Murilo por inteiro
SEBASTIÃO UCHOA LEITE
Poesia Completa e Prosa
Murilo Mendes Organização, edição e notas: Luciana Stegagno Picchio Nova Aguilar, 1782 págs. R$ 89,00
A obra poética de Murilo Mendes, reunida há não muito tempo atrás num único volume, organizado pela ensaísta Luciana Stegagno Picchio, se tornou, para os leitores de hoje, a redescoberta de um mundo submerso, que surpreende pela sua atualidade. Suas surpresas são muitas e para serem apreendidas com precisão ainda será preciso algum tempo. Assim, as notas que se seguem têm apenas a intenção de traçar algumas coordenadas, algumas trilhas dentro da selva linguística deste antigo-novo poeta. Tais notas serão provavelmente ainda rearticuladas para uma visão crítica mais particularizada da poética de Murilo Mendes e de suas complexidades semânticas e formais, visando a abranger o quanto possível a sua totalidade.
O juízo dessa totalidade é difícil. A obra de Murilo Mendes abarca direções múltiplas, deixa no ar contradições e indagações e, no final, o autor parece mudar radicalmente sua orientação estética. Mas, ao embrenhar-se no seu labirinto, o leitor percebe que faces esquecidas reemergem, como se houvesse uma ânsia de retorno às origens, e, vendo-se de perto, as mudanças não são radicais a ponto de haver renegação da obra anterior, exceto num caso esporádico. Estruturalmente, o poeta que estreou em Poemas" permanece igual a si mesmo no último livro, publicado fora do país e escrito em italiano, Ipotesi" (Hipóteses). E até no último publicado no Brasil, Convergência", repercutem ecos da intensa aventura poética iniciada com Poemas", em 1930. Sem dúvida, a obra inicial coloca as pedras fundamentais de uma trilha múltipla: dela sairão várias direções, mas três básicas: a do poeta crítico-irônico, a do poeta voltado para a cotidianidade e a do poeta voltado para a reflexividade.
A primeira prolonga-se em Bumba meu Poeta" e História do Brasil" -o primeiro, sobre a situação do poeta no quadro social, de onde acaba sendo deslocado, como os poetas são expulsos da república platônica; e o segundo, renegado depois (injustamente), faz uma antipoética e ácida paródia da história oficial" e seus clichês. A acidez irônico-crítica se recolherá na obra do poeta e se metamorfoseará no humor mais filosófico" dos paradoxos e jogos linguísticos. Estes já nasceram do primeiro texto do livro inicial, uma paródica Canção do Exílio" que transforma palmeiras" em macieiras da Califórnia", o sabiá" em gaturamos de Veneza", os sargentos do exército" em monistas, cubistas" e os filósofos" em polacos vendendo a prestações".
Parecia instalada a confusão, mas a desordem antitética seria a marca do poeta que impulsionaria uma originalíssima máquina de visões". E logo deságua em O Visionário"(1933-34), que junta as outras direções já assinaladas: a visão da materialidade cotidiana e a reflexão sobre os processos vitais. De versos como Tem a morte, as colunas da ordem e da desordem" e Me desliguem do mundo das formas", e do poema Mapa", um verdadeiro manifesto do desconjuntamento das coisas do mundo, daquele livro inicial, nasce o fluxo torrencial de imagens de O Visionário", que celebra os ciclos diversos de transformação da vida, vista em seus aspectos mais cotidianos. Homológico ao seu dualismo matéria/espírito, há, nessa obra, um semicompromisso entre o coloquialismo (mais de processos sintáticos) e a atenção à norma culta, jogo dual que persistirá em obras posteriores.
O poema Jandira" seria o exemplo máximo da metáfora transbordante da força da matéria de O Visionário". Mas é um jorro domado: as três partes do livro transmitem a idéia de caos ordenado, entre a híbris" do visionarismo e a absorção do mundo material. Posterior, Tempo e Eternidade" tenta dar uma resposta religiosa a esse caos hiperbólico, mas infelizmente é sem força poética para isso e decepciona diante da riqueza imagética do livro anterior. Os livros seguintes formam uma espécie de ciclo: Os Quatro Elementos", A Poesia em Pânico", As Metamorfoses" e Mundo Enigma". Afastam-se da substância que preside as eras", o tedioso essencialismo" conceitual de Ismael Nery, que tinha se sopreposto às almas desencontradas" de O Visionário".
