Logotipo do Jornal de Resenhas
Henrique Fleming - 57 - Dezembro de 1999
Profecias e miragens
Foto do(a) autor(a) Henrique Fleming

Profecias e miragens

 


John Maddox explora os segredos do Universo, as origens da vida e o futuro da espécie humana

HENRIQUE FLEMING

No primeiro século deste milênio, o poeta Omar Khayyam, então famoso mais por suas habilidades como cientista e filósofo do que por sua poesia, recebeu do sultão Malik-Shah a incumbência de "prever acontecimentos importantes". Talvez tenha sido o primeiro cientista a ganhar dinheiro por suas profecias. Certamente não foi o último.
Algum tempo atrás usei estas páginas para, talvez sem sucesso, divulgar a minha opinião de que o livro de John Horgan, "O Fim da Ciência" (Companhia das Letras), era uma tolice. O livro a que agora me dedico, "O Que Falta Descobrir", de autoria de John Maddox, é uma resposta à obra de Horgan.
Sir John Maddox foi, por 22 anos, editor da famosa revista científica inglesa "Nature". Formado em física, foi professor assistente de física teórica durante seis anos na Universidade de Manchester, voltando-se depois para o jornalismo e a administração científica. O título de "Sir" atesta seu sucesso nessas atividades. Sua missão neste livro é, contudo, obviamente impossível. Para saber o que resta descobrir é preciso: 1) conhecer a totalidade das descobertas e 2) subtrair desse total as descobertas já feitas. Aritmética irrealizável, sabe o leitor. Trata-se, como quase tudo hoje, de uma questão de "marketing": o título "Algumas Descobertas Por Fazer" seria desastroso, embora correto.
Maddox é ambicioso. Divide o livro em três partes, "Matéria", "Vida" e "Nosso Mundo", que poderiam ser também divisões de todo o conhecimento natural, deixando de lado só aquele tipo de conhecimento obtido pela introspecção. Uma extensa "Introdução" prepara o terreno e a linguagem para a descrição da ciência recente e de seus prolongamentos futuros, as profecias. A primeira parte trata da física, principalmente da física das partículas elementares; a segunda, da biologia, com predominância da genética; e a terceira, da natureza do cérebro, da matemática e da defesa contra catástrofes futuras (colisões com meteoritos e outras calamidades). Uma conclusão denominada "O Que Nos Espera" é uma reflexão sobre todo o livro. Aí encontram-se palavras como "realismo", "holismo", "reducionismo", revelando o tom mais abstrato em relação ao resto do livro e terminando com uma profissão de fé na inexauribilidade da ciência.


O Que Falta Descobrir
John Maddox Tradução: Ronaldo de Biasi Campus (Tel. 0/xx/21/509-5340) 398 págs., R$ 59,00



Não é minha intenção aqui revelar o que falta descobrir e estragar a leitura do livro. Há, contudo, duas coisas que posso fazer: examinar as bases que dariam credibilidade ao autor e, se me permitirem, apresentar algumas leituras alternativas (e melhores!) sobre o mesmo tema.
Profetas não são necessariamente eruditos. A tradição coloca palavras proféticas nas mais surpreendentes bocas: de crianças, de loucos... Maddox, contudo, se classifica como um erudito, mostra suas credenciais, apresentando-se, no texto, como editor da "Nature" e ressaltando a posição privilegiada que ocupava até há pouco (deixou a revista em 1995). Merece, por isso, que se lhe examine o cabedal de conhecimentos científicos. Sendo ele, como eu, um físico, vou me concentrar nessa área e analisar não suas previsões, mas sua descrição da física passada e contemporânea. E aí começam as surpresas.

