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Victor Knoll - 93 - Fevereiro de 2003
O Brasil de Eckhout
Pintor holandês retratou etnias e riquezas naturais
Foto da capa do livro Eckhout volta ao Brasil 1644-2002
Eckhout volta ao Brasil 1644-2002
Autor: Jens Olesen (Coord.)
Editora: Pinacoteca do Estado de São Paulo - 228 páginas
Foto do(a) autor(a) Victor Knoll

O catálogo da mostra "Eckhout Volta ao Brasil 1644 2002" aborda não só questões e temas de teor estético ou relativos à história da arte, mas lida também com aspectos ligados à etnografia, à antropologia, à botânica e ainda outros que dizem respeito ao comércio e à vida social da Holanda e do Brasil na primeira metade do século 17. É igualmente reservado espaço para considerações sobre aspectos técnicos de museologia e restauro.
Albert Eckhout chegou ao nordeste brasileiro em 1637, ao lado de Frans Post, integrando a comitiva de Maurício de Nassau, onde permaneceu até maio de 1644. Durante esse período, além de estudos e esboços, teria executado 26 pinturas, duas perdidas em um incêndio.
Enquanto Frans Post tinha por tarefa registrar a paisagem, Eckhout estava incumbido de documentar os tipos étnicos presentes na região, bem como as plantas e frutas que, para o olhar europeu, possuíam um especial caráter exótico. A coleção de 24 quadros que pertence ao Museu Nacional da Dinamarca é composta por oito retratos de corpo inteiro em tamanho natural, 12 naturezas-mortas, três retratos de busto e um grande painel que representa uma dança tapuia. Essas pinturas, segundo consta, são os mais antigos registros de que se tem notícia não só do Brasil, mas da América do Sul. Os retratos de corpo inteiro, em particular, são o primeiro registro iconográfico dos múltiplos encontros étnicos que se deram no Brasil.
As pinturas de Eckhout permaneceram na obscuridade por mais de dois séculos. Ganharam alguma projeção quando d. Pedro 2º, em 1876, esteve em visita a Copenhague e, naquela ocasião, tentou trazer as pinturas de volta ao Brasil. Seus esforços resultaram apenas na autorização para que mandasse efetuar a reprodução, em tamanho menor, de seis telas que estão hoje conservadas no Museu Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro. As cópias foram executadas pelo pintor dinamarquês N. A. Lützen e são dos seguintes quadros: "Homem Tapuia", "Mulher Tapuia", "Mulher Tupi", "Homem Tupi", "Mulher Mameluca", "Dança dos Tapuias". Esta última pintura, aliás, foi exibida em 1998 na 24ª Bienal de São Paulo.

Controvérsias
A pintura de Eckhout envolve controvérsia quanto ao seu destino e sentido. O pintor, a serviço do conde de Nassau, teria executado as obras tendo por finalidade a decoração do salão principal do Palácio Friburgo, residência oficial do governador-geral do Brasil holandês. Outra interpretação sugere que as telas teriam como destino Amsterdã, Roterdã e outras cidades da República dos Países Baixos Unidos, a atual Holanda, para estimular os burgueses endinheirados a investir seus recursos nos projetos da Companhia das Índias Ocidentais.
Há ainda uma terceira posição que sustenta a tese de que as pinturas, mediante o estudo combinado de detalhes do conteúdo dos quadros, como o uso de brincos e colares europeus, e os recursos técnicos das pinturas, como a preparação das telas, teriam sido executadas na Europa a partir de esboços, e seu destino seria o de servir como troféu do poderio holandês para o público europeu em geral.
Conforme já apontara Svetlana Alpers em "A Arte de Descrever", o caráter descritivo das pinturas holandesas do século 17 -por oposição à pintura italiana que tem um caráter dramático- pode também ser surpreendido nos quadros de Eckhout. Mesmo na tela que tem a dança dos tapuias como assunto (um ritual guerreiro ou relativo a algum ato religioso ou ainda para consagrar o casamento, não se sabe bem), e portanto envolvendo um teor dramático, ainda assim tem no lado descritivo o apelo mais forte. Esse traço reforça a tese de que as pinturas tinham por finalidade o registro, seja para ilustrar fins científicos, seja para adornar a imagem de Maurício de Nassau com os seus superiores na Holanda. A iluminação uniforme por toda a superfície do quadro e a pose frontal ou de três quartos, mas com a cabeça e o olhar voltados para frente, são indícios do propósito documental das pinturas. A falta do claro-escuro ou das nuanças das sombras parecem dizer: "Vejam o que há no Novo Mundo!".
Entretanto é também possível sustentar que, ao lado do caráter documental, há outro, mais forte: a idealização de uma terra, desconhecida e distante, e de seus habitantes. No caso, uma idealização que acentua o exótico. Mesmo reconhecendo que a coleção de pinturas registra os tipos étnicos, os animais, a vegetação e a paisagem tropical, a figuração é idealizada no sentido de conferir-lhe um cunho europeu. Algo feito para e segundo valores europeus. A mulher negra usa brincos pingentes de pérola e um colar duplo de pérolas como seria o hábito de uma holandesa abastada. Também a mameluca usa brincos e colar de pérolas, um bracelete e anel que certamente não cabiam na sua condição. Agregar jóias às representações étnicas era uma maneira de enobrecê-las. O homem mulato porta uma arma de fogo e uma espada de desenho elaborado, admissível apenas nas mãos e à cintura, no mínimo, de um fidalgote. Pode-se supor que tal idealização tornava as imagens, exóticas e cheias de novidades, mais palatáveis ao olhar europeu.
Há ao mesmo tempo uma intenção de registro e uma elaboração idealizada. É difícil avaliar, do ponto de vista do século 17, se o maior valor está no registro estrito ou na intervenção europeizante de Eckhout. Com a passagem do tempo, o registro e a intervenção certamente cederam lugar ao valor estético das obras. A querela -ainda que deva ser levada em conta- tem um alcance limitado para os estudos de crítica e história da arte, importando mais ao historiador.

