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Ferreira Gullar - 70 - Janeiro de 2001
O banquete antropofágico
Foto do(a) autor(a) Ferreira Gullar

O banquete antropofágico

Exposição sobre modernismo brasileiro em Valência, na Espanha, reuniu 700 obras de 141 artistas 

Brasil 1920-1950: De la Antropofagia a Brasília -
Catálogo da Exposição (até 14/01/2001)
Curador: Jorge Schwartz
Produção: Institut Valencia d'Art Modern, Valencia, 2000
630 págs., R$ 212,50
Onde encontrar: Livraria Cultura (Tel. 0/xx/ 11/285-4033)
Livraria Memorial (Tel. 0/xx/11/3889-7388)

FERREIRA GULLAR

O catálogo, fartamente ilustrado, nos dá uma idéia do projeto ambicioso que resultou na exposição "Brasil 1920-1950: da Antropofagia a Brasília", realizada em Valência, na Espanha. No texto introdutório, Jorge Schwartz, principal responsável pelo empreendimento, informa que a mostra, por ele concebida em 1996 com a colaboração de Juan Manuel Bonet, um "especialista em vanguardas internacionais", visou desde o início a uma abordagem multicultural, que estabelecesse o diálogo entre as diversas manifestações artísticas e culturais, em consonância, aliás, com o espírito pluriartístico da Semana de Arte Moderna, marco inicial das vanguardas brasileiras. Idealizada como uma "rede de vasos comunicantes", o projeto ambicionava também representar os diversos "brasis" envolvidos nessas quatro décadas de experiências artísticas de que a exposição pretende dar uma visão sintética e fiel. Para isso reuniu cerca de 700 obras de 141 artistas e autores pertencentes a mais de 100 coleções públicas e privadas.
"Seu caráter interdisciplinar" -afirma Jorge Schwartz- "abarca, em linhas gerais, os três momentos históricos decisivos que resolvemos privilegiar em nosso trajeto cronológico: a revolução modernista de tendência estetizante dos anos 20, a virada socializante que se manifesta a partir dos anos 30 e a mudança de rumo na direção de uma linguagem abstrata construtivista e internacionalista dos anos 50".
Isso do ponto de vista da forma, uma vez que, no que se refere ao seu conteúdo, o ponto de partida foi, segundo ele, o conceito de "antropofagia", concebido por Oswald de Andrade, em seu manifesto de 1928, quando afirma: "Só me interessa o que não é meu" -e inverte a dúvida hamletiana no célebre trocadilho "tupi or not tupi, that is the question". Estaria aí "a chave da exposição", uma vez que, na sua opinião, do banquete antropofágico se nutriram desde as vanguardas históricas até o tropicalismo e o cinema novo. Mas envolveria igualmente o romance nordestino de Jorge Amado, José Lins do Rego e Graciliano Ramos, a sofisticação de Clarice Lispector e Guimarães Rosa, bem como a arquitetura moderna brasileira, desde Warchavchik, passando por Flávio de Carvalho, Lúcio Costa, Niemeyer e chegando a Brasília.
Trata-se, portanto, de um conceito que ultrapassa o antropofagismo de Oswald e Tarsila para abranger todo e qualquer processo de assimilação cultural: tanto vale para a deglutição pelos modernistas brasileiros do surrealismo europeu quanto para a assimilação pelos gregos dos modelos escultóricos egípcios ou dos modelos gregos pelos escultores romanos ou ainda do psicodelismo dos hippies pelos tropicalistas brasileiros dos anos 60. Donde se conclui que o conceito de "antropofagia" utilizado por Schwartz, sendo o mesmo da 24ª Bienal de São Paulo, visa muito mais a promoção que o rigor metodológico.

