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Rubens Figueiredo - 94 - Março de 2003
Prosa russa
Foto do(a) autor(a) Rubens Figueiredo

Niétotchka Niezvânova
Fiódor Dostoiévski
Tradução: Boris Schnaiderman
Editora 34 (Tel. 0/xx/11/3816-6777)
222 págs., R$ 25,00

"Nadinha que não foi convidada." Assim, talvez, se poderia entender o título deste romance e o nome da protagonista, menina órfã, salva da miséria por um príncipe piedoso, que a recolhe numa rua em São Petersburgo. Dostoiévski interrompeu o romance ao ser preso em 1849, aos 28 anos, por conspirar contra o regime do tzar. Só voltou ao livro 11 anos depois, com o fim do exílio na Sibéria. O resultado é desigual. Dos três blocos, o último é tão decepcionante quanto são arrebatadores os dois primeiros. Numa cadência de exaltação e de quase delírio, a protagonista narra a infância miserável e as agruras da adaptação a uma família estranha. O fervor das sensibilidades exasperadas culmina na loucura e na paixão sexual entre meninas. Anterior às obras que consagraram o autor, "Niétotchka" permite observar como a forma do folhetim -que persistiu como uma matriz romanesca para Dostoiévski- não comportava a matéria ficcional que lhe era mais cara. Essa incompatibilidade interna tem um peso importante na tensão destemperada que nos contagia em seus romances.

Ássia
Ivan S. Turguêniev
Tradução: Fátima Bianchi
Cosac & Naify (Tel. 0/xx/11/3218-1444)
120 págs., R$ 19,00

Da mesma geração que Dostoiévski, mas diferente dele em tudo o mais, Turguêniev (1818-1883) tinha muito daquilo que os russos chamavam de um ocidentalista. A raiz de boa parte de sua ficção, mais do que genericamente política, é revolucionária: focaliza a força e a fraqueza dos tipos sociais capazes de encarnar o futuro revolucionário russo. A novela "Ássia", de 1858, parece à primeira vista a história de um amor frustrado pelo preconceito e o medo dos sentimentos espontâneos. As hesitações e as pequenas baixezas -causas, no entanto, de perdas irreparáveis- são apresentadas com acuidade e sutileza. Mas, como diz o posfácio desta edição, "o cruzamento do entrecho amoroso com a crônica nacional é parte da força de "Ássia'". Pois a tibieza do herói diante da jovem Ássia, "um verdadeiro explosivo", denotava as limitações das forças reformadoras da Rússia. "Ássia" também exemplifica a requintada prosa do autor, que décadas mais tarde levaria Tchékhov a exclamar: "Que assombro de linguagem".

Carta e Literatura - Correspondência entre Tchékhov e Górki
Sophia Angelides
Edusp (Tel. 0/xx/11/3091-4008)
174 págs, R$ 25,00

A riqueza do epistolário dos escritores russos se explica, em parte, pela censura aos periódicos. Como lembra o prefácio deste livro, as cartas de Turguêniev (mas não só dele) eram passadas de mão em mão e lidas em grupos. Constituíam peças literárias autônomas. A par disso, a vitalidade da literatura russa nos séculos 19 e 20 deve muito ao debate franco e contínuo entre os escritores. O fator decisivo, porém, foi o enraizamento da literatura na sociedade. Os autores discutiam questões literárias não como um negócio nem como uma carreira, mas como problemas vitais, com reflexos diretos na vida social. Só assim entendemos como indagações artísticas pessoais se integram naturalmente à esfera social nestas cartas trocadas entre Tchékhov e Górki, de 1898 a 1902. Górki, mais jovem, mais simples, perseguido pela polícia, é só elogios. Tchékhov assume o papel do mestre e aponta com precisão as deficiências em Górki: falta de concisão, sentimentalismo, forma conservadora. Da permuta entre ambos, apreendemos o essencial sobre a obra de cada um.

Doutor Jivago
Boris Pasternak
Tradução: Zoia Prestes
Record (Tel. 0/xx/21/2585-2000)
626 págs, R$ 50,00

O poeta Pasternak (1890-1960) formou-se na tradição dos simbolistas russos: difícil imaginar uma herança mais incompatível com a mentalidade dominante, após a Revolução de 1917. Sua fama data dos anos em torno da revolução. Depois, viveu recolhido e "Jivago" é fruto desse isolamento. Proibido na Rússia, foi editado na Itália em 1957. Em 1958, Pasternak ganhou o Prêmio Nobel, mas o governo forçou-o a recusá-lo. Embora seja injusto atribuir a celebridade do romance apenas às circunstâncias, elas ajudaram a amplificar seus méritos. O enredo, inflado em proporções épicas, vai de 1903 a 1953. Uma intriga romântica e uma crônica familiar convencionais permeiam um panorama histórico desfavorável ao regime. O acaso se constitui num elemento estrutural da trama, no intuito de contestar o determinismo econômico então vigente. Pasternak disse que "Jivago" fundia Blok, Iessiênin, Maiakóvski e o próprio autor, mas os pensamentos do herói às vezes ecoam clichês que não fazem jus àqueles poetas. A riqueza de linguagem do romance, traduzido direto do russo, soa algo apagada no texto em português.


RUBENS FIGUEIREDO é escritor e tradutor, autor, entre outros livros, de "Barco a Seco" (Companhia das Letras).

Rubens Figueiredo é escritor e tradutor.
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