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Júlio Pimentel Pinto - 116 - Dezembro de 2014
Sob a sombra saudável de Borges
Foto da capa do livro As Agruras do Verdadeiro Tira
As Agruras do Verdadeiro Tira
Autor: Roberto Bolaño
Tradução: Eduardo Brandão
Editora: Companhia das Letras - 320 páginas
Foto do(a) autor(a) Júlio Pimentel Pinto

A leitura de Roberto Bolaño é sempre um aprendizado. Mas o que se aprende a cada livro dele, e especialmente neste As Agruras do Verdadeiro Tira? Talvez o mesmo que descobriram os alunos de Amalfitano, protagonista: “Compreenderam que um livro era um labirinto e um deserto. Que o mais importante do mundo era ler e viajar, talvez a mesma coisa, sem nunca parar. Que ao fim das leituras os escritores saíam da alma das pedras, que era onde viviam depois de mortos, e se instalavam na alma dos leitores como numa prisão macia, mas depois essa prisão se ampliava ou explodia. Que todo sistema de escrita é uma traição. (...) Que não era mais cômodo ler do que escrever. Que lendo aprendia a duvidar e recordar. Que a memória era o amor” (p. 144-145).

Bolaño trabalhou em Agruras, ao que parece, por cerca de quinze anos, desde o final da década de oitenta até a morte precoce, em 2003. Deixou um material amplo, impresso e eletrônico, escrito e reescrito, revisado e repetido, aglutinado em pastas. O livro veio à luz em edição póstuma, de 2011, pelas mãos de estudiosos e de Carolina López, viúva. Sai agora no Brasil, em boa tradução de Eduardo Brandão.

No centro da trama, o professor de literatura Amalfitano e Rosa, sua filha adolescente, vagam de universidade em universidade, de cidade em cidade. O pai descobre tardiamente sua homossexualidade, a filha concebe a rotina como uma viagem ininterrupta: aprende a errância. No umbral do núcleo principal, Padilha, parceiro de Amalfitano no sexo e na literatura, conta a própria história e ensaia a redação de uma obra que nunca se completa. Nos interstícios da vida continuamente reinventada do protagonista, se constroem personagens intensos e só na aparência periféricos, como o pintor Larry Rivers, a professora Isabel, o desgarrado Pancho Monje, a doce e sinistra Elisa.

 

Obra aberta

Livro fragmentário e inacabado, As Agruras do Verdadeiro Tira é, na verdade, uma obra aberta, flutuando entre estratégias narrativas que se aproximam e distanciam. De página a página, entre cartas trocadas, resumos de obras imaginadas e dilemas íntimos, surgem pistas. Bolaño transforma o leitor em detetive — o verdadeiro tira. Ler, afinal, se divisa com investigar, inclui observação arguta, capacidade seletiva, mobilização da razão. Depende do esforço de ordenar e reordenar elementos, formular hipóteses, criar e recriar métodos, inventar relações e sentidos. Só assim é possível responder à pergunta-chave: “Qual é a história e quais as excrescências, os ornatos, as ramificações da história?” (p. 211)

As ramificações, no caso, ultrapassam as 311 páginas do romance e se incorporam, num primeiro plano, à constelação Bolaño, com suas narrativas incisivas e peculiares, seus jogos literários, suas ironias e metáforas, sarcasmos e despistes. Para ficar num exemplo óbvio e direto, o próprio Amalfitano não é personagem exclusivo de Agruras; já aparece no imenso 2666 (original: 2004; edição brasileira: 2010). Também vêm, de 2666, a filha Rosa e o obscuro escritor Arcimboldi. Mais do que a reincidência de personagens, Agruras retoma o esforço de Bolaño em mesclar crítica e ficção, expondo um diálogo que vai além da própria obra e nos conduz à contínua presença de autores dessemelhantes entre si, mas reunidos pela herança que deles se apropriou Bolaño, fiel ao princípio de que é o sucessor que define os precursores, e não o contrário: Pablo Neruda, Manuel Puig, Jorge Luis Borges, entre tantos outros.

Tal qual Neruda, Bolaño faz a ficção reconhecer os impasses históricos e diagnostica males que percorrem a vida e o texto, contaminando-os recíproca e irreversivelmente. Tal qual em Puig, a cuja memória o livro é dedicado, a marginalidade e a tensão sexual atingem a escrita e transtornam a linguagem. Tal qual Borges, Bolaño inventa labirintos e desertos — lugares de perdição e de encontro que, na prática, se assemelham —, evoca o desconforto prazeroso da leitura, celebra a potência racional e afetiva da memória, fala de traições e imposturas, expõe a inevitabilidade da reescritura. Também é sob a sombra saudável de Borges que Bolaño valoriza um gênero — ou subgênero — tantas vezes depreciado, mas essencial para a compreensão do ofício de literatos e historiadores, ou de críticos em geral: o policial — não o policial tomado, de forma simplista, como uma tentativa de restaurar a ordem, e sim aquele que perscruta, investiga e reconhece a provisoriedade de toda certeza, a precariedade de toda solução.

Ao associar o leitor ao tira, Bolaño recupera a dimensão crítica de toda leitura e expõe a importância do olhar que busca a distância e assume perspectiva alheia, a partir da qual toda representação se torna mais densa e complexa — em certos momentos, delirante. Densidade, complexidade e delírio racional que a narrativa fluida, às vezes amarga, às vezes sarcástica, de As Agruras do Verdadeiro Tira não esconde, permitindo que a leitura de Bolaño seja, sempre, um aprendizado.

 

 

Júlio Pimentel Pinto é professor de história da USP.
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