Retratos de Florestan
JOSÉ DE SOUZA MARTINS
Um certo tempo há de passar antes que se tenha uma articulada visão de conjunto da obra de Florestan Fernandes. Seja porque ela é extensa, seja porque contém um sem número de questões da maior importância. A sua enorme vitalidade intelectual levou-o a escrever até às vésperas da morte. Surgirão muitas e diferentes leituras dessa obra, variedade essa decorrente não só da diversidade dos pontos de vista com que se pode analisar a produção de um autor como ele, mas também da riqueza de temas e problemas de que ele tratou. Sobretudo porque é uma obra-documento. É certamente um gigantesco esforço de interpretação do Brasil no mais de meio século de labor intelectual e militância política de sua vida intelectual fecunda e exemplar. Sem referência à sua obra é impossível entender o Brasil contemporâneo com a mesma agudeza e precisão.
Sua obra está entre as mais significativas de seus contemporâneos por expressarem plenamente os dilemas, as contradições e as vicissitudes do Brasil neste século. Ele estava no pequeno número dos que tinham uma interpretação integrada e abrangente da sociedade brasileira. É hoje praticamente impossível, nos meios acadêmicos, em particular nas ciências sociais, dizer qualquer coisa a respeito do Brasil sem estar dialogando com suas idéias e com as idéias do conspícuo grupo de cientistas sociais que marcou a consolidação da Universidade de São Paulo, nos anos 40 e 50. Mesmo quando não são citados.
O grupo que foi-se constituindo nas duas décadas iniciais da Faculdade de Filosofia, com a decisiva participação de Antonio Candido e de Florestan Fernandes, propunha as indagações que norteariam as pesquisas e as análises de várias gerações de cientistas sociais da Universidade de São Paulo. No meu modo de ver, além da extraordinária qualidade dos trabalhos produzidos por esse grupo, é preciso ter em conta as questões, as indagações, que esse grupo formulou, os chamados problemas de pesquisa. É a natureza dessas perguntas implícitas que nos diz da relevância dos estudos que fizeram.
Essas perguntas iniciais não foram substituídas por outras, mas desdobradas em outras que deram origem aos trabalhos de Maria Isaura Pereira de Queiroz, de Fernando Henrique Cardoso, de Octavio Ianni, de Marialice Mencarini Foracchi, de Maria Sylvia de Carvalho Franco e de outros pesquisadores que se originaram no núcleo de sociologia da Faculdade de Filosofia. Ainda hoje, o que de consistente se faz na nossa sociologia está referido àquelas indagações seminais. No fundo, aí estava a referência para o desenvolvimento de uma sociologia construída a partir da situação de um país periférico no desenvolvimento capitalista, que era na verdade o projeto subjacente à obra dos membros do grupo, assumido expressamente pelo próprio professor Florestan.
O professor Florestan encontrou um ambiente e um grupo de professores empenhado em entender o Brasil descompassado, dividido em humanidades diferentes e desencontradas, resquício da sociedade estamental. Vendo as coisas retrospectivamente, é possível compreender que a universidade se constituiu em torno da preocupação com o conhecimento desse Brasil à margem, desse Brasil cujo modo de ser e de pensar era concebido como expressão do atraso e da ignorância. Mesmo o positivismo durkheimiano dos primeiros tempos era um precioso instrumento para explicar o descompasso. As idéias relativas a um progresso que não arrasta consigo todos e que ao mesmo tempo engendra novos valores e novas relações sociais, serviam para situar e revelar os aspectos problemáticos das transformações sociais que beneficiavam alguns e que vitimavam outros. A incorporação das interpretações de Weber e as de Marx, numa perspectiva propriamente acadêmica, enriqueceram o seu quadro de referência. Sobretudo porque essa diversidade era essencial para estudar uma sociedade marcada tão profundamente por ritmos desiguais de desenvolvimento, por grupos sociais tão diversamente situados no tempo tempo da história.
Essas idéias estarão presentes até o fim na obra do professor Florestan. Sua tese sobre a desencontro entre o tempo econômico e o tempo político, que funda uma revolução burguesa cujos benefícios são restritos a alguns, tem sua raiz diretamente nessas inquietações dos cientistas sociais da USP nos anos 30 e 40. São idéias que se desdobraram de vários modos não só na obra do professor Florestan, mas de seus assistentes e colaboradores. Até mesmo como discordância e contraponto.
