Mistérios de Rossellini
Ensaios analisam obra do cineasta italiano
LUCIA NAGIB
Roberto Rossellini, um dos maiores nomes da história do cinema, é também um dos que mais carecem de divulgação. A maior parte de sua vasta obra de 63 títulos, fruto de um trabalho ininterrupto iniciado em 1935 e encerrado em 1977, com sua morte, permanece ignorada do público. No catálogo brasileiro de vídeos constam apenas três títulos: "Roma Cidade Aberta" (1945), "Nós, as Mulheres" (1953, filme coletivo do qual Rossellini fez o episódio "Ingrid Bergman") e "O Messias" (1975, longa educativo originalmente feito para a televisão).
A razão dessa grave lacuna reside em boa parte no comportamento disparatado da crítica, ao acompanhar um cineasta cujo percurso é aparentemente cheio de contradições. Não foram poucos os filmes de Rossellini que viram sua carreira comercial ceifada pelo rigor excessivo ou a má vontade da crítica da época, incluindo algumas obras-primas, como "Alemanha, Ano Zero", "Stromboli", "Viagem à Itália". Os franceses, a começar por André Bazin, mas sobretudo os então jovens críticos dos "Cahiers du Cinéma" (com destaque para Truffaut e Godard), foram os únicos a defendê-lo incondicionalmente e revelá-lo a uma elite de cinéfilos infelizmente pequena.
"Roberto Rossellini - Magician of the Real" visa a suprir a necessidade de um olhar isento, hoje possível graças à distância temporal dos debates políticos e formais que inflamaram a crítica contemporânea às várias fases da obra rosselliniana. O livro é exemplar em sua organização. Embora reúna reflexões de cunho eminentemente acadêmico, traz um prefácio do cineasta americano Martin Scorsese, que faz eco ao argumento defendido por Forgacs, na introdução ao livro, de que "Rossellini foi um diretor de diretores, admirado e imitado por outros cineastas mundo afora, mais do que um diretor de críticos".
Ingrid e Roberto
Para aliviar o peso das meditações teóricas, incluiu-se um texto de apelo popular, de Stephen Gundle, que traça o histórico do ruidoso "affair" entre Rossellini e Ingrid Bergman. Ao final, um apêndice traz documentos valiosos, como uma entrevista e uma carta de Rossellini, um depoimento de Federico Fellini a respeito de seu colega e colaborador e, principalmente, o debate entre Guido Aristarco e André Bazin, o primeiro atacando os desvios políticos de Rossellini após "Europa 51" (1952), o segundo, defendendo sua coerência com a premissa neo-realista. O material informativo se completa com uma cronologia de vida e obra do diretor, além de filmografia e bibliografia detalhadas.
O quadro de autores compreende estudiosos do Reino Unido, Itália e EUA. Em que pesem as diferentes orientações teóricas, todos parecem adotar a abordagem autorista, ou seja, aquela que busca identificar nos filmes as marcas estilísticas do diretor. Sabemos o quanto tal método foi bombardeado pelas escolas estruturalistas e psicanalíticas, a partir dos anos 70, das quais derivam, aliás, vários dos autores do volume. No caso de Rossellini, porém, a visão autorista passa como óbvia, não apenas porque ele esteve na própria origem da política de autores dos "Cahiers du Cinéma", sendo figura central do famoso "panteão" dos melhores "autores" de cinema, mas porque se notabilizou pela intransigência na imposição de sua vontade na realização de um filme, não tolerando sequer que um roteiro viesse opor limites à sua inspiração momentânea.
Um único texto, "Rossellini and Neo-Realism", de Christopher Wagstaff, tenta escapar à visão autorista. Fazendo uma crítica inicial ao método de André Bazin, segundo Wagstaff, excessivamente "indicial", propõe uma delimitação das características neo-realistas por uma análise textual de "Roma Cidade Aberta" e "Paisà". Porém, após exposição razoavelmente enfadonha da teoria dos signos de Peirce, Wagstaff nos surpreende com um detalhamento em tudo contextual dos dois filmes, mergulhando de cabeça na análise do autor.
Os demais textos evitam essa armadilha, harmonizando-se em abordagens complementares que delineiam o universo rosselliniano, não como um ziguezague de incoerências, mas como uma sucessão lógica de fatos. Uma das análises mais surpreendentes é a de Ruth Ben-Ghiat sobre a trilogia fascista de guerra, que inclui os filmes "La Nave Bianca" (1941), "Un Pilota Ritorna" (1942) e "L'Uomo dalla Croce" (1943). Nunca foi fácil explicar como um diretor, logo após três filmes de propaganda fascista, teria composto o hino da resistência italiana, "Roma Cidade Aberta", inaugurando a escola libertária do neo-realismo. Teria Rossellini repentinamente mudado sua orientação política? Ou haveria já elementos antifascistas na trilogia?
Neo-realismo e fascismo
Desprezando ambas as alternativas, Ben-Ghiat procura restaurar uma espécie de elo perdido da história. Ela localiza a origem do neo-realismo já no próprio cinema fascista, cujo veio documental fora estimulado por Benito Mussolini desde meados dos anos 20. Rossellini era amigo íntimo do filho do ditador, Vittorio Mussolini, que o introduziu no universo cinematográfico, abrindo-lhe as portas para o aprendizado de técnicas do documentarismo militar.
