Logotipo do Jornal de Resenhas
Luiz Felipe Sahd - 120 - Setembro de 2021
O Estado como pessoa moral composta
Foto da capa do livro The moral person of the state
The moral person of the state
Autor: Ben Holland, 2017
Editora: Cambridge University Press - 261 páginas
Foto do(a) autor(a) Luiz Felipe Sahd

A noção de personalidade do Estado espreita logo abaixo da superfície da política moderna. Quando culpamos os Estados por erros históricos, os admoestamos a cumprir suas promessas ou falamos sobre suas identidades e interesses, pressupomos que eles são, em certo sentido, pessoas. As dívidas soberanas e as obrigações do tratado persistem por gerações porque não se vinculam a pessoas individuais, mas à pessoa jurídica do Estado. Embora a ideia de personalidade do Estado tenha saído de moda em meados do século XX, em grande parte por causa de suas associações com o fascismo e a metafísica idealista, ela tem sido objeto de interesse renovado nas últimas duas décadas. The Moral Person of the State, de Ben Holland, é um excelente estudo da ideia de personalidade do Estado e do papel de Samuel Pufendorf em desenvolvê-la.

Holland se propôs dois objetivos. Seu primeiro objetivo é reconstruir a teoria do Estado de Pufendorf e o contexto político e teológico em que ele a desenvolveu. Seu segundo objetivo é explicar como escritores subsequentes interpretaram e se apropriaram dessa teoria. Holland escreve como um historiador do pensamento político, e historiadores do pensamento são seu público principal, mas o livro também será de interesse para teóricos políticos, filósofos e estudiosos de Relações Internacionais.

A introdução situa Pufendorf na longa tradição do pensamento político ocidental de fazer analogias entre comunidades políticas e seres humanos. Platão comparou a cidade justa à alma justa; os filósofos medievais desenvolveram a metáfora do “corpo político”; e Hobbes descreveu o Estado como um “Homem Artificial” e “uma pessoa”. Chegamos então a Pufendorf, que descreveu o Estado como uma “persona moralis” ou “pessoa moral” (p. 10). De acordo com a interpretação predominante, exemplificada por Quentin Skinner, Pufendorf era pouco mais do que um “canal para a transmissão da doutrina ”[1] e “pessoa moral” era apenas outra maneira de dizer “pessoa fictícia”. O argumento central de Holland no livro é que esta representação de Pufendorf está profundamente errada. Longe de ser um divulgador continental de Hobbes, Pufendorf desenvolveu uma teoria do Estado que acabou por ser ainda mais influente do que a do filósofo de Malmesbury. Os estudiosos de Hobbes encontrarão muito interesse na Introdução, bem como no Capítulo 2 e na Conclusão.

A Parte I do livro explica como e por que Pufendorf desenvolveu sua noção do Estado como uma pessoa moral. O capítulo 1 explora a concepção molinista ou jesuíta de liberdade, desenvolvida por Luis de Molina e Francisco Suárez, que Pufendorf posteriormente adotou, particularmente a distinção de intelecto e vontade, e a preservação da liberdade humana por meio da noção do divino “conhecimento mediato”. O ponto principal é que, de acordo com a concepção molinista de liberdade, uma pessoa livre tem duas “faculdades”: uma vontade e um intelecto. A vontade é a faculdade “formalmente livre” que permite à pessoa agir ou não em qualquer conjunto de circunstâncias – na verdade, resistir a causas externas (p. 32-34). Mas a vontade requer razões para a ação, e os objetos da vontade devem primeiro ser “conhecidos” pelo intelecto (p. 35-37). O intelecto é, portanto, uma condição necessária para um ato livre. Outra consequência importante do capítulo está na afirmação da liberdade contra as noções luterana e calvinista de “escravidão” pecaminosa e empregada na casuística jesuíta do confessionário. Holland também vincula a casuística ao humanismo da Renascença, particularmente à retórica, elucidando assim seu caráter probabilista e seu efeito “libertador” no uso prático da razão na busca de seus fins autodefinidos.