Manifestos e obras
Isso, aliás, não nos deve espantar numa iniciativa do Institut Valencia d'Art Modern (IVAM), instituição que se confessa "coerente com uma sólida tradição vinculada a movimentos de modernidade e vanguarda". É próprio das vanguardas se afirmarem mais por manifestos que por obras, e o antropofagismo de Oswald de Andrade é exemplo disso: além dos quadros que Tarsila pintou entre 1928 (data do "Abaporu", que inspirou Oswald a escrever o "Manifesto Antropófago") e 1930, e "Cobra Norato", de Raul Bopp, que é anterior ao manifesto, nenhuma outra obra o movimento produziu, sem contar que, pouco depois, Oswald renegava o seu passado vanguardista para aderir à revolução proletária. Embora não se possa negar o quanto o manifesto oswaldiano contém de saudável irreverência, brilho intelectual e senso de humor, não é possível apresentá-lo como o deflagrador de um processo cultural e artístico que ocorreria -como de fato ocorreu- independentemente dele.
Mas a mostra do IVAM não deve ser considerada apenas do ponto de vista conceitual, ignorando-se o investimento feito, tanto em recursos materiais como culturais, para propiciar ao público espanhol e europeu -já que a exposição deverá percorrer outros países daquele continente- um amplo panorama do que os brasileiros criaram em termos de artes plásticas, música, cinema e literatura na primeira metade do século 20. Pelo que o catálogo nos permite avaliar, terá o público a oportunidade de conhecer obras e documentos (alguns deles inéditos no Brasil) altamente significativos da arte e cultura brasileira desse período. Além disso, pela própria natureza da mostra, o material exposto lhe possibilitará apreender as relações entre os diferentes gêneros artísticos e as idéias que os fecundaram, relações essas, muitas vezes ocultas, que constituem a complexa tessitura do processo cultural brasileiro. A riqueza de tais relações não escapou aos críticos, estudiosos e teóricos, autores dos textos do catálogo, objeto desta resenha.
É verdade que nem todos os textos analisam ou explicitam essa complexidade. Juan Manuel Bonet, por exemplo, que trata do que ele designa como "Iluminações Brasileiras", não vai além de considerações impressionistas ou evocações e referências a respeito de episódios ou personalidades que, de uma maneira ou de outra, participaram dos movimentos de vanguarda brasileiros. Apesar disso, o leitor sempre encontrará ali informações interessantes, ora úteis, ora curiosas, a respeito da nossa vida cultural. No pólo oposto, situa-se o texto de Eduardo Subirats -"Do Surrealismo à Antropofagia"-, que intenta uma análise aprofundada da vanguarda francesa dos anos 20 e sua ligação com as idéias de Oswald de Andrade.
Na opinião de Subirats, não se deve considerar a antropofagia como uma tradução tropical do futurismo e do surrealismo, conforme tem afirmado a crítica européia, e sim como o seu contrário. Para justificar essa tese, desenvolve uma análise do surrealismo que tentaremos resumir para os leitores.
A "revolução surrealista" foi concebida por André Breton como um ataque contra a estética funcionalista e como a subversão dos valores da civilização industrial. Em face deles, o surrealismo teria que redescobrir o mundo do inconsciente, os sonhos e a loucura, penetrar as mitologias antigas e restabelecer os plenos direitos das culturas remotas. Walter Benjamin via a dimensão revolucionária da estética surrealista como uma "iluminação profana", que evocava a experiência religiosa ou mística, semelhante ao êxtase e à alucinação provocados pelas drogas.
