O livro que apresentamos, O dia de glória chegou – Revolução, opinião
e liberdade em Tocqueville e Arendt, de Rosângela Chaves, é resultado de
sua tese de doutorado obtida na Faculdade de Filosofia da UFG e selecionada
para publicação na coleção Anpof (Edições 70).
Não é, como se poderia pensar,
um trabalho puramente comparativo entre os dois autores, mas uma análise
exaustiva e erudita de alguns conceitos-chave escolhidos para apontar
correspondências e aproximações que são, segundo a “Introdução” da obra,
revolução, opinião/opinião pública e liberdade. Trata-se, como diz Rosângela Chaves, de um diálogo imaginário que é
possível devido "às confluências próximas na forma como abordam a política
e as potencialidades da ação coletiva", ambos – Arendt e Tocqueville –
imersos em seus tempos turbulentos e preocupados com a defesa e a proteção da
democracia. Além disso, como aspecto relevante, o fato de ser possível
descobrir também em ambos “uma versão convergente do republicanismo”.
A autora demonstra, ao longo
de seu livro, que o olhar retrospectivo que Tocqueville e Arendt dirigem ao
passado ilumina os problemas do presente de cada um. Ambos também se mostram
preocupados com a liberdade como cerne das revoluções modernas. A lógica argumentativa
do livro consiste em estabelecer quatro capítulos que correspondem, cada um,
aos núcleos teóricos nomeados. A primeira, "Revolução, ruptura e
liberdade"; a segunda, "Opinião, massificação e pluralidade"; a
terceira "Igualdade, liberdade, fraternidade – e felicidade", e a
última, "Instituições da liberdade", mais uma "Introdução"
e algumas "Considerações finais” em que o tema do republicanismo é
exposto. Cada capítulo também contém
uma “Introdução” e um final “Tocqueville e Arendt” sobre o que foi
desenvolvido. Esse esquema expositivo é muito complexo, mostrando uma notável
rede de conceitos, típica de quem conhece muito profundamente tanto Tocqueville
quanto Arendt. Como uma amostra do que foi dito, resumimos o capítulo 3,
“Igualdade, liberdade, fraternidade – e felicidade”.
Na Introdução, são revistos os
slogans revolucionários “igualdade, liberdade e fraternidade”, acrescentando-se
o termo “felicidade”, que, para a autora, se articulam a ponto de não se
conseguir separar um do outro. O termo “igualdade” está disponível em
Tocqueville em seu potencial transformador, em suas ligações com outros autores
como Guizot e Montesquieu, nas diferenças importantes entre o homem
aristocrático e o homem democrático, no impacto da igualdade no campo das
artes, da ciência, da filosofia e da religião, das relações familiares, do individualismo. O mesmo termo “igualdade” se desdobra em Arendt em
torno de isonomia, pluralidade e visibilidade, três categorias que são
analisadas sob todos os aspectos possíveis: igualdade – em oposição à
uniformidade –, distinção, alteridade, as noções de “quem” e “o quê”,
invisibilidade dos pobres e oprimidos, dos apátridas e dos negros, e igualdade
da esfera pública e da esfera social.
Na seção “Liberdade” deste
capítulo, a posição de Tocqueville em relação à independência, à cidadania e à justiça
é revista, começando com a caracterização do liberalismo e de discussões
relacionadas no século XIX, as tendências da sociedade democrático-igualitária,
a liberdade-independência em conexão com a ação política, com o público. A posição de Arendt trata da “ação livre e
espontânea” e aqui Chaves apresenta um ensaio muito completo sobre a questão da
liberdade, central para Arendt, através da diferença entre freedom e liberty, entre
liberdade positiva e negativa através das posições de Berlin, Hobbes e Rousseau;
da liberdade entre os antigos; da liberdade e seu vínculo com a ação, com a
pluralidade, com a natalidade, e também da ação relacionada à espontaneidade e
à ideia de princípio.
No ponto 3, o tema é “Tocqueville:
pauperismo e direito à propriedade”, indicando que a noção mais apropriada – compartilhada
com Arendt – é a amizade no sentido político entre cidadãos que compartilham o
espaço público e, indo além, abordando as questões materiais relacionadas à escassez e às
desigualdades econômicas que põem em risco a democracia nascente nas sociedades
industrializadas. É interessante – ainda
hoje – acompanhar a posição tocquevilliana sobre as causas da pobreza e sobre a
necessidade da reforma agrária, posições que o mostram como um pensador avançado no campo social. Para essa seção,
Arendt aparece com os conceitos de “compaixão, piedade e solidariedade”, nos
quais a tão debatida posição da autora alemã sobre a questão social é tratada
seguindo o fio crítico da libertação, típico da Revolução Francesa. Além do
mais, é mostrado como os conceitos de “compaixão” e “piedade” junto com o de “bondade”
distorcem a esfera pública. O debate aberto por essas posições arendtianas é
plenamente explicado por Chaves.
O último ponto deste capítulo
é dedicado à felicidade, em Arendt como “felicidade pública e o vinho da ação”,
afirmando que “felicidade pública” refere-se ao prazer produzido pelo gozo da
liberdade na esfera pública, participando dos assuntos públicos, que Chaves
explora na análise de Arendt das Revoluções Francesa e Americana, neste caso
enriquecida com inúmeras referências históricas. Para Tocqueville, o conceito selecionado é “o homem
de ação”, enfatizando que sua causa principal sempre foi a liberdade, a
liberdade de expressão e de ação que ele admirava nos Estados Unidos, mas que
não pôde desfrutar em sua carreira política na França, o que resultou em
decepção, salvo em parte por sua posterior adesão ao republicanismo, que também
terminou em frustração.
O capítulo se completa com um
balanço entre Tocqueville e Arendt e a valorização do espaço público, a crítica
do primeiro à “tirania da maioria” e da segunda ao “humor das massas” como
ameaças à opinião pública e a uma esfera pública vigorosa em que a liberdade
política possa ser realizada. Os dois autores defendem a relevância da política
como campo de discordância e de acordo entre múltiplas vozes e entre diferentes
perspectivas e defendem uma ideia de liberdade intimamente ligada à noção de
igualdade, da qual brotam felicidade e fraternidade. Chaves não ignora os pontos críticos e
problemáticos das questões discutidas neste capítulo e, assim, mostra que sua
análise vai além das referências e relações que os próprios autores estabelecem
em suas obras. Essa perspectiva reflexiva pode ser lida em todos os capítulos
deste livro, dando maior densidade a cada tema.
Uma última menção não pode ser
omitida, neste caso, as “Considerações finais”, em que Tocqueville e Arendt se
deixam ver em um quadro republicano, tão caro neste momento em que tanto o vivere civile, a vita activa e a convivência democrática estão ameaçados. Escusado
será dizer que a própria democracia, com todas as suas fraquezas, pode oferecer
os meios para revigorar a prática da liberdade política.
Extraordinário livro de Rosângela Chaves. Uma
investigação alerta, uma forma expositiva escrupulosamente organizada, uma
notável amplitude de recursos históricos e bibliográficos que oferecem um
documento essencial a um amplo público. É também, porque não dizê-lo, uma afirmação do
valor das ideias políticas que devem ser defendidas em todos os tempos e
lugares.
BEATRIZ
PORCEL é professora honorária da Universidade Nacional de Rosário (Argentina)