O Capítulo 2 aborda o uso da concepção molinista de liberdade para desenvolver a teoria do Estado. Holland mostra como a psicologia escolástica foi adotada por alguns escritores luteranos, em especial, contra oponentes calvinistas, e a traça na última obra de Pufendorf, Jus feciale divinum (1695), que defende a “justificação imputativa” luterana (p. 69) e teologia da aliança contra a predestinação calvinista. O comentador defende o que nomeia de interpretação “teológica” (p. 81) de Pufendorf, a quem atribui uma noção estoico-cristã da pessoa como ser humano individual, livre e racional que se posiciona na noção da pessoa como um ser humano individual, livre e racional que está “por trás” (p. 87) de papéis meramente performativos. No entanto, este capítulo, como o anterior, requer alguma paciência dos leitores que estão principalmente interessados ​​no pensamento político de Pufendorf. Holland não chega à teoria do Estado de Pufendorf antes da quarta seção, mas o principal vale a pena esperar. O que torna o Estado de Pufendorf uma “pessoa moral” é que ele não tem apenas uma vontade – a vontade do soberano – mas também um intelecto, que, ele argumenta, deve estar localizado em um “conselho” separado do soberano. Como Holland aponta, esta separação de vontade e intelecto oferece ao Estado de Pufendorf um caráter constitucionalista, em total contraste com o absolutismo de Hobbes: o soberano “não pode decidir agir se o conselho considerar que não há razão para agir” (p. 92). Pufendorf desenvolveu esta teoria de “soberania facultativa”, como Holland a chama, para explicar como uma política composta – em particular, o Império Alemão – poderia agir como uma pessoa. Enquanto a vontade do Império residia no Imperador, o conselho de cada comunidade dentro do Império constituía um intelecto separado. A teoria da soberania facultativa de Pufendorf, portanto, garantiu “que a vontade soberana no Império Alemão pudesse ser identificada, permitindo que as comunidades protestantes, in extremis, resistissem ao seu soberano ” (p. 102).

A Parte II se volta para três tradições de pensamento que adotaram a noção de Pufendorf do Estado como uma pessoa moral composta. O Capítulo 3 discute as “apropriações continentais” de Pufendorf, que usou sua teoria do estado para desenvolver teorias de direito internacional e visões de ordem internacional. Christian Wolff, Emer de Vattel e Immanuel Kant, cada um, de maneiras diferentes, usaram a noção do Estado como uma pessoa moral para desenvolver uma teoria do direito internacional de acordo com o modelo do direito natural. Uma omissão notável deste capítulo é Rousseau. Holland começa a seção sobre Kant com a afirmação de que ele “foi o próximo grande escritor a descrever o estado como uma pessoa moral” (p. 130). Porém, mais de três décadas antes da Paz Perpétua de Kant (1795), Rousseau descreveu o estado como uma pessoa moral, no Do Contrato Social (1762). Além disso, em seus Escritos sobre o abade de Saint-Pierre (1761), Rousseau apresentou sua própria visão de um sistema político europeu composto, ou “Confederação”.[2] Isso é menos uma crítica ao comentador do que um gesto em direção a outro escritor importante cujo trabalho apoia sua afirmação central no capítulo: Pufendorf estabeleceu os termos para o pensamento continental subsequente sobre o direito e a ordem internacional.

O Capítulo 4 discute as “apropriações atlânticas” de Pufendorf, que usou a teoria do Estado de Pufendorf para conceituar a estrutura do Império Britânico e da nova federação americana. Holland apresenta um caso convincente de que a ideia de Pufendorf da pessoa moral composta influenciou direta e indiretamente o pensamento americano na época da Revolução Americana. Sua afirmação mais impressionante é que, “por meio de certos comentaristas da filosofia política de Pufendorf associada ao Iluminismo escocês, o argumento de Pufendorf de que o Estado é uma pessoa moral composta, cuja soberania tem uma base facultativa, exerceu uma influência considerável sobre os autores dos Artigos Federalistas” (p. 144). Em suma, o capítulo contém um relato fascinante e substancialmente inovador do papel que a noção de Pufendorf do Estado composto desempenhou na América pré-revolucionária.

O Capítulo 5 discute as “interpretações anglo-germânicas” de Pufendorf, que identificam a pessoa moral do Estado com uma mera pessoa jurídica ou uma pessoa fictícia hobbesiana. Este capítulo explica por que Pufendorf é mal interpretado e, em parte, a razão de sua saída do cânone desde o século XIX. Holland argumenta que a fonte dessas interpretações errôneas é Otto von Gierke, que foi o primeiro a identificar o Estado de Pufendorf com o Estado de Hobbes. O objetivo de Gierke era ressuscitar uma maneira autenticamente alemã de pensar sobre a personalidade do grupo e eliminar o conceito de influências romanas. Segundo a visão romana, da qual Hobbes é o melhor exemplo, uma pessoa coletiva existe “apenas por meio de uma ficção da lei, só podendo querer e agir quando representada por alguma pessoa natural” (p. 191). De acordo com a visão germânica, que Gierke favorece, a Genossenschaft é “uma pessoa real e orgânica” (p. 193). Gierke afirma que Pufendorf foi tentado pelo germanismo, mas, sob a influência de Hobbes, sucumbiu ao romanismo. Uma vez que o Estado de Pufendorf dependia de contratos entre seus súditos e da vontade de seu soberano, não de qualquer unidade orgânica, era, em última análise, tão individualista e insubstancial quanto o Estado de Hobbes. A pessoa moral do Estado de Pufendorf era, de acordo com Gierke, apenas uma réplica pseudogermânica da pessoa fictícia do Estado de Hobbes.