Retratos e natureza
Eckhout realizou oito pinturas étnicas de corpo inteiro e em tamanho natural. Trata-se de quatro casais: tapuia, tupi, mameluco e negro. Aqui Eckhout segue um hábito que remonta a meados do século 16, segundo o qual os estudos de etnografia registravam casais. Todos os quadros obedecem a um mesmo princípio de composição estética: a personagem em primeiro plano, emoldurada por vegetação e ao fundo uma paisagem.
De todos os retratos, somente em dois, a "Mulher Tapuia" e o "Homem Tupi", a postura do modelo é a de um discreto três quartos. Em todos os demais a representação da personagem é frontal. Nos quadros que têm por tema o casal de negros, as paisagens de fundo são marinhas, aludindo à proveniência dos escravos. Já nas telas que retratam os casais de índios, a paisagem de fundo é o interior da terra, indicando as suas raízes. Enquanto a paisagem de fundo dos tapuias tem um caráter desabitado e selvagem, indicando sua índole agressiva, o casal tupi tem como paisagem de fundo indícios civilizatórios -casas, embarcações, plantações.
De grande impacto é a tela "Dança dos Tapuias", não por suas dimensões, mas por sua força expressiva, pelo equilíbrio da representação tendo em vista a quantidade de atores em cena e nas mais diversas posições. O quadro representa oito tapuias em pleno movimento de dança, em três grupos, e duas índias no canto esquerdo, com as mãos na boca, cochichando ou emitindo algum som que servisse de acompanhamento para a dança.
Há divergências quanto ao significado geral do quadro. Conforme já foi indicado, pode ser a representação de uma dança guerreira ou se tratar de uma celebração religiosa ou, ainda, por causa das duas mulheres que observam a dança, estaríamos diante de uma espécie de disputa tendo em vista o casamento.
Na época de Eckhout a curiosidade do europeu pela vegetação e frutas exóticas era tão grande quanto seu encanto por povos distantes e desconhecidos. As pinturas dessas plantas e frutas exóticas tornaram-se comuns, não só para o uso científico, mas também para o deleite e curiosidade do público. Entretanto, as naturezas-mortas de Eckhout possuem outro atrativo, pois combinam plantas cultivadas no Velho Mundo com outras nativas do Brasil. Também nas naturezas-mortas Eckhout faz um jogo entre o conhecido e o desconhecido, dando ênfase ao seu poder de idealização. Mostram, ao mesmo tempo, o potencial botânico e comercial das espécies brasileiras.
A composição das naturezas-mortas apresenta inovações, para a época, certamente surpreendentes. Pois, ao contrário do hábito -os objetos da natureza-morta eram sempre pintados em interiores, sobre mesas trabalhadas e enriquecidas com toalhas bordadas-, as plantas, legumes e frutas de Eckhout são pintadas a céu aberto e apoiadas sobre uma simples prancha. A iluminação sempre teve um forte atrativo na representação de naturezas-mortas, seja para criar um efeito de profundidade, seja para conferir brilho a um metal. No caso de Eckhout a iluminação é chapada. Todos os objetos são iluminados igualmente. Aqui temos o interesse do registro.
Muito pouco se guardou sobre a vida de Eckhout. Sabe-se que nasceu em Groningen, na província de mesmo nome, ao norte da atual Holanda, por volta de 1610, e que morreu em 1666. Viveu durante o período áureo da prodigiosa pintura holandesa.


Victor Knoll é professor de estética no departamento de filosofia da USP.

Victor Knoll é professor do departamento de filosofia da USP.
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