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Hilário Franco Júnior - 115 - Dezembro de 0012
Outono da Idade Média e outono da Belle Époque
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HILÁRIO FRANCO JR.

Outono da Idade Média e outono da Belle Époque

Grandeza e limite de uma obra poética

 

O OUTONO DA IDADE MÉDIA

Johan Huizinga

Tradução: Francis Petra Janssen

COSAC NAIFY

656 p., R$ 159,00

 

 

          Toda obra historiográfica está ao mesmo tempo ligada ao passado, que pretende explicar, e ao presente, do qual tira, consciente ou inconscientemente, sua razão de ser. Os estudos sobre a época de Péricles, por exemplo, muitas vezes ensinam menos sobre a democracia ateniense que sobre a moderna visão de democracia. Examinar a frequente presença de Carlos Magno na documentação do século XII geralmente informa sobre essa época, raramente sobre o personagem e seu reinado. A idealização romântica que os historiadores do século XIX fizeram da Idade Média é mais rica para revelar o período que estuda do que o estudado. Nesses, e em muitos outros exemplos possíveis, o resultado não decorre necessariamente de contaminação ideológica ou de deficiência metodológica, e sim dos limites epistemológicos próprios à fabricação da História.

          Nem os maiores historiadores podem ser maiores que seu tempo. É o caso de Johan Huizinga, cujo celebrado Erasmus, de 1924, revela tantas projeções cruzadas entre biógrafo e biografado que no prefácio da tradução francesa Lucien Febvre dirá se tratar do “livro de um holandês sobre um holandês”. Do mecanismo especular não tinha escapado a mais importante obra do mesmo autor – O outono da Idade Média, publicado em 1919 e recentemente relançado no Brasil, agora em tradução direta do original e em bem cuidada edição.  

 

Outono

          O outono ali descrito pelo então professor da Universidade de Leiden é em certa medida tanto o da Europa da época de elaboração do livro, começos do século XX, quanto o da dos séculos XIV-XV. Centrando-se na história cultural, Huizinga não apenas exercitava o suposto arbítrio do historiador na escolha do seu material e da sua abordagem; ele dialogava com seus contemporâneos. Mesmo não descartando a existência de outros fatores no processo histórico, sobretudo o político e o econômico, ele atribui papel central à cultura porque ao “enquadrar as emoções em formas fixas” ela permitiu “que o homem não se entregasse à barbárie” (OIM, 179). Esta apreciação estava fundada nos documentos medievais examinados pelo historiador, que não podia porém, evidentemente, abstrair de seu próprio mundo. Como não ver os enormes interesses econômicos das nações europeias então recém-industrializadas? Como desprezar o encadeamento de conquistas, ressentimentos e retaliações provocado pela corrida colonial? Como esquecer os dez milhões de europeus mortos na guerra de 14-18, exatamente enquanto escrevia seu livro? A afirmativa de que “todos os elementos da vida mostravam-se abertamente, com alarde e crueldade” (OIM 11), era válida tanto para a época investigada quanto para a época vivida pelo historiador.

          Não se pode deixar de supor que quando Huizinga qualifica o outono medieval –  vida “dura”, de “dureza cruel” (OIM, 37), “dura, cruel e falsa” (OIM, 124), “amargamente crua” (OIM, 179), realidade “dura (OIM 56), “violenta, dura e cruel” (OIM, 119), justiça de “inacreditável e ingênua dureza” (OIM 36), “dura e parcial” (OIM 41) – ele estabelecia analogias com seu próprio tempo. Assim como o profundo pessimismo dos séculos XIV-XV contrastava com o otimismo dos XII-XIII, o desencanto pela vida em 1914-1945 confrontava com a alegria despreocupada de 1890-1914, período retrospectivamente conhecido por Belle Époque. Em expressiva ambiguidade, Huizinga confessa no Prefácio que escrever seu livro tinha sido “como se meu olhar estivesse voltado para as profundezas de um céu noturno, mas de um céu tomado de vermelho-sangue, pesado e desértico, de um cinza-chumbo ameaçador, revestido de um falso brilho cúprico.” Mais ainda, “o quadro tornou-se mais sombrio e menos sereno do que pensei vislumbrar quando iniciei o trabalho” (OIM, 6). Ora, o Prefácio está datado do último dia de janeiro de 1919, menos de três meses depois do fim da Primeira Grande Guerra. Naquele momento a Belle Époque pertencia definitivamente ao passado, tanto quanto a Idade Média. É talvez a ambas que Huizinga se refere quando fala da “nossa nostalgia da beleza efêmera de outros tempos” (OIM 37).  

