Poincaré e Einstein
JAIRO JOSÉ DA SILVA
Conservadorismo impediu pensador francês de se tornar o pai da teoria da relatividade
Ensaios fundamentais
Henri Poincaré
Organização: Antonio Augusto Passos Videira e Ildeu de Castro Moreira
Tradução: Vera Ribeiro
CONTRAPONTO
272 p., R$ 38,00
Poincaré contribuiu para praticamente todos os campos da matemática, além da física e da filosofia da ciência, revolucionando alguns deles. Ensaios fundamentais fornece uma idéia de sua gama de interesses, indo da estabilidade do sistema solar (problema que lhe rendeu, em 1888, o prêmio oferecido por Oscar 2º da Suécia, e cujo tratamento inaugura a teoria de sistemas dinâmicos caóticos) à teoria da relatividade especial, tópico que merece particular atenção.
O chauvinismo francês considera Poincaré o “pai” não reconhecido da teoria atribuída a Einstein. É exagero, mas com algum fundamento in res. Vejamos. Em A ciência e a hipótese (1902) – livro de conteúdo filosófico lido por Einstein no período 1902-04 –, Poincaré afirma textualmente a inexistência de espaço e tempo absolutos; em 1904, ele inclui seu princípio de relatividade (é impossível detectar o movimento absoluto de matéria, ou seja, o movimento relativo de matéria ponderável com relação ao éter) entre os princípios fundamentais da física, e conclui que talvez sejamos forçados a construir uma nova mecânica em que a inércia cresce com a velocidade, tendendo ao infinito à medida em que essa se aproxima da velocidade da luz no vácuo.
Respeito à tradição
Poincaré também procurou dar um sentido físico à hipótese puramente ad hoc e formal de tempo local de Lorentz. Mas nesses e outros lampejos de uma teoria da relatividade, Poincaré foi incapaz de abandonar completamente a tradição, tomando, às vezes, o princípio de relatividade antes como uma hipótese que um verdadeiro princípio, e preservando, em oposição a tempo local, uma noção de tempo real, o éter e a possibilidade de movimento absoluto, ainda que indetectáveis por princípio.
Isso mostra que Poincaré não compartilha do pressuposto epistemológico fundamental que subjaz ao “approach” de Einstein à sua teoria da relatividade de 1905: o que não se pode, em princípio, observar, não se deve pressupor. Poincaré não se tornou o criador da teoria especial da relatividade por puro conservadorismo; por respeito à tradição ele se deteve um passo antes de revolucionar nossos conceitos de espaço e tempo.
Einstein, em seu celebérrimo artigo de 1905, não só não menciona nenhum trabalho de Poincaré sobre a relatividade como afirmou depois, não se sabe com que grau de honestidade, não ter lido nada escrito por Poincaré sobre o assunto. Poincaré também não menciona Einstein no ensaio sobre relatividade ou teoria quântica presentes nesse volume. Em “As relações entre a matéria e o éter” (1912), porém, ele faz referência à explicação dada por Einstein, também em 1905, para o efeito fotoelétrico (que reforçou a hipótese quântica de Planck e deu a Einstein o Nobel de 1921); dois parágrafos depois, atribui o princípio de relatividade a seu amigo Lorentz. Enfim, Poincaré não parecia fazer questão de esconder seu rancor contra Einstein, nem que não o considerava o criador da teoria especial da relatividade.
Alguns ensaios do livro, particularmente os sobre física, estão datados e mereceriam dos editores algumas notas ou ensaios introdutórios contextualizando-os e colocando-os em perspectiva. O ensaio sobre geometria, porém, em que Poincaré resenha o trabalho seminal de Hilbert, mantém toda a sua atualidade. Nesse artigo, Poincaré mostra claramente que uma geometria (e há muitas) é pura criação do espírito humano, reforçando, sem mencioná-la, a sua tese filosófica (a meu ver estritamente correta) segundo a qual uma geometria não é a rigor uma ciência, mas apenas um instrumento de ordenação da experiência, um esquema do entendimento a ser avaliado por critérios de adequação antes que de verdade.
Poincaré foi um pensador fortemente intuitivo, com grande capacidade de imaginação visual, cético sobre a relevância da lógica para a matemática (postura aparentemente conservadora, dada a onda logicista de então, mas justificável da perspectiva hodierna, quando os préstimos da lógica para a matemática e a filosofia mostram-se, se não inexistentes, muito aquém do esperado), mas profundamente honesto como cientista e como homem – o que pode ser atestado por sua defesa de Dreyfus.