De certo modo, a inquietação de Poesia em Pânico" foi uma correção dos excessos messiânicos do livro anterior. E a ele sucedem as visões concretas de Os Quatro Elementos", onde referências míticas fundem-se a imagens realistas (O Observador Marítimo"), recobra-se o humor perdido em Tempo e Eternidade", reforça-se a idéia de desmontagem criativa, incorporam-se elementos de problematicidade demoníaca" em A Poesia em Pânico"(A fulguração que me cerca vem do demônio") e expande-se a sensualidade herética", ainda nesse livro. E mais: acentuam-se as dualidades e os contrastes através das imagens barrocizantes", como no poema O Visionário" de As Metamorfoses": Eu vi os anjos nas cidades claras/ Nas brancas praças do país do sol" e Na manhã aberta é que vi os fantasmas/ Arrastando espadas nos lajedos frios/ Ao microfone eles soltavam pragas". Também se torna mais clara, nesses livros, a delimitação de formas, que em Mundo Enigma" se acentua. Compare-se, por exemplo, o poema dedicado a Vieira da Silva em As Metamorfoses" com o Harpa-sofá", de Mundo Enigma", mais objetal. A linguagem mista de referências míticas e concretas (últimas notícias de massacres") chega ao auge e transborda" no famoso Poema Barroco": Os cavalos da aurora derrubando pianos/ Avançam furiosamente pelas portas da noite".
Uma ligação secreta une Poemas", A Poesia em Pânico", Os Quatro Elementos", As Metamorfoses" e Mundo Enigma". Eles fundam a estética de base" de Murilo Mendes, com os seguintes princípios: 1) o predomínio intenso das imagens visuais, que dão um caráter plástico a essa poesia; 2) a idéia permanente de montagem/desmontagem, que, além do caráter plástico, traz consigo a idéia de movimento e ritmo; 3) o processo de construção que configura a sua obra como um jogo de antíteses; 4) certa politonalidade poética que permite misturar elementos poéticos" com os antipoéticos", segundo as visões ortodoxas; e 5) certa dissonância contrastante no uso dos elementos lexicais. Todos esses aspectos configuram a permanente preocupação formal na poesia de Murilo Mendes, que, por trás do seu singular desconstrucionismo", guardou sempre uma secreta ânsia de ordem em todas as suas fases, conseguindo unir, como num grande paradoxo, esta obsessão ordenadora e a vertigem e o fascínio pelo caos. Ao longo da sua obra, vários poemas se apresentam como emblemáticos dessa tendência dualista que o seguiu até o fim.
A partir de Poesia Liberdade", sobretudo a segunda parte, a linguagem muriliana torna-se menos abstratizante e intemporal. A poesia se delimita mais histórica e topologicamente. Fala de O choque do tempo contra o altar da eternidade" e O choque dos cerimoniais antigos/ Com a velocidade dos aviões de bombardeio". É poesia integrada à realidade histórica. No projeto posterior de Contemplação de Ouro Preto" (1949-50) recompõe-se um certo sermo nobilis", como se restaurasse a tradição descritiva da arcádia neoclássica. Mas o projeto é também introjetado de excessos hiperbarrocos e hipersimbolistas. É uma tentativa de colar" tema/forma através de uma restauração" prima-irmã da Invenção de Orfeu" de Jorge de Lima, um pouco posterior. Projeto fechado em si mesmo, com alguns altos momentos como o fragmento dedicado a São Francisco de Assis de Ouro Preto".
As soluções em Parábola e Siciliana" são diversas, pois há uma busca de concentração extrema, com realizações meticulosamente nítidas nesses dois livros, cuja economia topológica e busca de uma isomorfia tema/linguagem irá desaguar em projeto similar mas oposto ao da Contemplação". Pois Tempo Espanhol" quer abarcar uma civilização e dela construir um perfil claro. Noutros termos: através da própria linguagem poética e de imagens obsessivamente recorrentes (predominando as de concreticidade" e rigor"), construir o ideograma daquela civilização. Muda-se aí o paradigma poético, pois ao retrato descritivo" substitui-se um retrato linguístico". Como em Córdova": Conheço-te a estrutura tersa,/ Toda nervo e osso, contida/ Em labirintos de cal"(...). Em suma, uma linguagem tersa" como aquela estrutura, Onde Espanha é calculada/ Em número, peso, medida".
