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Victor Knoll - 21 - Dezembro de 1996
Prezado mestre
Foto da capa do livro Pedro Alexandrino
Pedro Alexandrino
Autor: Ruth Sprung Tarasantchi
Editora: EDUSP - 168 páginas
Foto do(a) autor(a) Victor Knoll

Dispomos já de um distanciamento histórico para compreender as manifestações artísticas do último quartel do século 19 e primeira metade do 20, que permaneceram ensombrecidas pela avalanche modernista ao proclamar o "novo" e, com ar inteligente, desprezar o "velho". Pesquisas recentes contemplam esse propósito. A reedição crítica da obra de Olavo Bilac é um exemplo ao qual se soma o trabalho de Ruth S. Tarasantchi sobre o pintor Pedro Alexandrino.

Nascido em 1856, desde criança trabalha como ajudante de pintor-decorador e, em 1883, torna-se aluno de Almeida Jr., com quem manterá sólida colaboração. Ao longo da década de 1890, passa a expor, desenvolvendo uma atividade artística só interrompida em 1942 ao morrer.
A obra de Pedro Alexandrino é solidária de uma cultura artística já consolidada. Seu realismo vai ao encontro do gosto e das expectativas do público consumidor da época. A sua obra é um espelho da sociedade paulista desse período: uma elite provinciana, impregnada de um verniz afrancesado, que procura marcar a sua diferença dos "italianinhos". Entretanto, é junto dessa elite social que irá brotar por sua vez uma elite leitora dos europeus, que propiciará a renovação das artes no Brasil.
Pedro Alexandrino é reconhecido em sua época como um mestre da natureza-morta e sobretudo um especialista no tratamento do metal. Não pinta cenas históricas, e sua incursão no retrato e na paisagem é pequena. Fixa-se no gênero natureza-morta (há quem tenha dito que por inspiração de Almeida Jr.), uma escolha temática já sedimentada quando de sua ida para Paris, em 1896, com uma bolsa do governo do Estado de São Paulo.
Na capital francesa estuda com René Chrétien e em seguida frequenta o ateliê de Vollon, dois pintores acadêmicos que desfrutavam de uma cômoda posição no cenário artístico da Cidade Luz e, como Pedro Alexandrino, eram alheios às transformações estéticas que borbulhavam naquele momento. Em 1907, nosso pintor expõe no "Salon", reduto dos conservadores, ao lado do "Salon d'Automne", que mostrava a obra de Cézanne, na qual aliás a natureza-morta ocupa um lugar de destaque. O compromisso estético de Pedro Alexandrino já está cristalizado e dessa maneira mostra-se refratário às novas concepções pictóricas.
Entretanto, pode-se dizer que no Brasil o academicismo tem uma história própria no panorama das artes plásticas, durante a primeira metade do século 20, ao lado da evolução que o trabalho artístico sofreu com os modernistas. O esforço de Ruth S. Tarasantchi é o de resgatar o valor artístico de um pintor acadêmico.
Assim, a autora procura acompanhar a trajetória biográfica do artista e se propõe a fazer um exame de sua pintura, detendo-se por vezes com habilidade na análise de determinadas obras. Trata-se de uma tentativa ímpar de estabelecer um lugar para ele na história da pintura brasileira. Um resgate que procura corrigir o catálogo da Fundação Bienal de São Paulo a propósito da mostra "Brasil Século 20", realizada em 1994 e na qual Pedro Alexandrino está ausente.
Certas circunstâncias da vida artística paulistana, alguns anos antes e depois da semana de 22, se não apontam para uma contradição, no mínimo nos surpreendem e são um indício do perigo das catalogações históricas. A exposição de Anita Malfatti em 1917 é considerada um marco decisivo das transformações estéticas do país e, no entanto, a musa do modernismo, dois anos depois, em 1919, inicia os seus estudos de pintura com Pedro Alexandrino, o "prezado mestre", como se lê num cartão que remete a ele.
