos surgir a figura notável do intelectual dissidente,
uma nova forma de tribuno: homens de rara coragem, que combatem o clima de
terror instalado por Stalin, como Roy Medvedev, Soljenitsin e o físico A.
Sakharov. O autor procura indicar as diferenças entre o terror de Hitler, (sem
mediações: “solução final”) e o de Stalin, que se valia de falsos procedimentos
jurídicos como as confissões.
Ao final do capítulo vemos a frustrada tentativa de reforma do
socialismo (segundo o filósofo e historiador L.Kolakowski “reformar o
socialismo é como fritar bolinhas de neve”.) e o consequente fim da URSS sob Gorbachev (não
sem lembrar a catástrofe de Chernobyl em 1986.)
O cap. 5 nos remete à Alemanha e seria impróprio tentarmos aqui
resumir toda a riqueza das pesquisas realizadas pelo autor. Lembremos apenas
que o capítulo. se inicia caracterizando aquele país como “um
caso quimicamente puro de antiliberalismo.” Destaque para duas formas de
antiliberalismo (sem contar o marxismo, é claro): o fenômeno do “volkisch”,
ideologia nacionalista exaltada, xenófoba e antissemita, propensa a violência e
à revolução – cujo maior representante foi o filósofo J.G.Fichte (1762-1814 –
de quem o autor reproduz um texto impagável em que o gênio alemão supera de
longe as grandes conquistas da Antiguidade); e a ideologia conservadora e
glorificadora de um Estado forte, estável e administrador da ordem e da
hierarquia.
Registremos apenas o saboroso (e não menos trágico) episódio da revolta
estudantil de 1968, no auge da Primavera de Praga, quando o jovem líder alemão
Ruddy Duchske insistindo em apontar a democracia pluralista como “o verdadeiro
inimigo” causou espanto estre os estudantes tchecos. Para eles, ela era o
objetivo. (Ruddy o mais hostil esquerdista às instituições democráticas seria
assassinado a tiros por um simpatizante neonazista no dia 11 de abril de 1968).
Pais fundadores
Os EUA são objeto do cap. 5 e temos que fazer valer aqui a mesma
observação que fizemos no caso do cap. 4: seria vão tentar resumir um estudo
tão rico. Aqui a linha adotada pelo estudo é a de conferir um justo destaque
não apenas às proezas tecnológicas da civilização americana e sua notável
industrialização, mas às suas conquistas nas humanidades, universidades e nas
artes e, claro, à implantação do regime liberal-democrático cujas bases foram
lançadas no século 18 pelos founding fathers.
O estudo mostra a importância dada pelos norte-americanos, desde o século
18 à formação intelectual, desde os primeiros improvisados advogados e a
constituição das faculdades de direito até os Colleges (voltados para as artes
mecânicas e a agricultura). Ao final do século 19 o país passa por um enorme
surto de industrialização que produzirá a grande riqueza que por sua vez
impulsionará a cultura. Importa notar que nos EUA o partido comunista (fundado
em 1923) nunca conseguiu se firmar nacionalmente, nem entre os intelectuais
(como, lembra o autor, já previra Engels em 1893). Nota-se também que, a partir
dos anos 1920, a Intelligentsiaali depois de uma inclinação a
esquerda soube se manter crítica com relação à Revolução soviética (soube
avaliar os julgamentos de Moscou dos anos 30, o pacto nazi-soviético e o crime
contra Trotsky). O capítulo não esquece de abordar os graves problemas raciais
do país e tampouco fenômenos como o Macartismo. Em resumo, conclui sua
percepção do país enfatizando três conjuntos de causas positivas: o
caráter liberal da cultura e do sistema político; a alta qualificação
intelectual desenvolvida tanto nas Universidades quanto nos Think Tanks (qualificação
esta promovida também pela enriquecedora imigração de europeus em busca de
liberdade); e o fabuloso enriquecimento promovido pelo surto industrial
iniciados nas últimas décadas do século 19.
