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João José Reis - 93 - Fevereiro de 2003
Insurreição no Atlântico negro
Historiador inglês discute a abolição do tráfico negreiro
Foto da capa do livro A queda do escravismo colonial 1776-1848
A queda do escravismo colonial 1776-1848
Autor: Robin Blackburn
Tradução: Maria Beatriz de Medina
Editora: Record - 602 páginas
Foto do(a) autor(a) João José Reis

Os temas da escravidão e da emancipação dos escravos figuram entre os mais estudados pela historiografia nos últimos 30 anos, e sob diversas perspectivas. A bibliografia é enorme e não pára de crescer, sobretudo aquela escrita em inglês. Há cerca de 15 anos, quando acontecia no Brasil a controvertida comemoração dos cem anos de abolição, o historiador Robin Blackburn publicou o livro agora traduzido. Nele, ao sintetizar uma boa parte da literatura sobre o processo de abolição da escravatura nas Américas, ele oferece uma narrativa inteligente de um fenômeno complexo, na boa tradição da historiografia marxista inglesa.
Blackburn trafega entre grandes intelectuais e abolicionistas, governo e sociedade, colônia e metrópole, escravo e senhor, investiga os interesses materiais e seus vínculos com o debate ideológico, propõe análises sofisticadas da ação política enquanto expressão dos embates de classe e da diplomacia entre as grandes e pequenas potências escravistas da época. A geografia coberta não é pequena, dedicando-se individualmente a cada uma das mais importantes regiões escravistas das Américas e suas respectivas metrópoles.

EUA, Cuba e Brasil
Blackburn promete para um outro trabalho a análise de três dos mais vigorosos sistemas escravistas do hemisfério -o Sul dos Estados Unidos, Cuba e Brasil-, que só libertaram seus escravos durante a segunda metade do século 19. Brasil e Cuba ganham um capítulo da obra, tratados como casos que escaparam à primeira grande onda abolicionista discutida pelo autor. Dessa onda fez parte a abolição do tráfico de escravos, combatido globalmente pela Inglaterra desde o início do oitocentos e que trouxe importantes consequências para aquelas duas regiões. A abolição do tráfico é um dos assuntos relevantes do livro.
Blackburn cobre o período que vai da revolução americana da independência, momento em que algumas das colônias do norte adotaram tímida legislação emancipacionista, até a revolução de 1848 na Europa, ano em que a França aboliu a escravidão em suas colônias caribenhas.
Esse o período que se convencionou chamar a era das revoluções, quando o mundo atlântico foi sacudido por polêmicas ideológicas, debates políticos, lutas de classes, movimentos de descolonização e outros conflitos armados que tiveram como foco a conquista de liberdades políticas e civis, liberdades individuais e de povos inteiros, num Ocidente dominado por estruturas sociais e de poder aristocráticas e que se encontrava atolado no tráfico e na escravidão de milhões de africanos e seus descendentes.
Os aspectos políticos e ideológicos da escravidão, principalmente no meio anglo-saxão, já foram discutidos por diversos autores, entre eles David Brion Davis em exaustiva obra, "The Problem of Slavery in the Age of Revolution, 1770-1823". Blackburn percorrerá muito o terreno coberto por Davis, mas além de ampliar o escopo geográfico, sua abordagem é mais integrada por elementos da história social e econômica. É uma discussão mais abrangente.
Nesse período de retórica concentrada em torno do tema da liberdade, a escravidão, como escreveu Davis, se tornaria um problema moral. Todos os grandes movimentos reformistas e revolucionários nas colônias ou nas metrópoles se viram obrigados a discuti-la, por insistência de abolicionistas impertinentes, religiosos tementes a Deus e escravos impacientes. Todos de alguma forma apontavam a hipocrisia dos belos discursos libertários recitados por patriotas, revolucionários e reformistas que, ao mesmo tempo, não hesitavam em ter suas senzalas bem abastecidas e severamente disciplinadas -inclusive gente grande, como Jefferson e Washington.
Essa seria talvez a grande contradição moral da época, resolvida por muitos mediante a divulgação dos primeiros escritos mais sistemáticos em defesa da tese de que os negros pertenciam a uma outra espécie de humanidade, quando não eram simplesmente excluídos do gênero humano.

Altos e baixos
A tarefa de Blackburn não é fácil, porque não é fácil controlar a bibliografia a respeito de tema tão vasto, escrita em diversas línguas, cobrindo tantas regiões. Por isso seu livro tem altos e baixos. É muito detalhado, por exemplo, quanto ao abolicionismo inglês, um tema cuja literatura já era enorme na década de 1980 e não parou de crescer desde então.
A trajetória desse abolicionismo é explicada, em quase cada lance e personagem, desde os anos de 1770 até 1838, quando terminou antes da hora prevista, por pressão dos libertos, o regime de "aprendizado" estabelecido para eles no Caribe inglês por uma lei emancipacionista passada cinco anos antes. O abolicionismo europeu, sobretudo o inglês, em geral tratou o problema da escravidão como parte de reformas democráticas mais amplas. Apesar de decidir suas vitórias principalmente por meio de jogos de poder na cúpula de governo, o movimento também teve seu lado popular.
Na Grã Bretanha as campanhas de rua mobilizaram trabalhadores, inconformistas religiosos, marinheiros, mulheres e outros grupos em esforços memoráveis para a obtenção de milhares de assinaturas firmadas sobre petições enviadas aos parlamentares. Blackburn desce a detalhes dessas duas frentes da luta antiescravista, a parlamentar e a popular, inscrevendo-as de maneira compreensível e convincente na dinâmica da história social e política inglesa da época.
Já em relação ao Brasil, a região que mais importou escravos da África, a discussão é sugestiva em muitos aspectos, mas superficial em sua demonstração empírica, talvez porque baseada numa bibliografia rala. Por exemplo, as diversas e bem conhecidas memórias proto-abolicionistas das décadas de 1820 a 1840 não são examinadas, exceto a representação de José Bonifácio à Assembléia Constituinte de 1823. Aliás, no caso da América ibérica como um todo, o autor oferece uma visão para lá de panorâmica, embora útil, sobre as leis abolicionistas feitas -e às vezes desfeitas- no calor dos movimentos de descolonização e formação de Estados nacionais. A explicação esboçada por Blackburn a respeito da pouca tinta gasta sobre a região -a menor importância da escravidão aqui, exceto Cuba e Brasil- não é muito convincente, e ele próprio desconfia dela.
Em termos da política do cotidiano foram os escravos que desde sempre atuaram na linha de frente da luta pela liberdade, e isso Blackburn admite, embora não aprofunde. As fortes relações entre a política escrava miúda e seu conteúdo cultural, inclusive o papel da religião africana, com os movimentos de maior porte podem ser verificadas na revolução do Haiti, como esclarece Carolyn Fick em estudo inovador, "The Making of Haiti: The Saint Domingue Revolution from Below".