De seu lado, no mesmo ano em que se dá a exposição-marco de Anita Malfatti, outra musa modernista inicia os seus estudos de pintura com o artista acadêmico: Tarsila do Amaral. Completando este quadro, lembremos que Bonadei, com 19 anos de idade, é aceito por Alexandrino como aluno em 1925, vivendo no ateliê do mestre em metais o seu período de formação básica.
A tarefa à qual Ruth S. Tarasantchi se propôs é difícil, pois trata-se de resgatar uma obra comprometida com um projeto estético cristalizado que, por seu turno, não o destitui de sentido histórico, seja no plano artístico, seja no social. Não nos esqueçamos que Pedro Alexandrino vendeu o que produziu ao longo de seus 86 anos de vida.
Os jornais se referem a sua obra e a suas exposições com frequência -o artista é notícia. Em 1936, o pintor recebe a visita de Tarsila do Amaral, que faz este comentário: "Pedro Alexandrino tem poucos quadros novos para mostrar. Os colecionadores se apressam em vir buscá-los ainda com tinta fresca".
O valor estético da pintura de Alexandrino é reconhecido nas pinceladas largas sem a preocupação do detalhe, no fundo escuro que anula a profundidade, no uso expressivo das luzes, na adoção das formas cilíndricas e na exploração do reflexo dos objetos uns nos outros.
Tal enumeração significa que a realidade exterior é apenas o ponto de partida para a confecção da imagem plástica, embora a autora, ao mesmo tempo, sugira que o pintor reproduz com fidelidade o objeto.
Entretanto, mais nos interessa esta observação: "A importância dada às transparências, aos brilhos, ao fundido, ao efeito de conjunto, será a preocupação do pintor. Uma visão sintética fará surgir de uma penumbra misteriosa objetos e frutos". Pode-se mesmo vislumbrar em suas telas uma certa herança da pintura holandesa.
Com Pedro Alexandrino cumpre-se um ciclo da pintura no Brasil. Suas naturezas-mortas, agora observadas com a devida distância histórica, são o acabamento de um padrão de gosto. Nele está catalisada uma tradição, os anseios de segmentos sociais abastados, porém sem formação artística apurada, que sentem a necessidade de povoar o seu ambiente doméstico com um imaginário.
A obra de Alexandrino nos mostra, ao considerarmos as quatro primeiras décadas do século 20, o duplo caráter da realidade histórica vivida em São Paulo e talvez, também, em outras cidades como o Rio de Janeiro, onde conviveram as ambições da "nova arte" proclamada pelos modernistas e os padrões estéticos estabelecidos no passado. O artista está entre aqueles que viveram a agonia de uma fatura pictórica. Nem por isso destituída de valor artístico.
Homem de vida contida, parece que o único ato de desprendimento que consta em sua biografia foi ter apoiado a Revolução Constitucionalista de 32, doando quadros em benefício dos combatentes. Mais uma vez, temos aí o testemunho de sua presença como pintor na sociedade paulistana da época.
Além da parte ensaística, o livro de Ruth S. Tarasantchi conta com uma detalhada bibliografia sobre Pedro Alexandrino e uma catalogação dos trabalhos do pintor. Essas duas partes do livro são por si só possuidoras de extraordinário mérito, pois temos aí um sólido ponto de partida para quem pretenda estudar a obra de Alexandrino ou esteja em busca do estabelecimento de alguma correspondência.
Comentando a visita que fez ao artista em 1936, Tarsila do Amaral não observa nas telas que estão no ateliê "sintomas de pesquisa nem de decadência" e declina que "a sua arte sem pretensões à genialidade criadora é sólida, por que ele é incontestavelmente um mestre do desenho naturalista, é sincera por que a alegria das cores transborda dos seus quadros em pinceladas firmes conscientes, é honesto por que não transgride na sua arte os princípios que adotou como sendo verdadeiros".
O incrédulo leitor que faça uma visita à Pinacoteca do Estado, onde algumas telas de Pedro Alexandrino estão expostas. 

Victor Knoll é professor do departamento de filosofia da USP.
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