Impossível terminar sem uma grande vertigem a leitura do primeiro volume de A Arqueologia do Sujeito, do professor e pensador francês Alain de Libera. Ou atravessá-lo sem vertigens múltiplas, sensação intensificada ao perceber-se que a coerência de seu projeto só será vista com total clareza ao final do quarto volume. Mas é inegável o prazer que acompanha a leitura de um trabalho tão erudito, vivo e instigante. O leitor interessado na “história do sujeito” surpreender-se-á com a tese de que este não é uma invenção moderna. Em Descartes, seu avatar-mor, encontram-se, é certo, as concepções de substância como suporte passivo de propriedades e como agente (pensamento e vontade), mas tal encontro já se havia dado em Tomás de Aquino e Pedro Olieu (ou Pedro de João Olivi). Descartes teria chegado a essas concepções menos por reflexão e mais por refração, em seu debate com Hobbes e Regius (que tomavam o pensamento por atributo ou modo do corpo), na tentativa de escapar à redução do sujeito à vida corporal e, portanto, à passividade.
Antes de Descartes
Todavia, segundo De Libera, o sujeito já se havia tornado agente muito antes de Descartes, sobretudo com a Patrística grega e precisamente no debate sobre as duas vontades de Cristo. Forjado no contexto do esforço cristão por exprimir de maneira razoável a fé trinitária e cristológica, o vocabulário da hipóstase exprime uma ampliação conceitual sem precedentes e dá o alicerce para superar a concepção de alma ou espírito como atributo do corpo (tese imputada a Aristóteles por Jonathan Barnes, por exemplo) e para chegar à concepção de que os atos e estados mentais são propriedades atribuídas a um sujeito definido como ego, ao modo de Descartes, Locke ou mesmo do atual Mind-Body Problem. Entretanto, foram Tomás e Olieu que sistematizaram pela primeira vez um esquema compreensivo segundo o qual o eu é suporte e autor (sujeito-agente). A consequência direta de uma revisão histórica desse gênero é a problematização da tese heideggeriana de que em Descartes ter-se-ia operado a passagem da subjectidade (condição de sujeito/substância como suporte de propriedades) à subjetividade (presença de um ego). Provas cabais da crítica são Agostinho e Brentano: o bispo de Hipona, detectando a imanência mútua entre conhecer, amar e rememorar, formula e rejeita a tese da subjectidade, abrindo caminho para a semântica da inexsistentia (in-exsistentia), inhabitatio (in-habitatio) e circumincessio (circum-incessio);
por sua vez, o pensador alemão, assumindo a analogia com Agostinho, fala de
Einwohnung.
No caso de Tomás de Aquino, sua motivação era reagir à tese averroísta, que, dando uma inflexão própria a elementos vindos dos platonismos dos séculos II-V, concebia o intelecto como separado: não haveria um eu que pensa, mas o agregado constituído pelo corpo (objeto do intelecto) e o intelecto separado (sujeito agente do pensamento). Tese, aliás, nada estranha à sensibilidade contemporânea, haja vista a reação antissujeito que vai de Lichtenberg a Wittgenstein e Strawson, passando por Schelling e Nietzsche (sem falar de Freud e Lacan) e instalando uma tradição de peso na história da filosofia, a do es denkt (“isso” ou “algo” pensa; não “eu penso”) ou do es denkt in mir (“isso” ou “algo” em mim pensa). Guardadas as devidas proporções, é uma tradição de formas averroístas, e seria extremamente revelador imaginar um debate entre Tomás e os autores que compõem essa tradição, pois o velho boi mudo da Sicília certamente se serviria do parágrafo 17 de Para além do bem e do mal a fim de investigar a “superstição dos lógicos” e a “rotina gramatical” e perguntar se, no fim das contas, o Es ou “algo/isso” não termina por implicar um sujeito de atribuição que, embora anônimo e permanecendo como resíduo indissolúvel, ainda remete a uma substancialidade tal como aquela criticada e pretensamente evaporada na Contemporaneidade. Em benefício dessa pergunta está o modo como Kant, ao definir o sujeito da psicologia racional, fala sobre esse eu que pensa (dieses Ich) ou isso/algo (oder Es, das Ding) como uma representação de um sujeito transcendental que pensa e que nós conhecemos somente pelos pensamentos que são seus predicados. Tomás perguntaria ainda se um averroísmo, seja de forma seja de fundo, não anularia a liberdade humana, enclausurando o indivíduo como refém de um “campo” (à maneira de Badiou) de inescapáveis determinações educacionais, simbólicas, materiais etc.