          Efêmera porque onírica. O “sonho belo do ideal cavaleiresco” é parte de “um teatro social” no qual se “constrói o jogo da vida” (OIM, 119). A literatura amorosa revela “o anseio pela vida bela, a necessidade de a vida parecer mais bela do que era” (OIM 183). Diante das dificuldades concretas, o homem medieval criou um droomwereld, um mundo sonhado, mundo do jogo, mundo da ilusão (palavra derivada de ludere, “brincar”, “jogar”), que como defenderá mais tarde em outra obra famosa (Homo ludens, 1938; tradução brasileira 1980) seria mesmo anterior a tudo, seria o fundamento da própria cultura. Como esta sempre “almeja tornar real um mundo imaginário mediante a recriação das formas sociais” (OIM, 56), o trabalho do historiador é decodificar esse processo, é “captar o conteúdo essencial que repousa na forma: não será sempre esta a tarefa da pesquisa histórica?” (OIM, 7).  

 

Papel da cultura

          Tarefa difícil, por isso de toda produção historiográfica, ancorada no passado-presente, apenas uma pequena parte se projeta no futuro, que antecipa pela temática, pela abordagem, pelo método. Este é o caso de O outono da Idade Média. Poder-se-ia especular se a Geschichtswissenschaft als Kulturgeschichte (para retomar o título do livro que Christoph Strupp publicou sobre Huizinga em 2000) ali praticada, se a convicção que Huizinga tinha no papel da cultura como barreira aos instintos destrutivos do homem, não teria influído na semelhante teoria freudiana, ou ao menos a reforçado. De fato, a tradução alemã de O outono da Idade Média é de 1924, Freud conclui seu O mal-estar na civilização (Kultur) em fins de 1929. Assim como, dirá Marc Bloch em resenha à segunda edição alemã, o livro de Huizinga é “um estudo de psicologia histórica, psicologia coletiva”, o livro de Freud trata do entrecruzamento da psicanálise do coletivo com a do individual. A estilização do amor analisada por Huizinga servia de exemplo para a Kultur freudiana como “regulamentação dos homens entre si”. O rígido formalismo nas relações sociais para disciplinar a altivez e a cólera da irrequieta aristocracia medieval, ilustra bem a observação de Freud de que “o preço a pagar pelo progresso da cultura é uma perda de felicidade”.

          Mas para ficarmos apenas no âmbito do medievalismo dentro da corrente historiográfica mais prestigiosa do século XX, a dos Annales, é inegável que a obra de Huizinga inspirou Marc Bloch e Jacques Le Goff. A célebre seção de A sociedade feudal (1939-40) de Bloch intitulada “As condições de vida e a atmosfera mental”, claramente ecoa o espírito de O outono da Idade Média, definido pelo subtítulo “estudos sobre as formas de vida e de pensamento”. Da mesma maneira que, em um artigo de 1915, Huizinga tinha defendido que os estudos históricos abandonassem a ideia de “causa fundamental”, substituindo-a pela de “fatores na história”, em obra póstuma (Apologia da História, 1949) Bloch criticaria o apego dos historiadores ao “ídolo das origens”, à busca de supostas causas para explicar fenômenos sociais. Pouco mais de meio século depois do lançamento do livro de Huizinga, Jacques Le Goff propôs uma abordagem de grande repercussão até hoje, e que denominou Antropologia Histórica do Ocidente Medieval, desenvolvida em torno de ideias caras ao holandês –  conceitos como continuidade, representação, sistema de valores; objetos de estudo como corpo, morte, sonho, emoção, cores, moda, imagem. Na entrevista que concedeu em 1975 para a tradução francesa de O outono da Idade Média (e reproduzida na edição brasileira), Le Goff afirma que “desde que se atinge as camadas profundas da história o que se vê são as continuidades”, ideia sugerida pela sua leitura de Huizinga e que levaria o medievalista francês a elaborar o conceito de uma longa Idade Média que se estende até a Revolução Industrial.

 

Literatura e artes plásticas

            Buscando apreender a essência contida na forma, Huizinga recorreu sobretudo à literatura e às artes plásticas. Para a primeira ele estava há muito instrumentalizado devido à sua formação de filólogo e orientalista. As segundas foram para ele uma descoberta recente, vinda da forte impressão que lhe provocou a exposição de Bruges de 1902, sobre a pintura dos primitivos flamengos. Já em 1905, na aula inaugural que proferiu na Universidade de Groningue, ele examinou “O elemento estético das representações históricas”. Os dois tipos de fontes passaram desde então a ser usados complementarmente por ele. Como não lhe bastava “ler os poemas de amor e as descrições de torneios em busca do conhecimento e da representação vívida de detalhes históricos, se não pudermos ver os olhos, a luz e a sombra” (OIM 121), seu entendimento das fontes foi em parte guiado pela intuição. Se esse procedimento gerou insights interessantes, podia também fragilizar a descrição de seu objeto. Felizmente seu antigo interesse pela Antropologia permitiu certo olhar do exterior, que minimizou aquele risco, sem eliminá-lo.       