É certamente arriscado indicar em mais de 50 livros aqueles que podem ser considerados imprescindíveis. Sem dúvida, "Organização Social dos Tupinambá" (Ed. Ipê, São Paulo, 1949) e "A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá" (Museu Paulista, São Paulo, 1952), como disse Darcy Ribeiro deste último, serão lidos daqui a cem anos como livros indispensáveis para o conhecimento das nossas sociedades indígenas. Mas eu não deixaria de lado "Mudanças Sociais no Brasil" (Difel, São Paulo, 1960). Talvez porque tenha sido o primeiro livro dele que li, o que se liga a uma certa dimensão sentimental do leitor com a obra lida. Pude comprar esse livro quando ainda era estudante do Curso Normal do Instituto de Educação Américo Brasiliense, de Santo André, com recursos de um prêmio que ganhei em concurso estadual de monografias sobre o patrono da escola.
Lembro bem que eram cinco mil cruzeiros, que eu devia gastar em livros. Fui à Livraria Brasiliense e adquiri os primeiros livros de minha biblioteca de ciências sociais. "Mudanças Sociais no Brasil" estava entre eles. Eu o incluo sobretudo porque esse é um retrato do Brasil, mas é também um panorama do trabalho intelectual do professor Florestan. O estudo sobre "Tiago Marques Aipobureu, um Bororo Marginal", orientado por Herbert Baldus, representa um fecundo aproveitamento das idéias de Everett Stonequist, e é revelador dessa duplicidade brasileira que nos intriga e fascina. É um livro bem diferente do sizudo e imprescindível "Fundamentos Empíricos da Explicação Sociológica" (Cia. Ed. Nacional, São Paulo, 1959 -livro que se tivesse sido publicado na Europa ou nos Estados Unidos, na mesma época, teria revolucionado o ensino da sociologia, pois é obra de competência profissional e de alcance indiscutíveis).
"Folclore e Mudança Social na Cidade de São Paulo" (Ed. Anhembi, São Paulo, 1961) revela o Brasil do tradicionalismo popular que invade a metrópole ainda hoje, uma questão ignorada pela distorção interpretativa dos que preferem imaginar que a situação social dos pobres, dos migrantes, dos desenraizados, dos marginalizados, ganha sua explicação adequada apenas nas orientações interpretativas informadas pelo pressuposto de que as "classes perigosas" são todo o tempo insurgentes e revolucionárias. Elas também são tradicionalistas. Não só por isso esse livro é fundamental. Ele se tornou um documento etnográfico sobre a cultura popular e sobre uma época da história da cidade.
Em sua pesquisa sobre o folclore iniciada já no primeiro ano como aluno da faculdade, o professor Florestan trabalhou com um invejável rigor e salvou para o conhecimento da história da urbanização no Brasil informações que de outro modo estariam perdidas. Mas há ainda outro componente que deve ser assinalado. Seu trabalho sobre "As Trocinhas do Bom Retiro" é sem dúvida um primoroso estudo sociológico sobre a sociabilidade infantil, os aspectos inesperados e reveladores de como a criança se torna um ser social. A capacidade que o professor Florestan revelou para abordar as crianças nos grupos de rua e para colher delas abundantes informações sobre sua cultura e seu modo de vida permanece como admirável indicação de procedimentos de pesquisa e de interpretação nesse tipo de investigação sociológica.
"A Integração do Negro na Sociedade de Classes" (Secção Gráfica da FFCL da USP), de 1964, concluído dez dias depois do golpe de Estado e apresentado como tese no concurso de cátedra, é certamente um marco no estudo das relações raciais em nosso país e um trabalho fundamental para o estudo comparado do problema racial, como bem indica sua tradução para o inglês e sua publicação nos Estados Unidos. Mas é aí também que o professor Florestan trabalha pela primeira vez de modo sistemático sua tese sobre a revolução burguesa retardatária e inconclusa no Brasil. É no modo dramático e subalterno como se dá a integração do negro no novo regime decorrente da abolição da escravatura que ele encontra a referência social adequada para a leitura sociológica do desenvolvimento do capitalismo no Brasil. A revolução burguesa não emancipadora, diversa da que ocorreu nos países metropolitanos, não transformou o negro (e não só ele) num cidadão. Reservou-lhe apenas os recantos escuros da sociedade, os lugares de ajustamento precário e anômico. Descartou-o. O professor Florestan seguiu um caminho que é marcante em vários dos seus trabalhos e que o equipara a alguns dos clássicos das ciências sociais mais comprometidos com a idéia de que a verdade sociológica só é verdade se for também (e, em certos casos, sobretudo) a verdade dos pobres: ele procurou entender o desenvolvimento do capitalismo a partir da experiência dramática da vítima.