Descrições da física
Na pág. 18, Maddox diz: "O princípio da conservação da energia passou a ser conhecido como "primeira lei da termodinâmica". Uma das consequências da primeira lei da termodinâmica é o fato, conhecido por todos, de que o calor não passa espontaneamente de um corpo a uma temperatura mais baixa para um corpo a temperatura mais alta". Fim da citação. Ora, isso seria uma violação da segunda lei da termodinâmica, e não da primeira: nada tem a ver com a conservação da energia.
Na pág. 25, dá uma descrição incorreta da teoria de Bohr do átomo de hidrogênio. De fato, diz: "A descoberta de Bohr de que apenas algumas órbitas são estáveis não constitui uma restrição imposta pela teoria quântica, mas antes uma exceção em relação às previsões da teoria clássica. (...) Longe de descobrir uma nova restrição, Bohr descobrira as condições nas quais o elétron de um átomo de hidrogênio pode permanecer indefinidamente em órbita sem perder energia". O próprio Bohr, intelecto agudo e profundo, discordaria, tendo sempre sabido que suas órbitas estacionárias eram, não uma "exceção", mas incompatíveis com a física clássica. Na realidade, essas órbitas simplesmente não existem, proibidas pelo princípio de incerteza de Heisenberg.
Também a história da descoberta da mecânica quântica é incorretamente narrada. Diz o autor: "O ponto de partida deste projeto foi a demonstração de Heisenberg de que não é possível medir simultaneamente a posição e a velocidade de uma partícula como o elétron". Falso. O trabalho fundamental de Heisenberg, o "ponto de partida", é de 1925. Sua descoberta do princípio da incerteza (que é a impossibilidade descrita acima) é de 1927: quase um "ponto de chegada".
O grande físico americano Richard Feynman contou uma vez que fora convidado pelo governo estadual da Califórnia, onde residia, para examinar os livros didáticos de física que deveriam ser usados nas escolas públicas daquele Estado. Após a leitura, comentou que fora difícil achar alguma sentença completamente correta naqueles textos. Este é, aproximadamente, o estado em que me encontro em relação à física do livro de Maddox.
Mais um pouco? A descrição da descoberta da radiação cosmológica de fundo. "Em 1966, dois pesquisadores do que era então o Laboratório de Pesquisa da Bell, em Nova Jersey, ao investigarem a causa de um ruído captado por antenas de radar, observaram que uma radiação na chamada faixa de microondas do espectro parecia estar chegando à Terra de todas as direções com igual intensidade, de dia e de noite, e em todas as estações do ano. Essas características sugeriam que se tratava de uma fonte de radiação muito distante. Arno Penzias e Robert W. Wilson tiveram a coragem de levar a sério essa explicação". Tudo errado. A radiação de uma fonte distante não é isotrópica, ao contrário. A explicação é que essa radiação é proveniente de todos os pontos do universo em um passado remoto, sendo um vestígio do próprio Big Bang. E Penzias e Wilson, no trabalho em que relatam as descobertas, não se comprometem com a explicação, remetendo os leitores a um trabalho do grupo de Princeton (P.J.E. Peebles e outros) para interpretações. Ou seja, não tiveram a coragem de levar a sério a explicação.
Bem adiante, na pág. 299, confunde-se com o conceito de linearidade e sugere que a dificuldade com alguns problemas da mecânica quântica venham de uma não-linearidade, que não existe na mecânica quântica, uma teoria linear por construção.

Perguntas oportunas
Que tipo de descoberta está por ser feita, segundo Maddox? São, o mais das vezes, respostas a perguntas do tipo: por que a conservação da paridade é violada nas interações fracas? Ou, mesma pergunta, feita de outro modo, por que existe o neutrino de mão esquerda, e não o de mão direita? Passa tarefas para os cosmólogos, do tipo: medir a constante de Hubble com mais precisão (como se não se estivesse, o tempo todo, tentando fazer isso). O número de perguntas cujas respostas não são conhecidas, na física, é imenso, e é exatamente o que nos protege de um "fim da ciência". A arte de bem perguntar não está em identificar um grande número de fatos desconhecidos, mas de descobrir perguntas oportunas, ou seja, perguntas de resposta iminente, em um determinado momento da ciência. No que diz respeito à física, infelizmente, Maddox não demonstra competência para tanto, com o seu conhecimento aproximativo da física atual.
Trata-se então de um livro, como o de Horgan, inútil? Não. Nas seções que tratam de assuntos com os quais estou menos familiarizado, achei a leitura agradável e informativa. E, aí, uma de suas perguntas me pareceu muito interessante e profunda: "Qual é a base biológica para a capacidade humana de praticar a matemática? Pensando bem, não parece havermuita coisa, na história do Homo sapiens, capaz de estimular o aparecimento dessa capacidade através da seleção natural".
Pode ser que minhas críticas sejam excesso de zelo de um especialista intolerante. O leitor julgará. Aparentemente, porém, os tempos passaram e Maddox esqueceu a sua física. Nas áreas que não eram as suas, ter-se-á concedido menos autonomia e consultado mais amiúde os especialistas que o cercavam, em seu foro privilegiado.
Aos leitores interessados na ciência do futuro, recomendo Freeman Dyson. Qualquer livro dele. Diferentemente de Maddox, Dyson justifica longamente suas previsões, baseadas numa análise profunda da ciência e tecnologia atuais. Educa o leitor e lhe oferece imagens plausíveis do futuro, em lugar de miragens.

 


Henrique Fleming é professor do Instituto de Física da USP.

Henrique Fleming é professor do Instituto de Física da USP.
Top