          Se as emoções profanas mereciam atenção das autoridades para que torneios não degenerassem em conflitos, que paixões não levassem a adultérios e incestos, mais delicados eram os arrebatamentos espirituais. O outono medieval como toda época de questionamentos  profundos tinha sensibilidade à flor da pele, ora dirigida para o mundo ora para o céu.  Como nesse último caso as repercussões eram mais relevantes, acreditava-se, “a Igreja ficava atenta tão logo as emoções do misticismo se transformavam em convicções bem formuladas ou passavam a ser aplicadas à vida social.” (OIM, 323) Em outras palavras, quando a espiritualidade exacerbada da época ultrapassava a tênue fronteira entre ortodoxia e heresia. Huizinga reconhece, portanto, que nos séculos finais da Idade Média havia forte necessidade de se dar formas ao sagrado, mesmo eróticas, como mostra o misticismo sensual de então.

          Mas ao qual, curiosamente, ele não dedica muita atenção. É o caso de Bosch, citado uma única vez, embora numa resenha que publicaria em 1928 critique o livro de Max Friedländer (Altniederländische Malerei, Berlim, 1927) por interpretar a fantasmagoria do pintor como invenção, ironia e gosto pela facécia. É o caso ainda da presença em todo norte europeu, inclusive nos Países Baixos, de comunidades do heteróclito movimento conhecido por Livre Espírito para o qual o ato sexual santifica e devolve a virgindade. Mas em O outono da Idade Média os hereges de todas as sensibilidades aparecem muito pouco. O fato é relevante, pois traz à tona um procedimento metodológico problemático: Huizinga busca padrões de cultura, e assim quase sempre deixa de lado o atípico, o marginal (embore chame a atenção para a pintura em que São José fabrica uma ratoeira), elementos que por contraste poderiam melhor iluminar a norma cultural.    

          Quando na referida entrevista Jacques Le Goff afirma que O outono da Idade Média é um livro poético, e que essa poesia “exprime a grandeza e, ao mesmo tempo, o limite da obra”, ele toca num ponto essencial. A mesma ideia é, de certa forma, desenvolvida por Peter Burke em um artigo de 1986 igualmente reproduzido na edição brasileira: penetrado de nostalgia, o livro pode ser considerado “um caso de medievismo romântico à maneira de Walter Scott ou Gabriel Rossetti”. Aqueles dois grandes historiadores reconhecem que o estudo de Huizinga é sério, erudito, inovador e inspirador, mas julgam-no plástico em demasia. Às vezes é verdade, às vezes não. O belíssimo título, por exemplo, não é mero ornamento, revela o desacordo do autor com um livro que ele admirava e citou algumas vezes, A cultura do Renascimento na Itália publicado em 1860 pelo suíço Jacob Burckhardt. Para Huizinga – e a historiografia posterior tenderia a lhe dar razão – Burckhardt exagerara no contraste entre medieval e renascentista, esquecendo que “também na Itália do século XV a base sólida da vida cultural ainda continuava sendo genuinamente medieval, e até nas próprias mentes renascentistas os traços medievais estão sulcados muito mais fundo do que normalmente se acredita” (OIM 553-4). A metáfora do outono dá com precisão a ideia de transformação, de etapa necessária para a posterior primavera renascentista.      

          Talvez, de fato, o estilo de Huizinga nem sempre seja do gosto atual. Mas não se pode minimizar o fato de que toda historiografia é produto cultural, e enquanto tal sujeita a disponibilidades documentais, padrões teóricos, procedimentos metodológicos, estilos literários, que mudam de local para local, de época para época. Apesar da insistência de muitos historiadores em atribuir um caráter plenamente científico à sua disciplina, ela sempre dependerá do seu quadro geral de produção e de recepção. O texto de um historiador jamais será uma demonstração. Como em poucas centenas de páginas descrever analiticamente anos, décadas ou mesmo séculos? Como entender em profundidade uma outra cultura se às vezes é difícil entender a sua própria? Existe a documentação, é claro, mas as frequentes contradições e lacunas no interior dela devem impedir todo sentimento de soberba. Como reduzir a um denominador comum o comportamento, o pensamento, a sensibilidade, de milhares ou de milhões de pessoas? E se, hipoteticamente, essa meta fosse alcançada, qual seria sua legitimidade epistemológica? Onde colocar e como avaliar o que escapa aos padrões?   

          Como Huizinga reconhece, sempre há “aquela inevitável unilateralidade sem a qual não se forma nenhum juízo histórico” (OIM 553). As ricas informações reunidas por ele poderiam, é claro, ser estruturadas e interpretadas de outras maneiras, mas o fundamental é que o quadro resultante envolve, ensina, faz refletir. E depois, é preciso dizer, todo fazer historiográfico é um exercício de possibilidades.

 

 

 HILÁRIO FRANCO JÚNIOR é professor de história social do departamento de história da Universidade de São Paulo

Hilário Franco Júnior
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