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Silviano Santiago - 109 - Junho de 2016
Palavra sobre palavra
Um curso exercício em arqueologia literária feito pelo crítico e ensaísta Silviano Santiago
Foto do(a) autor(a) Silviano Santiago

SILVIANO SANTIAGO       

Palavra sobre palavra

Um curto exercício em arqueologia literária feito pelo crítico e ensaísta Silviano Santiago

        

 

No início do século XX, os diversos movimentos de vanguarda deram destaque à literatura, concedendo-lhe o lugar mais contundente e original para a reflexão sobre a arte. O futurismo italiano, primeiro movimento vanguardista em data, desloca para o ato de escrever a preocupação pelo fazer pictórico que, desde o Impressionismo, vinha sendo o lugar por excelência para a reflexão sobre o moderno em arte.

Ao operar o deslocamento da reflexão sobre a imagem para a reflexão sobre a palavra, Filippo Marinetti também opta por avançar a questão da velocidade na comunicação como valor artístico inédito. Vale-se de metáforas, que são tomadas da experiência proporcionada ao homem moderno pela máquina a vapor, o automóvel e, finalmente, o aeroplano. Escreve: “Nós declaramos que o esplendor do mundo se enriqueceu com uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um automóvel de corrida adornado de grossos tubos como serpentes de fôlego explosivo [...] é mais belo do que a Vitória de Samotrácia”.

 

Questionamentos radicais

No Manifesto Futurista (1909), que não está isento de um vocabulário bélico e misógino para traduzir a vontade machista que a primeira vanguarda literária expressa (1), Marinetti conduz o leitor – ou o adepto das novas idéias, como anos depois serão os modernistas paulistas – a dois questionamentos radicais. O primeiro deles tem como objeto os templos passadistas do saber - a biblioteca, o museu e a universidade. Essas instituições representavam a abominável paralisia intelectual do presente.

Aliás, os artistas modernos pouco a pouco iriam substituindo aqueles templos pelo elogio dos “palácios plebeus”, para me valer da imagem que o argentino Edgardo Cozarinsky inventa para designar as pequenas, pobres (2) e, logo depois, majestáticas salas de cinema. Na página de abertura da revista Klaxon (1922), pode-se ler: “A cinematografia é a criação artística mais representativa da nossa época. É preciso observar-lhe a lição”.

O segundo questionamento visa ao uso escolar e tradicional da linguagem fonética. O marco zero da arte de vanguarda está na palavra em liberdade. Para articular frases, valíamo-nos da prisão da sintaxe latina (sujeito + verbo + predicado – de preferência nessa ordem). Assumida a beleza da velocidade, as palavras – em particular os substantivos e os verbos no tempo infinito - existem soltas e em total liberdade na folha de papel em branco. Era chegado o momento da teorização sobre os princípios da “imaginação sem fios”, para usar expressão do manifesto.

A Marinetti e aos futuristas pouco lhes interessa também e inicialmente a prosa de ficção. Interessa-lhes a linguagem poética. Portanto, antes de discorrer sobre a literatura como a atravessar uma nova etapa na infindável construção da tradição ocidental, é a poesia que se torna o lugar privilegiado onde se ergue o programa vanguardista com vistas ao uso da linguagem destituída da prisão imposta pela sintaxe latina. A linguagem poética futurista incentiva os exercícios artísticos audaciosos, que serão sugeridos e descritos no Manifesto técnico da literatura futurista (1912).

Citemos alguns princípios da nova organização sintática da “frase”. É preciso dispor “os substantivos ao acaso, assim como nascem”. – “Deve-se usar o verbo no infinito, para que se adapte elasticamente ao substantivo, e não se submeta ao eu do escritor, que observa ou imagina”. – Deve-se abolir o adjetivo, porque ele é incompatível com nossa visão dinâmica; deve-se abolir o advérbio, porque ele “conserva a frase numa fastidiosa unidade de tom”. – O substantivo deve ser seguido pelo substantivo ao qual está ligado por analogia: homem-torpedeiro, multidão-ressaca, porta-torneira... – “Assim como a velocidade aérea multiplicou o nosso conhecimento do mundo, a percepção por analogia torna-se mais natural para o homem. É preciso suprimir o como, o qual, o assim, o semelhante a” (3).