Holland refuta decisivamente a interpretação de Gierke de Pufendorf. Por um lado, as pessoas morais de Pufendorf não eram meramente fictícias ou legais; ele criticou duramente a afirmação de Hobbes de que coisas inanimadas, como pontes e hospitais, poderiam ser transformadas em pessoas pela ficção jurídica. Por outro lado, Pufendorf não era o “absolutista esclarecido” que Gierke o fazia parecer (p. 205). Embora a única vontade do Estado fosse de fato a do soberano, o Estado também tinha um intelecto que limitava a vontade do soberano. A pessoa moral do Estado de Pufendorf não era a Genossenschaft de Gierke, mas era uma pessoa real. Certamente não era a pessoa fictícia de Hobbes, que não era mais real do que “um ídolo, ou apenas uma invenção do cérebro”.[3]

A conclusão revisita o conceito de personalidade e o contraste entre Pufendorf e Hobbes. Um dos pontos principais é que o conceito moderno de Estado se deve mais a Pufendorf do que a Hobbes: “Se a abstração de território, população e governo é o que dá origem ao conceito de Estado moderno que herdamos, então é a Pufendorf que devemos o conceito” (p. 219). O Estado de Hobbes é mais ou menos um epifenômeno: “o bem comum não é Pessoa, nem tem capacidade de fazer qualquer coisa, mas pelo Representante, (isto é, o Soberano;).”[4] Mas o Estado de Pufendorf, como Holland argumenta, “não poderia ser absorvido pela pessoa de seu soberano” (p. 218). A personalidade do Estado deve-se à sua organização interna, que lhe confere um intelecto e uma vontade; não parasitava a personalidade de nenhum homem ou assembleia.

O argumento de Holland de que Pufendorf é “a teoria mais significativa do Estado moderno” (p. 221) é tão persuasivo quanto ousado. Suas afirmações sobre a influência do jusnaturalista alemão são bem fundamentadas e ele tem o cuidado de não exagerar em seu caso ou “transformar a história em uma panqueca pufendorfiana” (p. 181) Mas depois de ler The Moral Person of the State, é difícil não ver os traços da influência de Pufendorf na teoria política e relações internacionais. Embora descrever os Estados como “pessoas morais” tenha saído de moda, descrevê-los como “agentes morais” é um lugar comum. A ideia de agência moral corporativa parece completamente pufendorfiana, dependendo de uma analogia entre as faculdades dos Estados e as faculdades dos seres humanos. Por exemplo, como Toni Erskine argumenta, “o Estado tem uma capacidade de raciocínio e tomada de decisão semelhante à do indivíduo humano”.[5] Como um agente moral individual, ele tem “a capacidade tanto para deliberação moral quanto para ação moral.”[6] Isso é uma reminiscência impressionante da afirmação de Pufendorf de que uma pessoa moral deve ter um intelecto e uma vontade, embora o saxão não pareça ter tido qualquer influência direta nas ideias contemporâneas de agência moral corporativa. No entanto, é difícil acreditar que as semelhanças sejam inteiramente coincidentes. Além de oferecer uma grande contribuição à história do pensamento político, o livro de Holland nos ajuda a entender melhor o conceito de Estado que herdamos.

LUIZ FELIPE NETTO DE ANDRADE E SILVA SAHD é professor do departamento de filosofia da UFC.



[1] Quentin Skinner. Visions of Politics. Volume 2: Renaissance Virtues. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 407.

[2] Jean-Jacques Rousseau, Écrits sur l’abbé de Saint-Pierre. Œuvres complètes, tome III. Paris : Gallimard, 1969.

[3] Thomas Hobbes, Leviathan, ed. Noel Malcolm. Oxford: Clarendon Press, 2012, p. 248.

[4] Hobbes, Leviathan, p. 416.

[5] Toni Erskine, Assigning Responsibilities to Institutional Moral Agents: The Case of States and ‘Quasi-States’, Ethics & International Affairs 15, no. 2 (2001), p. 75.

[6] Erskine, Assigning Responsibilities, p. 69.


Luiz Felipe Sahd
Top