Liberais e antiliberais no Brasil
Como disse, os últimos capítulos, 7,8 e 9, são reservados ao exame da
questão liberalismo/antiliberalismo no Brasil, exame este que, como foi dito,
percorre as três conjunturas críticas: a construção do Estado, da
proclamação da República até a 2ª guerra mundial; a “industrialização”,
coincidindo com a reimplantação do regime liberal-democrático, do segundo
pós-guerra até 1964; e a tematização da democracia, de 1964 a 1988.
O tom geral destes capítulos dedicados ao Brasil é de um certo otimismo,
ao menos quanto ao fato de que, como diz o A., “a história intelectual
brasileira é mais liberal do que a Rússia e a Alemanha, e menos do que dos EUA”.
O autor mostra como a Constituição liberal de 1891 (de Prudente de Morais
e Rui Barbosa, inspirada nas constituições norte-americana e argentina), e que
manteve o espírito liberal da Carta monárquica de 1824, passou a ser atacada já
nas primeiras décadas do século 20. Alegava-se que ela era mera cópia de
constituições estrangeiras e como tal ignorante de nossa realidade. Tal crítica
se espelhava na preferência que a sociologia nascente daria a autores
autoritários e mesmo racistas como Oliveira Vianna (objeto de estudo do Cap. 8)
em detrimento de liberais como Rui Barbosa, Assis Brasil e Afonso Arinos.
A partir de 1945, o país passa a lidar com a tensão gerada pela disputa
ideológica entre a facção Nacional-desenvolvimentista e a UDN, nenhum deles de
inclinação claramente liberal. Momento em que o país sofre as consequências da
guerra fria, da revolução cubana e do getulismo (que, na expressão feliz do
autor, pretendia instaurar um modelo de governo baseado num sistema político
sem política, conforme os anseios de Augusto Comte). O período posterior ao
suicídio de Vargas (1954) assistirá a irrupção de novas polarizações:
esquerda/direita, progressistas/reacionários, nacionalistas/entreguistas etc.
Inicia-se ao mesmo tempo o “pathos” do golpismo, da radicalização da esquerda
que culminará no golpe de 64.
Aqui o autor estuda os grandes representantes da ideologia
Nacional-desenvolvimentista: Celso Furtado, Hélio Jaguaribe, o ISEB (Instituto
Superior de Estudos Brasileiros) e a Revista Civilização Brasileira de Ênio
Silveira, nacionalista de esquerda. Vistos em conjunto todos são, em maior ou
menor grau, fatores de promoção do antiliberalismo, seja pelo dogmatismo
dualista de Furtado, ou pela visão Bismarkista do capitalismo de
Jaguaribe, ainda pela posição platônico-comteana do “sacerdote”
isebiano Álvaro Vieira Pinto ou, enfim, pelo esquerdismo dogmático presente nos
colaboradores da Revista Civilização Brasileira.
O exame do 3º período, de 64 aos dias de hoje, procura, de um modo
aparentemente paradoxal, valorizar o lado positivo presente nos anos de chumbo
da ditadura militar. O autor destaca o fato de que a ditadura não alienou
completamente as estruturas institucionais do regime político anterior. Assim,
os militares souberam manter a legitimidade das consultas eleitorais como
válvula de escape do novo regime. O mesmo se deu com a criação dos partidos
Arena e MDB. Juam Linz referiu-se ao regime militar designando-o não como
autoritário mas como impositor de uma “situação autoritária”.
Quanto ao antiliberalismo, digno de nota, é claro, foi o nascimento do
PT na passagem dos anos 70 para os 80, fruto de egressos da luta armada, de
parte do clero, de estudantes e intelectuais que se propunha a realizar um
socialismo “diferente” pautado na pureza ética. Bolivar o caracteriza como
promotor de uma “concepção da história como um perpétuo combate do
“povo” (por definição bom e oprimido) contra as “elites” (por definição más e
gananciosas)”, o todo envolto num dualismo meio ético meio
religioso temperado pelas ideias do teórico marxista italiano Antonio Gramsci (
a mãe de todas as batalhas ganha-se no campo da cultura, não no das armas).