"Jacobinos negros"
Este livro ainda não estava disponível quando Blackburn escreveu o seu, que apenas tangencia o tema. Mesmo assim, o autor proporciona uma discussão esclarecedora sobre o mais complexo e empolgante capítulo da libertação dos escravos nas Américas, equilibrando sua narrativa entre o abolicionismo metropolitano no contexto da revolução francesa e o movimento escravo naquela que era a colônia européia mais próspera do Caribe. Apesar de alguma hesitação, os rebeldes -muitos deles ex-escravos, como o grande Toussaint Louverture- terminaram por destruir a escravidão na prática, entre 1791 e 1793, e forçar a Convenção Nacional da França revolucionária a aboli-la de direito, em 1794.
Ao longo de dez anos os "jacobinos negros" enfrentaram e superaram divisões em seu próprio meio, combateram e venceram forças enviadas pela Inglaterra, Espanha e França, as grandes potências européias da época. Após a derrota das forças napoleônicas, encarregadas de restabelecer a escravidão e a ordem colonial, eles proclamaram a independência da ilha em 1804, só então batizada como Haiti. A escravidão nas Américas não seria a mesma depois disso. O chamado "haitianismo" circulou pelo Atlântico negro durante muitas décadas, levando esperança aos escravos e temor aos senhores.
A narrativa de Blackburn vincula a resistência explícita e coletiva dos escravos com as lutas abolicionistas nas colônias e, sobretudo, nas metrópoles. Argumenta que os líderes escravos souberam avaliar as conjunturas políticas a seu redor, explorando em benefício de suas causas os debates relacionados com as reformas da instituição escravista, além dos conflitos abertos e armados entre os homens livres. Durante a guerra pela independência americana exploraram vantagens aliando-se ao lado que acenassem com a liberdade mais convincentemente.
No caso do Haiti, aproveitaram-se dos conflitos intensos entre republicanos e monarquistas, brancos e mulatos, "petits blancs" e "grands blancs", e as diversas facções políticas no interior da França revolucionária. Nas colônias britânicas -Barbados, em 1816, Demerara, em 1823, e Jamaica, em 1831-32-, milhares de escravos participaram de insurreições cujos líderes os haviam convencido de que notícias a respeito de discussões parlamentares e atos governamentais visando a reformar aspectos mais cruentos da escravidão eram na verdade decretos emancipacionistas emitidos pela metrópole e desobedecidos pelos senhores e governos coloniais.
Blackburn não resolve de maneira simplista qualquer debate historiográfico em torno do fim do tráfico e da escravidão. Um dos mais importantes e caros à tradicional interpretação marxista foi provocado por Eric Williams em "Capitalism and Slavery" e diz respeito ao fim do regime nas colônias britânicas do Caribe. Segundo Williams, "os capitalistas primeiro encorajaram a escravidão nas Índias ocidentais e depois ajudaram a destruí-la". Blackburn não dá uma rasteira em Williams, mas sobe sobre seus ombros para ver mais longe e demonstra que os "capitalistas" não formavam um bloco coerente e que a abolição foi decidida num processo complexo de lutas políticas e de classe nas colônias e na metrópole.
A tradução do livro, embora em geral fluente, tem problemas às vezes curiosos, talvez por falta de uma revisão técnica mais cuidadosa com o vocabulário especializado. A certa altura (nota 17 do capítulo 11), "drivers and skilled slaves" foi traduzido, espantosamente, como "motoristas [!" e hábeis escravos", onde deveria ser "feitores e escravos especializados". A palavra "maroon" (pág. 32) foi mantida no original, quando poderia ter sido traduzida por "quilombola", termo vigente na literatura brasileira sobre escravidão. Em diversas passagens que se referem à agricultura açucareira, melhor teria sido usar os termos engenho e senhor de engenho e não "plantation" (mantido no original) e "dono de plantation". No próprio título a expressão do original "colonial slavery", ao ser traduzida por "escravismo colonial", remete a uma perspectiva específica de interpretação que não é a do autor, sendo por isso mais apropriado traduzi-la por "escravidão colonial", como aliás aparece em vários momentos do texto.
Nenhum dos problemas apontados diminui a importância deste livro, pelo valor de suas análises sutis. Sua publicação deve ainda ser aplaudida porque há pouca coisa escrita ou traduzida no Brasil sobre a escravidão de uma perspectiva continental.


João José Reis é historiador e professor na Universidade Federal da Bahia.

João José Reis é Professor Titular do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia
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