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Fernando Bonadia de Oliveira - 118 - Fevereiro de 2020
Tempos difíceis, tempos de transição
Os problemas atuais da ética, da política e da religião
Foto da capa do livro Entre servidão e liberdade
Entre servidão e liberdade
Autor: Homero Santiago
Editora: Politeia - 448 páginas
Foto do(a) autor(a) Fernando Bonadia de Oliveira


A sociedade contemporânea não cessa de oferecer ao filósofo político oportunidades de exercitar o pensamento e fazer dele, uma vez convertido em língua escrita, um modo de agir no mundo. Os conceitos de liberdade e servidão marcam a filosofia política desde as suas origens, pois definem um campo problemático pelo qual, em diferentes épocas, se pode entender melhor a ação humana. Entre servidão e liberdade oferece uma coletânea de textos que enfrenta a tarefa de compreender o significado que estes dois conceitos adquirem em tempos difíceis como os de hoje. Se algumas vezes experimentamos no cotidiano a perplexidade de viver em uma sociedade mais ávida a alimentar nossa imaginação passiva e a distraí-la com a profusão de acontecimentos variados, a leitura do livro fortalece, por outro lado, nosso entendimento ativo, porque nos ensina a abordar os problemas atuais da ética, da política e da religião com o rigor e a perspicácia de agudos mestres da suspeita como Marx e Nietzsche, e mestres da rebeldia, como Espinosa foi para Antonio Negri, e o próprio Negri representa para os leitores de agora. Tais nomes criam as principais linhas que iluminam o autor na captura de cada problema. O livro aborda questões de fundo do pensamento filosófico e político: a superstição, o possível, o negativo, os valores, o fazer da filosofia, mas atravessa, com igual precisão, temas brasileiros concernentes a políticas sociais, insurreições das ruas e os descaminhos do lulismo.

É decerto um livro de filosofia, mas o recurso constante ao elemento histórico, político e geopolítico das análises torna o texto palatável não só aos amantes dos assuntos filosóficos, mas também a historiadores, cientistas políticos e sociólogos aos quais agrada a experiência de pensamentos imanentes à realidade, e que não se resolvem apenas no plano teórico. O entre posto em meio às palavras servidão e liberdade constitui um campo de problemas marcados por transições, tensões e intelecções, concebidas e mobilizadas junto a filósofos e a filosofias políticas diversas.

São transições entre vários temas: povo e multidão, insegurança e segurança, obedecer e governar, autoritarismo e democracia etc. A ideia de transição define, desde o título, um sentido preciso na relação dos conceitos atravessadores do livro; de início vem a servidão, depois a liberdade, uma indicação sutil de que o mais instigante a aprender é sempre o que se diz da transição da vida servil à vida livre, embora o movimento contrário (da vida livre à vida servil) também não deixe de interessar. São também tensões entre opostos que não se tornam jamais absolutos; a distância entre liberdade e servidão se explica, para Homero Santigo, sempre em termos de preponderância; ora prepondera a liberdade, ora prepondera a servidão; não há, em síntese, um absoluto do puro servir ou do puro ser livre. Ademais, são intelecções dadas entre alegrias e tristezas da cena cotidiana, coisas boas e más que nos acontecem e justiças e injustiças que nos emparedam. Todas estas percepções seguem à risca a afirmação de Bento de Espinosa segundo a qual “é necessário conhecer tanto a potência quanto a impotência de nossa natureza”.

Escritos ao sabor de encomendas ou em virtude de ideias surgidas pela descoberta quase furtiva de uma nova questão colocada pelos impasses contemporâneos, todos os textos do livro se aplicam a pensar, cada um a seu modo, a coletividade. Homero Santiago lapidou textos originalmente redigidos como roteiros de palestras, artigos, entrevistas, resenhas e capítulos de livro com a agudeza e a precisão que seus leitores já estão habituados. Quem abre o livro não encontra uma evolução linear ou progressiva entre os capítulos que obrigue a seguir necessariamente um percurso predefinido; encontra, inversamente, um conjunto de textos dividido em cinco partes, antecedidas por um prefácio que contextualiza cada um dos títulos e complementadas por uma seção final que contém quatro itens avulsos. De acordo com o autor, os “avulsos” podem ser uma entrada privilegiada para que os leitores mais distantes da filosofia possam iniciar a leitura.

Se, de fato, “é necessário conhecer tanto a potência como a impotência de nossa natureza para que possamos determinar o que a razão pode e o que não pode na moderação dos afetos”, o livro de Homero Santiago enfrenta, por 448 páginas, o desafio de conhecer as formas como aparecem no mundo contemporâneo – para a ação e para o pensamento – tanto a servidão quanto a liberdade. O autor nos oferece o pensar crítico em meio às crises do pensamento, momento de derrota das forças de libertação contra as armações da servidão. Apesar disso, nos mostra como a atividade do pensamento, por sua natureza refratária aos absolutos, encontra justamente no estado de crise sua razão de existir.

 

FERNANDO BONADIA DE OLIVEIRA é professor de Filosofia da Educação na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

 

 

Fernando Bonadia de Oliveira
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