Depois da Segunda Guerra Mundial, o surrealismo perdeu o tom liberador e otimista, em face da experiência traumática dos bombardeios e dos campos de concentração. Max Horkheimer e Theodor Adorno demonstraram, em 1947, que a violência e a irracionalidade (implícitas na pregação surrealista) eram de fato a face oculta da racionalização industrial, e não uma alternativa a sua ordem opressora. A palavra de ordem surrealista de uma mobilização geral do irracional, como pregara Salvador Dalí, convertera-se em lugar-comum da propaganda militarista. A guerra mundial mostrara as consequências dolorosas da "confusão geral e sistemática entre realidade e alucinação", que Dalí tinha como objetivo de sua arte subversiva.
Subirats chama a atenção para o fato de que a contribuição daliniana à estética surrealista é muito mais importante do que geralmente se admite. Cita o manifesto "L'Âne Pourri", em que a imagem de um asno podre é vista como a fonte de uma nova beleza: "Ninguém me convencerá de que esta cruel putrefação do asno não seja o reflexo cegante e duro de novas pedras preciosas".
Subirats vê nessa metáfora uma lúcida antecipação de nosso presente histórico. Ao final de sua análise, indaga: que fim levou aquela energia liberadora que constituíra o ponto de partida da experiência artística de jovens artistas e intelectuais como Aragon e Artaud, Ernst e Lorca? E acrescenta que, para responder a essa pergunta, será preciso viajar brevemente a um lugar tão remoto e misterioso como as selvas úmidas do Brasil.
No seu entender, a antropofagia brasileira abriu uma perspectiva política e artística diametralmente oposta à da dialética das vanguardas européias. Enquanto estas partiram da abstração e eliminação do passado, a antropofagia, pelo contrário, tentou uma reconstrução das memórias culturais e o restabelecimento da harmonia entre cultura e natureza, repelindo a opressão civilizatória.
Nesse particular, tendo a concordar com Subirats. Mas não resta dúvida de que as idéias de Oswald são meras intenções que não saíram do papel, já que, como se viu, o movimento antropófago não houve. Tampouco aquelas propostas seriam adotadas pelas gerações futuras, uma vez que, já nos anos 30 -a começar pelo próprio Oswald-, os artistas e escritores brasileiros afastaram-se do espírito nativista do modernismo de 22 para mergulhar na realidade social do Brasil da desigualdade, da fome, do massacre dos índios e da devastação das florestas. A redescoberta de Oswald, nos anos 50, resulta numa contrafação, pois mistura duas coisas que ele sempre combateu: o eruditismo e a estética normativa. Mas, ao fim de tudo, do mesmo modo que as demais vanguardas -e é Subirats quem o reconhece-, "a antropofagia sucumbiu aos rituais canibais do consumo mercantil em nossa sociedade do espetáculo".
Outro texto interessante do catálogo é o que se intitula "Figuras do Moderno (Possível)", de autoria de Annateresa Fabris, pois aborda de maneira crítica a questão da vanguarda, atitude que não encontra na historiografia brasileira: os nossos estudiosos -afirma com razão- , presos à auto-imagem que o modernismo forjou de si mesmo, utilizam, sem questioná-los, os conceitos de vanguarda e arte moderna, "sem dar-se conta de sua relatividade num contexto como o nosso". E aduz: "Se a arte moderna produzida pelo modernismo não é moderna no sentido das vanguardas européias, é necessário compreender, e não apenas assinalar, tal diferença, pois nela reside um modo de recepção que pode ser a chave de acesso às peculiaridades do fenômeno brasileiro".