 

Sintaxe alternativa

O fascínio por uma sintaxe alternativa será complementado por exemplos de formas de representação artística que escapam à tradição ocidental elitista. Alguns exemplos. O piano-mecânico é elogiado por Marinetti e justifica a ausência do eu na frase, ou seja, do executante na elaboração do texto poético. Lemos no manifesto de 1912: “Para um poeta futurista, nada é mais interessante que o agitar-se do teclado de um piano mecânico”.

O manifesto menciona também, como já anunciado, a descoberta do francês Georges Méliès: “O cinematógrafo nos oferece a dança de um objeto que se divide e se recompõe sem a intervenção humana”. E incorpora, ainda, os cinco sentidos e o barulho dos motores de combustão. Cito: “Esforçar-se para dar, por exemplo, a paisagem dos odores que o cão percebe. Escutar os motores e reproduzir os seus discursos”.

Através duma reflexão sobre a poética de vanguarda, Marinetti desenhou as possibilidades do futuro das artes no século XX, onde a inteligência, ou a razão, perderia o lugar nobre, para cedê-lo à divina intuição. Conclui ele: “Poetas futuristas! Eu vos ensinei a odiar as bibliotecas e os museus, preparando-vos para odiar a inteligência, despertando em vós a divina intuição, dom característico das raças latinas. Mediante a intuição, venceremos a hostilidade aparentemente irredutível que separa a nossa carne humana do metal do motor”.

Se o Futurismo centralizou as reflexões sobre a linguagem poética em torno da auto-suficiência da palavra - um significante dicionarizado ou mero ruído, praticamente desprovido de sujeito -, já o segundo movimento vanguardista em data, o Dadá, terá como alvo o discurso humano tradicional, ou seja, a lógica discursiva tal como entronizada pela racionalidade ocidental.

O Manifesto Dadá 1918 abre com a seguinte afirmação: “A magia de uma palavra – Dadá – que pôs os jornalistas diante da porta dum mundo imprevisto, não tem para nós nenhuma importância”. Questiona-se o autoritarismo da razão, tal como o prefigura a consulta ao dicionário lexical. Não se trata mais de buscar o modo de organizar os vocábulos soltos na página; trata-se de desconfiar da linguagem, tal como codificada pelo homem racional.

Dadá é a favor da negação da racionalidade como força motora da expressão humana inteligente. Se o Futurismo é nitidamente construtivo, Dadá tende ao anarquismo estético. A própria idéia de se escrever um “manifesto” torna-se ridícula. Escreve Tristan Tzara:  “Eu redijo um manifesto e não quero nada, eu digo, portanto, certas coisas e sou por princípio contra os manifestos, como sou também contra os princípios”.

 

Discurso e contradição

Sob a responsabilidade irresponsável do artista, o discurso fonético não afirma nem nega, não convence nem institui princípios a serem seguidos pelos discípulos ou adeptos. O discurso fonético já vem, desde a primeira letra, contaminado pela contradição. Expressa a contradição. E é desta que o manifesto falará logo em seguida: “Eu redijo este manifesto para mostrar que é possível fazer ações opostas simultaneamente, numa fresca respiração única; sou contra a ação; pela contínua contradição, pela afirmação também, eu não sou nem para nem contra, e não explico por que odeio o bom-senso”.

Quem examina o célebre cartão postal de Mona Lisa (“L.H.O.O.Q.”), onde Marcel Duchamp emprestou bigode à senhora italiana, entenderá imediatamente o que se deve entender por uma lógica artística que pretende “fazer ações opostas simultaneamente, numa fresca respiração única”. Afirma-se o melhor da tradição renascentista - o icônico que representa o quadro de Michelangelo, para negar seu valor universal pelo gesto demolidor e libertário - o bigode numa imagem de mulher. Como se lê no Manifesto Dadá 1918: “Eu gosto de uma obra antiga pela sua novidade. Só o contraste nos liga ao passado”. O contraste que nos liga ao passado pode ser o verso politizado de Oswald de Andrade: “Minha terra tem palmares”, que é escrito em cima do verso ufanista de Gonçalves Dias: “Minha terra tem palmeiras”.