De certo modo, Convergência"(1970), última obra poética publicada em vida, no Brasil, não seria mais do que uma consequência lógico-formal de Tempo Espanhol", embora entre os dois livros medeiem 12 anos sem publicação, a não ser no exterior, e, aqui, de um livro de memórias. As consequências são extremas: os Grafitos" e Murilogramas" são, no primeiro caso, anotações sobre coisas, lugares e criadores artísticos, e, no segundo caso, mensagens pessoais exclusivas a artistas e poetas.
São profissões de fé de uma visão plural (convergências + divergências) e, às vezes, profissão de um certo fundamentalismo estético, uma crítica antiestetização do real, a louvação da antiestética (Antes cadeira no duro" de Grafito numa Cadeira"). Ou de uma visão minimística, como em Grafito na Escultura Santa Teresa' de Bernini", na linha gongórica ( Mármore vão petrificada espuma"), desgongorizada" pelo vão", que é o inútil e é o espaço interno da linha, e conceituada pelo verso Eu vi apalpei o signo" de Grafito para Giuseppe Capogrossi". Nos Murilogramas" há o predomínio da parataxe, onde se constrói o texto táctil". Tactilidade hipersintética que se vai radicalizando em Sintaxe", a segunda parte do livro, e termina com uma recuperação plena do humor, através de processos lúdicos extremados. E assim se retoma a antiga imagem do poeta-prestidigitador que vem de origens longínquas, do livro Poemas", já então totalmente construído", ao contrário de toda a lenda que envolveu o poeta.
Aqui se encerra esse roteiro de Murilo Mendes. Certamente, se ele se estendesse à sua prosa, sobretudo de Poliedro", livro anfíbio de poesia/prosa, e a obras em outras línguas, como Ipotesi", não chegaria a resultados diversos do que aqui se expôs.
Tem-se discutido o fato de o Murilo Mendes da última fase ter-se virado quase totalmente para uma denotatividade prosaica, quem sabe se por influências maléficas". Para esses críticos, Murilo Mendes teria empobrecido" a sua linguagem e deixado de ser, enfim, o poeta mais poético" que era até Mundo Enigma". Seria uma espécie de traidor de si mesmo". Os enigmas e paradoxos desapareceram e foram substituídos por uma linguagem explícita demais. Essa traição" inexiste. Os processos poéticos mudaram, mas a inflexão e tonalidade continuaram as mesmas.
Se ele se joãocabralizou" e se mondrianizou", como disse no final, ficou um Cabral desafinado e um Mondrian de linhas tortas. Se a obra anterior de Murilo Mendes sonhava um jogo de quebra-cabeças, com desmontagem/remontagem de peças, um mapa fragmentário a ser recomposto, ela não se tornou menos lúdica no final. Passou a jogar de outra maneira. Por exemplo, através de imitações, como no Murilograma para Mallarmé", em que o ideograma formal de Mallarmé é perfeito. Enfim, a busca de uma linguagem táctil, em que se constroem retratos linguísticos", como os diversos que há em Tempo Espanhol", ou como o de Murilograma para Graciliano Ramos": Brabo. Olhofaca. Difícil/(...) Desacontece, desquer", onde a construção assimétrica imita o estilo" de ser de um Personagem".
Pode-se preferir o Murilo antigo" (o de Mundo Enigma" para trás) por se achar que a riqueza poético-metáfórica era maior. As colagens fascinantes de imagens e elementos díspares se devem, naturalmente, às lições do universo das artes visuais. Essas lições não desapareceram. A verdade é que Murilo sempre ansiou pela ordem", não a ordem autoritária do fascismo, que sempre odiou, mas a ordem das coisas que se faz através de um paradoxal desconstrutivismo construtivo", como em O Operador" (Os Quatro Elementos"): Uma mulher corre no jardim/ Despenteando as flores/ Alguém desmonta o tempo/ Édipo propõe um enigma às constelações/ O mar muda provisoriamente de lugar/ Se assobiarem um foxtrote/ A ordem se fará outra vez". Esta ordem" que não despreza o humor é a mesma que se encontrará no final da sua vida/obra. Não um antípoda de si mesmo, mas um complementar do seu paradoxo original.