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Sérgio Miceli - 84 - Abril de 2002
Literatura da pátria livre
Foto da capa do livro O Romantismo no Brasil
O Romantismo no Brasil
Autor: Antonio Candido
Editora: Humanitas - 106 páginas
Foto do(a) autor(a) Sérgio Miceli

 O leitor poderá curtir "O Romantismo no Brasil" a caminho do tesouro guardado em "Formação da Literatura Brasileira (Momentos Decisivos)" (1959), obra-mestra que marcou tão fundo as gerações intelectuais subsequentes. Os achados do livrinho atual estão condensados na abertura, escorço compacto de contextualização, e no fecho bem urdido, acerca dos sentidos da bandeira brasileira. A ausência do famoso intróito metodológico em torno do conceito de formação bem como das notações tributadas a modelos antagônicos de interpretação da literatura (Lukács versus Leavis, por exemplo) não comprometem o prazer de sorver este resumo caprichado como aperitivo da mais completa e polêmica análise sobre um momento constitutivo da literatura e da nação brasileiras.

Logo, não obstante ter sido escrito para um público italiano, o resumo preserva as feições de sua fonte: a ambição do desígnio interpretativo; o confronto de mão dupla entre os feitos literários e os andamentos concomitantes da história social e política do país recém-alçado ao status independente; e a polpa do argumento por meio de relances de análises de obras, autores, gêneros e influências. Os passos concatenados do resumo produzem esse efeito telescópico de dimensionar o fôlego de invenção do crítico.
O argumento de Antonio Candido sobre o romantismo brasileiro se resolve, quase por inteiro, nos materiais pinçados das obras, que lhe permitem elaborar uma teia de ligamentos entre processos (econômicos, sociais, políticos), suportes (ideológicos, retóricos, visuais, estéticos) e fatura literária. Sem jamais pretender justificar o valor de uma dada obra em virtude apenas de razões extra-artísticas, tampouco deixa de acolher toda sorte de injunções externas e feitos "menores", que se revelam esclarecedores na escala do quadro analítico em conjunto.
O livro de 1959 continua vivo e intrigante por conta dos riscos analíticos assumidos, pela pachorra de querer desentranhar dos textos certas fulgurações palpáveis de nossos impasses e perplexidades, de nosso tumulto, de nosso feitio de emotividade e paixão. Os acertos de leitura se conjugam ao senso de medida no desenho do enredo cronológico, sem descurar de obras e autores que outros críticos teriam dificuldade de encaixe, todo esse mexido temperado pela erudição e por um estilo expressivo à altura das paráfrases e deslindamentos de uma entonação literária já um tanto distante das convenções atuais.

Nacionalismo
O recorte cronológico obedeceu aos critérios políticos e estéticos de definição do corpus, fazendo entrar em linha de mira obras e autores suscitados pelo nacionalismo. Alguns efeitos de cooptação ou motivações doutrinárias se fazem sentir nos liames que enredam a primeira geração romântica nos projetos palacianos ou então no enraizamento da sensibilidade dos moços escritores na cultura acadêmica da Faculdade de Direito em São Paulo ou ainda na militância abolicionista que reverbera na poesia social e antiescravista de Castro Alves.
O leitor do resumo ora publicado terá acesso às entradas do cardápio, acepipes que vão lhe atiçar a gana de ir adiante e saborear a interpretação na íntegra. Assim, por exemplo, a despeito do comedimento e do bom-mocismo imperantes nos anos 40 e 50, época de redação da "Formação", Candido não se acanhou em esmiuçar os arroubos poéticos da segunda geração na chave de suas experiências eróticas, desde os poemas voluptuosos de Bernardo Guimarães, passando pelos versos sentimentais de "amor sonso" de Casimiro de Abreu, pelos rompantes dilacerados de frustração de Álvares de Azevedo até os sonetos apaziguados de Castro Alves enrabichado pela atriz Eugênia Câmara.
No decorrer da análise, Candido está sempre, para usar um termo seu, como que "apalpando" a sociedade brasileira, ora sugerindo sintonias entre o resultado lírico e o universo burguês das chácaras e jardins na época imperial, ora mapeando, nos romances de Alencar, Taunay, Távora, peculiaridades regionais e situações interativas (por exemplo, a insistência em focalizar personagens negros ou desclassificados) características dos conflitos de classe e tensões raciais entre nós.
Talvez se pudesse agora fazer a análise enveredar por temas já prenunciados, para onde convergem vicissitudes biográficas e artefatos literários. Valeria a pena refletir acerca do impacto das variadas doenças de que foram acometidos no processo de elaboração de suas obras: Junqueira Freire, coração; Álvares de Azevedo, tuberculose e câncer; Casimiro de Abreu, tuberculose; Castro Alves, amputação do pé esquerdo por gangrena, tuberculose. Outras pistas, abordadas um tanto de esguelha, como, por exemplo, o aulicismo poético de diversos românticos, a poesia obscena e metalírica de Bernardo Guimarães ou os volumes autobiográficos de Alencar e Taunay, decerto estão a merecer um exame atento aos desafios analíticos motivados por essa "literatura da pátria livre" que vem a ser o romantismo, nos termos equacionados magistralmente por Antonio Candido.

 

Sérgio Miceli é professor do departamento de sociologia da USP.
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