Se o Futurismo fazia o elogio da intuição, em oposição ao domínio por séculos da razão, Dadá elege a “espontaneidade” – ou o jem’en-foutisme (o pouco-me-importa) - como fator vital da expressão humana. “A simplicidade ativa” – diria Tzara, de maneira um tanto enigmática. É assim que as manifestações artísticas são “uivos das dores crispadas, entrelaçamento dos contrários e de todas as contradições, dos grotescos e das inconseqüências: A VIDA”.

O discurso em linguagem fonética, consciente e racional, levará o golpe mais certeiro no terceiro movimento em data, o Surrealismo, liderado por André Breton. O Manifesto do Surrealismo (1924) incorpora principalmente as idéias de Freud sobre a relação entre a linguagem e a estrutura do inconsciente, desenvolvidas no tratado Interpretação dos sonhos.

 

As descobertas de Freud

O surrealismo entra em terreno até então não mapeado pela reflexão crítica literária. Escreve Breton, dando continuidade (continuidade que ele reconhecerá em ensaio de Les pas perdus) a Dadá: “Vivemos ainda no reinado da lógica, eis, bem entendido, aonde eu queria chegar. Mas os processos lógicos de nossos dias, só se aplicam à resolução de problemas de interesse secundário. O racionalismo absoluto, que continua na moda, só permite observar fatos de pequena relevância de nossa experiência”.

Em seguida a essa afirmação, Breton dá nome à sua principal fonte teórica: “Deve-se dar graças às descobertas de Freud. Na trilha de suas descobertas, esboça-se enfim uma corrente de opinião a favor da qual o explorador humano poderá levar mais longe suas pesquisas, autorizado que estará a não mais levar em conta realidades sumárias. A imaginação está talvez a ponto de retomar seus direitos”. Como dirá um jovem dos anos 1968, a imaginação ganha o poder, roubando-o da razão, entronizada pelos filósofos desde os tempos clássicos.

A imaginação ganhou o poder através das “palavras em liberdade”, de Marinetti, através da criação artística desobediente à lógica que rechaça a contradição, de Tzara, e, finalmente, através do automatismo psíquico que ganha foros de cidadania artística, como em Breton.

Toda continuidade vanguardista revela pequenos pontos de ruptura. E um dos mais interessantes aparece no momento em que Breton corrige – com a ajuda do poeta Pierre Reverdy – um princípio de composição poética, que tinha sido lançado por Marinetti no manifesto de 1912. O italiano ordenava que se suprimisse, na comparação poética, a conjunção que ligava os substantivos, ou seja, ordenava a supressão das partículas como, qual, assim, semelhante a.

Pierre Reverdy insiste no fato de que a “imagem surrealista” não nasce de efeitos de comparação, “mas de aproximações de duas realidades mais ou menos afastadas”. Continua Reverdy: “Quanto mais distantes e justas forem as relações entre as duas realidades aproximadas, tanto mais forte será a imagem – mais terá ela capacidade ou poder emotivo e realidade poética”.

Estava nascido o princípio de composição da imagem surrealista. Da aproximação inconsciente e involuntária de dois vocábulos brota um “clarão da imagem”. Diz Breton: “O valor da imagem depende da beleza da centelha obtida”, e esclarece: “quando a diferença existe apenas como na comparação , a centelha não se produz”.

O surrealismo encontra na sua rota a experiência das drogas alucinógenas, que liberam definitiva e radicalmente a imaginação da vida consciente. Estaríamos falando dos paraísos artificiais de Charles Baudelaire, do teatro da crueldade de Antonin Artaud e das portas da percepção de Aldous Huxley. Escreve Breton: “Não será o temor da loucura que nos forçará a hastear a bandeira da imaginação a meio pau”.

Acrescenta Breton: “Acontece com as imagens surrealistas como com essas imagens do ópio que o homem não evoca, mas que ‘se oferecem a ele espontaneamente, despoticamente. Ele não pode afastá-las, pois a vontade não tem mais força e não mais governa as faculdades’”. [1] A palavra poética é dom gratuito do inconsciente, é negação do poder da vontade e da razão sobre a mente. Ela é, para retomar outra expressão de Breton, “automatismo psíquico”. Graças a ele, “alguém se propõe a exprimir seja oralmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de qualquer preocupação estética ou moral”.