Ao final, conclui-se que Rossellini nunca se enquadrou realmente numa opção política: fascista por conveniência, no início da carreira, se aproximou dos comunistas ao final da guerra, acima de tudo para poder realizar seu cinema. O texto de Geoffrey Nowell-Smith, "Norte e Sul, Leste e Oeste - Rossellini e a Política", é iluminador no sentido de deslocar a "política" rosselliniana para outro campo conceitual. Em seu cinema avesso à teoria, a política ocorreria sob a forma de "revelação", ou seja, em momentos em que subitamente a comunicação ocorre. O fato é especialmente significativo em filmes contendo personagens estrangeiros, cujo entendimento verbal com os italianos é dificultado pela língua ("Paisà", por exemplo), e alcança o ápice nos filmes com Ingrid Bergman, nos quais ela é sempre uma forasteira pouco à vontade na Itália.
A política se transforma, assim, num conflito entre italianos e não-italianos, e, no caso de filmes como "Viagem à Itália", entre europeus do norte e do sul. Nowell-Smith vai mais longe ao analisar as produções para televisão, às quais Rossellini dedicou suas duas últimas décadas de vida. Nelas, a proposta monumental de construir uma história do Ocidente revela uma visão em que o Mediterrâneo seria o centro civilizatório do planeta, numa "geografia italocêntrica, que privilegia as zonas do mundo que fizeram parte do Império Romano".
Naquele que é talvez o mais belo texto do livro, "As Paisagens de Rossellini - Natureza, Mito, História", de Sandro Bernardi, o conceito de revelação se converte no de epifania. Para Bernardi, a experiência do sagrado em Rossellini tem menos a ver com catolicismo ou cristianismo do que com o princípio religioso em seu sentido original de "religio" ou "ligação". E aqui a paisagem exerce papel central. "É na paisagem", escreve Bernardi, "que os personagens, em sua experiência visionária, saem de si mesmos e descobrem o mundo de que fazem parte. A relação do indivíduo com o todo, o culto dos mortos, o amor, a descoberta e a observação do mundo -eis os aspectos que ligam a paisagem ao mito como uma epifania do sagrado". Os exemplos são inúmeros: a descida ao inferno subterrâneo de Nápoles após a guerra, em "Paisà", a paisagem vulcânica de "Stromboli", a Berlim em ruínas de "Alemanha Ano Zero", as catacumbas em "Viagem à Itália", em todos eles a visão da paisagem permite ao personagem, num dado momento, a experiência do sagrado.
O primeiro filme moderno
"Viagem à Itália", um dos cinco filmes da fase Bergman, é retomado em análise detalhada por Laura Mulvey, que o considera "o primeiro filme moderno", pelo minimalismo descontínuo da narrativa e a artificialidade intencional da atuação provocada por Rossellini, que obrigou ao improviso atores profissionais do porte de Ingrid Bergman e George Sanders. Mulvey retoma os princípios de ontologia e indicialidade de André Bazin para analisar um importante momento de revelação: a escavação do casal de amantes cuja forma se preservou na lava do Vesúvio e cuja visão leva o casal de personagens vivos à reconciliação. Para a autora, as formas gravadas na lava representam "a imagem indicial e o real no cinema", obedecendo o mesmo princípio do filme, que é preservar na imagem o passado das coisas e reanimá-las após a morte.
Contendo ainda duas outras análises de filmes individuais ("Francisco, o Arauto de Deus", de Alan Millen, e "India", de Sam Rohdie), o livro se encerra com um panorama meticuloso e erudito dos filmes históricos para TV, de Adriano Aprà, indicando que a maior paixão de Rossellini, para além da religião e da política, seria talvez a história.
Após a separação de Bergman, em 1956, Rossellini anunciou a morte iminente do cinema e se voltou exclusivamente para a televisão. "A sabedoria humana está se expandindo numa velocidade vertiginosa, e, para acompanhá-la, os indivíduos precisam multiplicar suas capacidades atuais. Apenas novos métodos de educação e comunicação poderão levá-los a isso", justificou o diretor em carta a Peter Wood . Muitos, inclusive Fellini, discordaram dessa obsessão educativa, que parecia indicar ressentimento com o ambiente cinematográfico.
O livro se isenta de um julgamento final. Mais do que esclarecer, tem o mérito de descortinar a vasta extensão do mistério que ainda nos reserva a obra de Rossellini.
Lúcia Nagib é professora na Universidade de Campinas e autora, entre outros livros, de "Nascido das Cinzas - Autor e Sujeito nos Filmes de Oshima" (Edusp).
Roberto Rossellini - Magician of the Real
David Forgac, Sarah Lutton e Geoffrey Nowell-Smith (orgs.)
BFI (British Film Institute)
208 págs., 14,99 libras esterlinas
Onde encomendar:
Em SP, à livraria Cultura
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e, no Rio, à livraria Marcabru
(Tel. 0/ xx/21/ 294-5994)