Antonio Arnoni Prado apresenta uma contribuição importante e necessária para a história da literatura brasileira. Delineia dois problemas complexos, que explora por meio de uma pesquisa cuidadosa de fontes primárias. Na primeira parte do livro busca compreender o período de transição entre as escolas literárias do século XIX e a renovação modernista, na segunda traz ao primeiro plano o aspecto mais difícil de aceitar do modernismo – o compromisso de certos escritores do período com ideologias de direita.
Ao fim deste esforço de reconstrução histórica, Arnoni Prado nos dirige a atenção para a figura até hoje inquietante de Plínio Salgado, romancista popular dos anos 1920 que na década seguinte se afirmou como líder do Integralismo, um partido nacional de massa inspirado no fascismo.
Ao tratar do período que antecede o Modernismo, Itinerário de uma falsa vanguarda recupera para a história da literatura a figura ambígua de Elísio de Carvalho, que já em 1899 era responsável pela revista A Meridional, no Rio de Janeiro. Prosador influenciado pelo decadentismo, mas ativo até a década de 1920, mecenas e bibliômano, ele foi próximo de um grupo que incluía os modernistas Graça Aranha e Ronaldo de Carvalho. Percorreu uma trajetória intrigante. Influenciado de início pelo anarquismo, identifica-se, nos anos vinte, com as correntes do nacionalismo ufanista.
Ao se voltar para o Modernismo, na segunda parte, Arnoni Prado retoma o vocabulário de Raymundo Faoro para designar o contraste entre duas tendências do movimento: de um lado os “modernistas da desordem”, os mais lembrados hoje, reunidos em torno de Mário de Andrade, e do outro os “modernistas da ordem”: Graça Aranha, Ronaldo de Carvalho, Renato Almeida, e os do grupo Verde-Amarelo em São Paulo, Plínio Salgado e Cassiano Ricardo, intelectuais que agora nos parecem de menor estatura. Graças a pesquisas de arquivo e entrevistas, Arnoni Prado mostra que Elísio de Carvalho constitui um elo entre os pré-modernistas e a segunda corrente do Modernismo.
Projeto restaurador e elitista
A argumentação de Itinerário de uma falsa vaguarda se desenvolve na perspectiva da história do pensamento. Por meio de leituras temáticas de textos literários e documentos, busca reconstituir linhagens de ideias e correntes ideológicas. Trata de examinar, ainda, o contexto histórico das discussões entre intelectuais. Baseando-se em uma interpretação da Primeira República como um regime oligárquico, mas profundamente marcado por conflitos entre grupos hegemônicos e camadas dependentes, Arnoni Prado vê um projeto restaurador e elitista nas correntes de pensamento que examina.
Mesmo sofrendo mudanças significativas ao longo dos anos, esta ideologia mantém sua continuidade, na medida em que reafirma sempre o poder de minorias dominantes através do recurso a um nacionalismo ufanista. De acordo com esta narrativa, o caminho do “movimento dissidente ilustrado” desemboca tanto na pregação integralista de Plínio Salgado, que instrumentaliza literatura e cultura a serviço de um desejado “novo Estado”, como no discurso do grupo carioca da revista Lanterna verde e de Ronald de Carvalho – um poeta que, o autor assinala, despertou a simpatia de fascistas italianos.
Dá o que pensar o trabalho excelente de Arnoni Prado. Um resultado frequente de contribuições originais à história da literatura, como a sua, é que as novas informações nos levam a repensar narrativas familiares, ou sugerem maneiras inesperadas de re-arranjar um quebra-cabeças que pensávamos conhecer. Para quem, como eu, também percorreu os textos do Verde-Amarelismo, este processo de leitura e reflexão serve, inevitavelmente, como estímulo à discussão. Quero mencionar aqui dois aspectos de Itinerário de uma falsa vanguarda que me parecem oferecer oportunidades de diálogo.
A trajetória da direita do Modernismo pode ser vista também, e por outro lado, como prosseguindo para além dos anos vinte, passando pela Segunda República e chegando, ao menos, até o Estado Novo. Por exemplo, há evidente continuidade entre a imagem infantilizada e contraditória do Brasil como hierarquia de raças que se constrói em Martim Cererê de Cassiano Ricardo e as imagens do país que circulavam nos anos 40 em editoriais dedicados à ditadura Vargas, publicados no jornal oficial do regime – dirigido pelo próprio Cassiano.
Plínio e Cassiano
À luz da análise da importância de Plínio Salgado e Cassiano Ricardo para o pensamento conservador elitista, vale a pena lembrar um aspecto comum às trajetórias dos dois, mas que não se ajusta facilmente em tal narrativa. De um ponto de vista social, tanto Plínio como Cassiano têm origem modesta; para ambos, a carreira de intelectual, no jornalismo e na política, corresponde a uma forma de ascensão. Plínio, filho de um farmacêutico e líder político em São Bento de Sapucaí, tornou-se órfão ainda adolescente e teve de abandonar os estudos por falta de recursos. Cassiano é filho de um sitiante empobrecido na região de São José dos Campos, e era reconhecido como afro-descendente por seus contemporâneos. Jovem, mudou-se com a família para São Paulo, onde mais tarde veio a se formar advogado, mas acabou se afirmando no jornalismo. Informações biográficas como as que acabo de apresentar estão longe de mostrar que os dois escritores não poderiam ter participado de um projeto elitista dissidente, ou que suas obras nada devem a tais correntes.
Entretanto, há ironias sugestivas. Oswald de Andrade, inegavelmente um escritor de vanguarda e de esquerda, endereçou críticas impiedosas ao grupo Verde-Amarelo – mas Oswald de Andrade é de família bem abastada. Os quiasmas inesperados deste quadro de filiações de classe indicam que seria interessante refletir acerca das mediações sociais tanto do pensamento como das escolhas políticas dos diversos grupos modernistas.
Luiza Franco Moreira é professora na Binghamton University