Como escreverá o filósofo francês Gaston Bachelard: “A conquista do supérfluo proporciona uma excitação espiritual maior do que a conquista do necessário. O homem é uma construção do desejo e não da necessidade”.    

                                               *

O lugar concedido à literatura pelos sucessivos manifestos de vanguarda do século XX indicia uma série de princípios formais e conteudísticos, responsáveis pela concepção que temos hoje da linguagem fonética, do discurso poético e, de maneira geral, do discurso artístico. Não quero dizer que, neste início de milênio, devamos seguir ao pé da letra os valores estéticos instituídos na primeira metade do século passado. Quero dizer que, nos dias de hoje, os valores defendidos pelos vanguardistas nos servem ainda de baliza no mapeamento das questões sobre a literatura ou a arte. Ou os reafirmamos, ou os negamos, ou então com eles entramos em conflito, em discussão. Eis o interesse desta fala arqueológica.

Levantar uma série de problemas concretos sobre o uso da linguagem fonética, em particular na poesia, a fim de que – familiarizados com o tom e o teor dos mais delicados e profundos argumentos da vanguarda histórica – leitor e ensaísta possam dialogar. Você possa dialogar com os companheiros, ou conversar com os escritos alheios e com os próprios escritos.

Dou-me conta de que o indivíduo-artista nunca esteve tão próximo de realizar o projeto das vanguardas históricas do que no momento em que o computador se tornou peça accessível. Em sua época, os futuristas freqüentavam as tipografias no único intuito de poder diagramar corretamente as palavras soltas e em liberdade. Hoje, com as ferramentas do “formatar”, escolhem-se a fonte, o estilo de fonte, o tamanho do tipo, a cor e os efeitos. Com um ou dois toques, podemos fazer, em casa, alinhamentos e espaçamentos atípicos, e imprimir o todo numa folha de papel, ou encaminhá-lo a um blog, menos convencional do que os atuais.

Por o computador e o Google terem se transformado em peças do cotidiano – em termos de tipografia ou de reprodução de imagem, respectivamente –, o indivíduo-artista pode trabalhar como nunca os jogos do presente em cima dos ícones do passado – palavras ou imagens -, à semelhança do modo posto em prática pelos adeptos do movimento Dadá. Pode copiar e colar palavras em cima de imagens, e vice-versa. Pode experimentar na própria casa as inumeráveis possibilidades de fazer “ações opostas simultaneamente numa fresca respiração única”.

Enfim, graças às possibilidades de se digitar o próprio texto com velocidade superior à da mão que escreve, ou que cata letras numa máquina datilográfica, o indivíduo-artista pode se entregar ao poder do inconsciente e acompanhar a velocidade dos “ditados do pensamento”.

Graças à invenção tecnológica, os processos vanguardistas de manuseio da palavra e da linguagem visual se tornaram matéria do cotidiano de qualquer jovem que se pretenda artista. Mãos à obra! Ou melhor: Mãos ao computador! Com a ajuda da intuição lúcida futurista, da espontaneidade anárquica Dadá e da sinceridade ultrajante do inconsciente surrealista.

 

NOTAS

 

(1) “Nós queremos glorificar a guerra – única higiene do mundo –, o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos anarquistas, as belas idéias que matam, e o menosprezo à mulher”.

(2) A sala de cinema - esclarece Edgardo em Palacios plebeyos - era chamada de Nickel Odeon porque se pagava um níquel (5 centavos de dólar) pelo ingresso. Era accessível a toda a população.

(3) A passagem dos modernistas das décadas de 1910 e 1920 pelo futurismo italiano não foi tão em vão, quanto certos historiadores começaram a apregoar depois de Marinetti e seus amigos terem se tornado adeptos do fascismo. Qualquer estudioso da poesia brasileira, posterior a João Cabral de Melo Neto e os poetas concretos, poderá notar, nos princípios econômicos que devem governar a frase poética futurista, vários dos valores sintáticos defendidos por nossos melhores poetas anteriores ao boom dos marginais, na década de 1970.

(4) Breton intercala na sua frase palavras do poeta Charles Baudelaire.

 

 

 

[1] Breton intercala na sua frase palavras do poeta Charles Baudelaire.

Silviano Santiago escritor e crítico literário.
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