Atravessa
a vida
é o mais novo documentário (2020) do cineasta e jornalista João Jardim. A
produção retoma a temática das angústias da vida escolar, já abordada no
aclamado Pro dia Nascer Feliz (2005), do mesmo diretor, mas agora focada
no cotidiano de alunos do último ano do ensino médio de uma escola pública
sergipana, o Colégio Milton Dortas, localizado na cidade de Simão Dias. As
filmagens captaram os três meses finais dos estudantes nessa instituição, ou
seja, o período de travessia deles para a chamada “vida adulta”. O fio condutor
da narrativa, e também o drama de fundo da obra, é a aproximação dos exames do
ENEM e as experiências traumáticas que mais este rito de passagem desencadeia,
em meio a uma série de outros dramas individuais e coletivos.
O título do filme, como o próprio diretor
relata em uma live/debate[1], foi inspirado na frase de um estudante que, após
ouvir sobre a proposta do filme, diz que os meses finais na escola são
justamente esse “momento em que a gente atravessa a vida”. De fato, é um
período extremamente intenso do ponto de vista da formação psíquica dos
sujeitos, os quais estão atravessando a fronteira para uma nova etapa da vida,
à procura de um lugar no mundo do trabalho ou no ensino superior. Para boa
parte daqueles estudantes, o ENEM é a grande ponte que os conecta com uma
expectativa de futuro, e o documentário retrata bem o sentimento de esperança,
mas também de sofrimento, aí envolvidos.
Em
uma das primeiras cenas do filme, um professor de filosofia aborda o conceito
de tempo em Agostinho. Para o filósofo, explica o professor, o passado é
memória, o presente é uma dádiva e o futuro é só esperança, ao que uma aluna
então argumenta: “Se a esperança morre não existe mais futuro”. Esse é o mote
que dá o tom do documentário, ou seja, o da tensão de forças que animam e
desalentam esses estudantes de final de curso. Se, por um lado, a travessia
deles é nutrida por grandes expectativas em relação ao futuro e pelos prazeres
das descobertas da idade, por outro, há muitos percalços que podem minar essa
esperança ou vontade de potência.
Dentre as angústias que ali estão
retratadas destacamos: os sentimentos de inferioridade e atraso com relação aos
alunos de escolas privadas, os sentimentos de cobrança, pressão, nervosismo e
ansiedade com a chegada do exame, a falta ou o atraso de professores,
incertezas quanto ao futuro e à continuidade das amizades, os problemas
familiares, casos de agressão doméstica e de automutilação, dentre outros. Uma
das cenas mais marcantes do documentário é, sem dúvidas, uma roda de conversa
onde uma professora dialoga com seus estudantes sobre o tema do suicídio. Os
depoimentos dos alunos, que a equipe registra com bastante sensibilidade, são
sempre carregados de muita emoção, revelando parte das alegrias e tristezas que
compõem suas experiências pessoais.
Importante destacar que a carga emocional
das vivências ali retratadas não recai unicamente nos alunos, mas também nos
professores, na diretora e nos outros funcionários da escola. Todos são de
alguma forma afetados naquele turbilhão de sentimentos e acontecimentos.
Destaque especial para a diretora do Milton Dortas, Daniela Silva, uma mulher
que, para além da sua ocupação principal, assume diversas funções naquele
espaço escolar: porteira, fiscal de obras, costureira de fantasias, inspetora,
braço amigo, cuidadora, conselheira etc.
O período da filmagem, por acaso, também
coincidiu com o de uma reforma na infraestrutura do colégio. Em meio às cenas
da comunidade escolar vemos o tempo todo trabalhadores de obra construindo e
reformando o espaço do colégio. Esse “pano de fundo” não apenas retrata a
escola pública como um espaço ainda em vias de constituição, de travessia para
o futuro, com necessidades básicas ainda por serem supridas, mas também reforça
a metáfora da escola como um lugar de constituição dos próprios indivíduos. Uma
tomada foca os trabalhadores logo após a cena do “aulão” pré-ENEM, na qual um
professor de sociologia discute a teoria de Marx e a exploração da mão-de-obra
proletária, fazendo uma bela conexão entre os ensinamentos e a vida concreta.
Por fim, ressaltamos a energia da trilha
sonora composta por Dado Villa-Lobos (ex Legião Urbana), quem trouxe a
atmosfera jovial das guitarras e dos baixos para as cenas. Além desses sons, a
trilha também conta com uma faixa do Legião Urbana (Pais e Filhos), músicas
nordestinas (Fagner) e da banda do desfile da cidade. O final do filme é
agitado por Xique-Xique, de Tom Zé e José Miguel Wisnik, dando o tom de luta e
resistência dos personagens para seguir em frente apesar de todas as dificuldades.
Em suma, João Jardim e sua equipe
conseguiram mais uma vez realizar uma produção belíssima, emocionante e
essencial para pensarmos o universo escolar, com seus desafios, vicissitudes e
esperanças de transformação.
FERNANDO
TAKESHI TANOUYE é doutorando do Instituto de Física da USP