Finalmente, eu vacilaria entre um bom conjunto de livros relativos à questão do desenvolvimento e da dependência, temas que marcam o revigoramento, mas não necessariamente a redefinição de sua obra. Entretanto, penso que "Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento" (Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1968), de um lado, e "A Revolução Burguesa no Brasil" (Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1975), de outro, são os livros que servem como eixo de referência não só para compreender o Brasil que se seguiu à queda do que ele chamava de "antigo regime", com a abolição da escravatura e a proclamação da República. Mas que, com "A Integração do Negro", são de fato a chave interpretativa do conjunto de sua obra. Uma versão parcial e preliminar de "Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento" eu a li e comentei com ele antes da publicação em 1968.
Esse trabalho me influenciou muito na leitura dos dados de minha primeira pesquisa sobre a questão agrária, realizada em 1966 em três diferentes regiões do Estado de São Paulo. Tenho uma identificação grande com esses dois livros também por motivo pessoal e afetivo. Num momento em que minha carreira foi ameaçada pela intolerância de um colega, o professor Florestan teve a generosidade de me convidar para trabalhar como seu auxiliar de ensino, no primeiro semestre de 1966, num extraordinário e fascinante curso optativo sobre "Formação e Desenvolvimento da Sociedade Brasileira". Ele me fez uma lista de autores, que eu só conhecia parcialmente, para discutir com seus alunos em seminário. Essa lista incluía Euclides da Cunha, Alberto Torres, Gilberto Freyre, Nestor Duarte, Joaquim Nabuco, Victor Nunes Leal e outros, sobretudo os pré-sociólogos. Foi um privilégio inesquecível ter acompanhado suas aulas e estudado com os alunos os textos que ele indicara.
O professor Florestan Fernandes, nos últimos anos, preocupou-se muito em assegurar, até onde lhe era possível, que a leitura de sua obra levaria em conta uma linha de retidão e coerência, do primeiro ao último trabalho. Sobretudo, ele parecia muito preocupado em assegurar que seus leitores de agora não vissem nela uma obra fraturada em dois momentos inconciliáveis: o do sociólogo e do socialista. Em nosso último encontro, em julho, numa agradável manhã de sábado, poucas semanas antes de sua morte, em meio a uma conversa amena, ele voltou ao assunto. Deu-me a impressão, como em vários dos seus escritos e depoimentos mais recentes, de que queria justificar-se pelo fato de que em alguns dos livros mais significativos de sua carreira a sua condição de militante possa não ficar transparente. Nem era necessário que ficasse, penso eu. Porque transparente foi desde o começo o seu inegável compromisso com o que se poderia chamar de sociologia crítica, que era também um compromisso radical com as lutas pela transformação da sociedade brasileira numa sociedade democrática, justa e desenvolvida.
Felizmente, para todos nós, foi assim que ele definiu a sua linha de conduta como intelectual e professor. Ele temia ser classificado como eclético, chavão desabonador que os estudantes, que se consideravam mais de esquerda do que seus professores, passaram a aplicar a partir do final dos anos 60 aos cientistas sociais que coerentemente entendiam que a formação científica das novas gerações de estudantes de ciências sociais passava necessariamente pelo conhecimento da diversidade de perspectivas e orientações dos chamados clássicos. Além disso, ele tinha justificado horror aos modismos interpretativos, que aliás se difundiram já nos anos 60: num momento domina Sartre, noutro Goldman, noutro Althusser, noutro Foucault. E a legitimidade do conhecimento passa a depender de um único autor e de seu endeusamento.
Ele entendia com razão que o estudante de ciências sociais, especialmente o dos primeiros anos da graduação devia receber aulas apenas dos professores maduros e experimentados e devia, também, ter contato direto e profundo com os clássicos.
Mas adotar uma orientação interpretativa das questões sociais em termos rigorosamente científicos, sem qualquer concessão de natureza ideológica, parecia aos principiantes e afoitos um gesto de incoerência e vacilação. Foi, aliás, o clima que prevaleceu nos chamados "acontecimentos da rua Maria Antônia", em 1968. A diversidade de orientações interpretativas nas ciências sociais não era debatida nas famosas e discutíveis comissões paritárias. Eram apenas impugnadas pelo radicalismo, no fundo autoritário, daquelas horas de euforia e de certezas que se revelaram infundadas. A minha impressão é a de que o professor Florestan foi de algum modo alcançado pelo desconforto daquela onda de crítica superficial que afetou a todos de diferentes modos.