Retorno à ordem
Após assinalar alguns traços que prendiam nossos modernistas ao século 19 e que os opunham às posições "anti-sublimes e desumanizadoras" das vanguardas européias, observa que o surgimento do modernismo brasileiro coincide com um movimento de retorno à ordem, que se verifica em Paris, depois da Primeira Guerra, e que explica a ascensão de artistas como De Segonzac, Utrillo e Marie Laurencin. Naquela época, Matisse, Vlaminck e Derain fazem a revisão do fauvismo enquanto Picasso, Severini e Gris, tendo abandonado o cubismo, adotam uma técnica realista, ao mesmo tempo em que Gleizes e Metzinger pregam um retorno às "leis da pintura".
Esses fatos ajudam a entender a natureza ambígua do nosso modernismo, resultante mais de um desejo de atualização do que uma identificação profunda com as causas e razões dos movimentos europeus. Daí por que -observa ela- as telas pau-brasil de Tarsila, mesmo quando retratam a cidade moderna, nada têm das dissonâncias e descontinuidades da linguagem futurista, cubista ou expressionista: cria um espaço geometrizado, livre de tensões em virtude "do tratamento totêmico dos artefatos tecnológicos".
São igualmente penetrantes as observações de Annateresa Fabris a propósito da mudança que se verifica depois de 1930, quando o individualismo é substituído pelo ser social, com a superação do formalismo das vanguardas e a identificação da modernidade com a questão nacional.
Não têm o mesmo grau de acerto suas considerações sobre a pintura concretista, que se resume, em sua análise, às idéias de Waldemar Cordeiro e às obras dos pintores paulistas, ignorando totalmente os artistas do Rio de Janeiro que, já em 1950-51, trabalhavam a linguagem geométrico-construtiva e criaram o grupo Frente, preparando o terreno para o surgimento do movimento neoconcreto, cuja contribuição prática e teórica mudou a arte brasileira, conforme é reconhecido hoje pela crítica nacional e internacional.
Do grupo do Rio faziam parte artistas do porte de Lygia Clark, Amilcar de Castro, Franz Weissmann, Aluísio Carvão, Hélio Oiticica, Lígia Pape e Abraham Palatnick, entre outros, sendo que todos eles participaram da Exposição Nacional de Arte Concreta, de 1956-57.
Cabe aqui um reparo à organização da mostra. Não é apenas Annateresa Fabris que ignora a presença desses artistas na história das vanguardas brasileiras. A própria mostra escandalosamente os ignora. Nenhuma obra deles -nem de qualquer outro membro do movimento neoconcreto- foi incluída nessa exposição, que pretende cobrir os movimentos de vanguarda desde 1920 até a década de 50. Ora, o "Manifesto Neoconcreto" -bem como a primeira exposição neoconcreta no MAM do Rio- é de março de 1959. Como explicar essa exclusão?
Os organizadores da mostra não podem alegar desconhecer o movimento neoconcreto, seus documentos e obras, já que os mencionam na cronologia e aludem a eles nos textos aqui referidos. Enquanto isso, o catálogo dedica páginas e páginas ao movimento concretista paulista e seus participantes. Poupo-me de fazer qualquer especulação a respeito, mas gostaria de conhecer a explicação que têm, para tão injustificável exclusão, o curador da mostra e os responsáveis por sua coordenação técnica no Brasil.
Mas não param aí as omissões. A mostra não inclui artistas como Fayga Ostrower e Gilvan Samico, de indiscutível importância na renovação da gravura brasileira. Também não se entende a pouca importância dada à contribuição teórica de Mário Pedrosa, com quem efetivamente começa a moderna crítica de arte no país. Nenhuma obra sua integra a bibliografia do catálogo e se ignora tanto o seu papel na defesa da arte concreta -que ele praticamente introduziu no Brasil- e na ruptura com o passado modernista, bem como suas reflexões sobre Brasília como fato decisivo na história da arquitetura contemporânea. Tais lapsos são difíceis de explicar num evento que começou a ser preparado desde 1996.
Como uma espécie de complementação à deglutição das vanguardas vindas de fora e aqui transformadas, o catálogo se ocupa do que alguns escritores e artistas estrangeiros, que aqui estiveram breve ou demoradamente, assimilaram dessa experiência e a incorporaram à sua visão de mundo e à sua obra. O texto "Tradutores do Brasil", de Carlos Augusto Machado Calil, nos fala de Darius Milhaud, Blaise Cendras, Le Corbusier, Georges Bernanos, Stefan Zweig, Orson Welles, Pierre Verger, Paul Claudel, Benjamin Péret, Lévi-Strauss e Elizabeth Bishop, que, pelas mais diversas motivações, aqui aportaram e mantiveram algum tipo de ligação com a nossa arte e a nossa gente, com a nossa paisagem e os nossos costumes, neles encontrando matéria para sua inspiração ou reflexão.
Cabe ainda mencionar os textos sobre as vanguardas literárias brasileiras, de Jorge Schwarz; sobre a arquitetura brasileira moderna, de Carlos Ferreira Martins; sobre modernidade e fotografia no Brasil, de Rubens Fernandes Júnior; sobre antropofagia e música, de José Miguel Wisnik; e sobre a problemática do cinema brasileiro, de Jean-Claude Bernardet. São todos eles ricos de observações e reflexões instigantes que exigiriam, para comentá-los, o dobro do espaço disponível.


Ferreira Gullar é autor de "Muitas Vozes" (Ed. José Olympio) e "Argumentação Contra a Morte da Arte" (Ed. Revan). 

Ferreira Gullar é poeta, escritor e crítico de arte.
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