O historiador da filosofia
De Libera, sem escrúpulos por não respeitar uma linearidade evolutiva, reconstitui, já no volume 1 e por um vaivém constante, as grandes etapas da emergência das diferentes figuras do sujeito e da subjetividade. No volume 2 (ainda não traduzido no Brasil), toma como ponto de partida as sátiras antilockeanas de Martin Scribler para tratar da identidade pessoal no pensamento medieval e moderno. No volume 3 (que ainda está para ser publicado), promete consagrar-se mais demoradamente a Descartes e ao averroísmo. Por fim, no volume 4 (e talvez também num volume 5), ocupar-se-á de Kant, Schelling e Heidegger, ou do sujeito “kantificado”.
Engana-se, porém, o leitor que espera desse monumento arqueológico uma historiografia da continuidade ou da ruptura. A evidência seguida por De Libera é a de que há continuidade e ruptura. Seu método foi o de deixar-se interpelar pelos textos, assumindo que o historiador da filosofia, diferentemente do que fazem os “grandes” filósofos, não pode projetar no passado uma tradição com a qual quer romper (como é o caso, por exemplo, de Descartes e a escolástica; de Kant e a metafísica dogmática; de Nietzsche e a ascética anticorpo e anti-indivíduo; de Heidegger e o esquecimento do ser). A “tradição” que investiga o historiador da filosofia é, como diz Jean-Luc Marion, uma soma de rupturas e grandes gestos inaugurais com relação a uma “tradição” retrospectivamente identificada pelos “grandes” filósofos.
Aprendiz de Hypolite, Guéroult e Foucault, é em Paul Veyne que De Libera encontra seu mestre mais completo ao deparar-se com a intriga não de autores, mas de teses e argumentos tomados em rede. Estruturalista em certa medida, De Libera não se limita a essa abordagem, pois pergunta fundamentalmente: quando construo a narratividade de um tema, construo a história de quê? Escapando bergsonianamente a um “movimento retrogradante do verdadeiro”, também não cai na ilusão de uma Problemgeschichte, como se os problemas tivessem uma história homogênea. Prefere dizer, com Robert G. Collingwood, que não há arquiproblemas ou problemas arquetípicos, mas complexos de questões e respostas, postos muitas vezes de maneira diferente daquela dos que os propuseram por primeiro. Continuidade e ruptura. De Libera, assim, não trabalha sobre “o” sujeito, mas sobre uma rede de questões expressas pelo quadrângulo: quem pensa?; qual é o sujeito do pensamento?; quem somos nós?; o que é o humano?
De Libera dá, pois, testemunho de uma historiografia filosófica rigorosa em que a atenção à articulação lógico-conceitual – centro inegociável do interesse do pesquisador – não impede a percepção de variáveis e constantes filosóficas em diferentes autores, mostrando que a identificação de “tradições” filosóficas nem sempre necessita de referências históricas explícitas. Para ele, os textos não são retratos numa galeria de mortos, mas peças interativas de um museu (que, por definição, é algo vivo). Ainda que seja possível criticar seu trabalho em mais de um aspecto, isso é coisa de detalhe, sem diminuir em nada a importância de seu ousado projeto.
A metáfora não é nova, mas A arqueologia do sujeito é como uma catedral: aplica o espírito do afresco e do mosaico à arquitetura e produz um edifício que pulsa e respira, nada imóvel nem barroco. É uma Sagrada Família, à Gaudi: repleta de movimento, uma pitada surreal, inacabada e talvez inacabável, porém desde já imponente e vertiginosa.