É compreensível que ele tenha se sentido desafiado por aquelas mal alinhavadas idéias do radicalismo juvenil, embora elas tenham sido esquecidas muito depressa pelos próprios protagonistas, em função mesmo das condições e da rapidez com que as coisas aconteceram, inclusive a exclusão da universidade, pela ditadura, dele próprio, de dois de seus assistentes e de vários outros professores. É que ele parecia entender, e com razão, por convicção política e profissional, que seu trabalho honesto e coerente (e, acima de tudo, competente, digo eu) não tinha por que ser confundido com aquilo que efetivamente não era. Ele compreendeu com clareza, e o disse, que as circunstâncias do trabalho do sociólogo na universidade estavam mudando e que os papéis sociais do sociólogo também estavam sofrendo mudança.
A sociedade agora apresentava questões à interpretação sociológica bem diversas daquelas que haviam dominado a atenção dos cientistas sociais nos anos 40 e 50. E por isso, pela voz dos que atuavam nos movimentos de inconformismo, questionava não só, no plano imediato, a ditadura e, no plano remoto, o conservadorismo das elites (que insinuava ser também o suposto conservadorismo da universidade): questionava as interpretações que os cientistas sociais faziam sobre a sociedade e os rumos do seu desenvolvimento. Não só a realidade das relações sociais desiguais e as injustiças a elas inerentes eram objeto do questionamento. Mas também o modo como essa realidade era interpretada. O professor Florestan compreendeu isso imediatamente. Essa era, aliás, a base da sua orientação teórica: a sua análise sociológica está sempre referida ao ponto de partida da explicação que o grupo estudado desenvolve para se situar no mundo. Isso aparece claramente nos fundamentais estudos sobre o folclore e nos estudos sobre o negro.
O professor Florestan mais de uma vez disse aos que quiseram conhecer sua história pessoal para, por meio dela, entender a história da universidade e a história da intelectualidade brasileira, que sua biografia não era típica. Ele vinha do submundo dos lumpen-proletários e dos desenraizados. Vinha de uma família de rústicos imigrantes portugueses do Minho que fora destroçada pelas adversidades da vida na cidade de São Paulo, dizia. Cursara até o terceiro ano primário na rotina de uma vida instável e difícil com Dona Maria, a mãe lavadeira, nos cortiços e quartos de porão dos bairros pobres de São Paulo. Trabalhou desde os seis anos de idade. Foi de tudo: de engraxate nas ruas a garçom do Bar Bidu. Só voltara à escola já adulto, com 17 anos, para fazer o curso de madureza.
Uma patroa de sua mãe, da família Bresser, no bairro do Brás, tornou-se sua madrinha. Mas recusava-se a chamá-lo pelo nome, pois dizia que Florestan não era nome de pobre. Chamava-o, então, de Vicente. Ele mesmo dizia que o Vicente começou a morrer quando entrou na universidade. Ali começou a nascer o Florestan. Esse duplo ser reaparece no modo como se tornou intelectual e militante, embora fosse mesmo um intelectual militante. Ele falou de si mesmo várias vezes como sociólogo e socialista, para indicar as dificuldades que o sociólogo tinha para ser um sociólogo socialista. De fato, era uma dupla condição, como ele mesmo escreveu mais de uma vez, decorrente da fragilidade do movimento socialista entre nós, incapaz de assegurar ao cientista social as condições de apoio necessárias a uma vida intelectual independente.
Essas duplicidades de condição, mas não de orientação, são próprias de uma sociedade periférica como a nossa. Ela está na raiz de quase todos nós e de quase tudo que fazemos. Nesse sentido, ao contrário do que ele pensava e dizia, sua biografia é uma biografia típica e seu desenraizamento, um desenraizamento criador e revelador (de certo modo, mantidas as diferenças, como Mannheim imaginava o verdadeiro intelectual). A biografia (e a obra) do professor Florestan Fernandes é a história dos sem-história. É a história da emergência dos pobres na história, como sujeitos de seu destino, com seu próprio nome. Esse é o busílis da questão, como ele gostava de dizer.