Observa aqui o A. a ambiguidade do PT com relação à democracia formal (um pé
dentro e um pé fora dela).
Os 2 últimos capítulos são dedicados a dois grandes intelectuais, o
“sacerdote” Oliveira Vianna e o antissacerdote, mais liberal e cético Sergio
Buarque de Holanda, o mais elegante ensaísta brasileiro.
Oliveira Vianna, morto em 1951, teve enorme influência entre nós, tendo
sido designado como ideólogo do Estado novo. Foi um
sociólogo de formação simpático ao positivismo que se opôs a Rui Barbosa e aos
liberais tidos por ele como “idealistas utópicos” bem como ao pensamento
jurídico liberal. Nosso autor nota o quanto a crítica tem sido indulgente com
as teses mais rebarbativas de Vianna, como por exemplo seu viés racista (que
ela procura atenuar como uma doutrina “apenas” eugênica), alguns pondo-o na
conta de progressista (em sua obra Populações Meridionais onde
privilegia o papel da raça branca “ariana” ele se refere aos demais como “turba
informe e pululante de mestiços inferiores...”). Assim, Wanderley
Guilherme dos Santos procura atenuar seu autoritarismo que seria apenas
“instrumental”, isto é, uma etapa necessária para a instauração da sociedade
liberal. Por sua posição avessa ao capitalismo Vianna foi adotado pelos
Integralistas.
Liberalismo cético
Nada disso encontramos em Sergio Buarque de Holanda, o autor do século
passado que, por seu liberalismo cético, se situa entre os que mais se
aproximam do ideal de Lamounier. Ele trata do autor de Raízes do
Brasilnum capítulo que intitula de Sergio Buarque e os grilhões do
passado. Estes grilhões seriam o clientelismo, o nepotismo, o filhotismo e
o bacharelismo que Sergio em sua visão articula com a sua célebre e mal
compreendida teoria do homem cordial brasileiro. Pois nossa cordialidade não
comporta, como frequentemente se pensa, traços dominantes de bondade ou
pacifismo. Sergio a toma como modo de ser característico que privilegia
vínculos familiares e afetivos em detrimento da lealdade ao Estado como esfera
pública impessoal, constituindo assim obstáculo à configuração da sociedade e
do Estado como esferas independentes, e propiciando surtos favorecimento
expressos no patrimonialismo e nas várias modalidades de corrupção. Holanda
partilha da visão Weberiana (Max Weber, 1864-1920) de um Estado concebido com
as características modernas de racionalização e de secularização, avessas a
fenômenos como o caudilhismo – o que lhe permitiu tomar distância das correntes
integralista e comunista presentes em sua época. Mostra também como Sergio
soube dimensionar as vantagens (ausência de orgulho racial e de preconceitos de
raça e de cor) e desvantagens (escravidão e aversão ao trabalho, ao planejamento,
tendência ao improviso e ao desleixo) de nossa herança dos colonizadores
portugueses. E conclui chamando a atenção do leitor para a atualidade de Raízes
do Brasil, seja por sua consistente denúncia dos particularismos sociais e
do Estado patrimonialista, seja por sua inclinação em direção da
democracia representativa compreendida como “um subsistema que recebe as
demandas da sociedade e as transforma paulatinamente em decisões de sentido
igualitário, consolidando a cidadania” – como diz Lamounier em sua
conclusão.
Como se pode ver por
esta canhestra apresentação, o livro de Lamounier, ao abrir os horizontes
intelectuais que tornam possível uma avaliação comparativa da questão da
democracia liberal – e de seus obstáculos - entre alguns dos mais
representativos países modernos e o Brasil, vem preencher um vazio em
nossa cultura política e irá certamente se constituir como um marco para nossa
reflexão sobre a busca do melhor regime político que, desde a Grécia antiga, é
o ponto capital da teoria política ocidental.
Mário Miranda Filho é professor de filosofia antiga no departamento de
filosofia da USP.