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Marilena Chaui - 115 - Dezembro de 0012
Infortúnio - o poder separado II
O risco permanente do mau encontro no Discurso sobre a servidão voluntária de La Boétie
Foto da capa do livro Discurso sobre a servidão voluntária
Discurso sobre a servidão voluntária
Autor: Étienne de la Boétie
Tradução: Evelyn Tesche
Editora: Edipro - 80 páginas
Foto do(a) autor(a) Marilena Chaui

O Discurso da Servidão Voluntária poderia ser lido na chave da tradição cujo quadro esboçamos acima. No entanto, há algo no texto de La Boétie que nos impede de permanecer nessa chave. E esse algo se torna legível se fizermos um desvio por uma outra tradição.

Num dado instante do Discurso, exatamente quando formula a ideia de mau encontro que teria desnaturado o homem, fazendo-o perder a lembrança de sua liberdade natural originária, La Boétie ergue uma hipótese: a de que nascesse uma "gente toda nova, nem acostumada à sujeição nem atraída pela liberdade" e à qual se perguntasse se quereria viver como serva ou viver livre: "com que leis concordaria?", indaga La Boétie. A hipótese é evidente: La Boétie se refere à imagem dos habitantes do Novo Mundo, tradicionalmente apresentada pelos viajantes como a dos homens sem lei, sem fé e sem rei.
Ora, essa imagem tornara-se central nas disputas europeias sobre a o direito dos conquistadores. As questões mais debatidas pelos teóricos do período se referem ao direito natural, ao direito das gentes, ao direito civil, se os índios são ou não escravos naturais, se a existência de reinos, como os do México, indica a necessidade de incluir os índios no direito das gentes e no direito civil. Em outras palavras, as discussões quinhentistas são de tipo jurídico e oscilam entre a afirmação e a negação do direito natural, do direito das gentes e do direito civil aos índios, e entre a afirmação e a negação da escravidão natural dos indígenas.
A peculiaridade do texto de La Boétie está, antes de tudo, em não propor a questão do "selvagem", isto é, de um outro que seria o mesmo que nós, europeus, numa fase primitiva de evolução, nem de um outro imaginado como "bom selvagem", nem o selvagem como figura já constituída da política e do direito civil. Em outras palavras, La Boétie não introduz uma questão jurídica, nem uma imagem da "gente toda nova" como etapa na constituição da identidade humana, isto é, europeia. La Boétie fala em gente não acostumada à sujeição nem atraída pela liberdade. Isto é, de gente que não instituiu um Estado, de gente que nem mesmo conhece o nome da liberdade, mas que, se posta diante de uma escolha e de uma deliberação entre dois contrários possíveis, quais sejam, servir a si mesma ou servir a um senhor, escolheria "servir à razão" em vez "servir a um homem". Essa "gente toda nova", desconhece o nome da liberdade justamente porque vive livremente; é uma gente racional e é essa racionalidade que a faz escolher, sem titubear, servir à razão, isto é, a si mesma, e não servir a um homem, isto é, a um senhor. Em outras palavras, La Boétie não indaga se essa gente disputaria sobre formas legítimas e ilegítimas de dominação, mas afirma que essa gente recusaria qualquer forma de dominação. Dessa maneira, a imagem quinhentista dos selvagens como gente sem lei, sem fé e sem rei assume um sentido inteiramente novo: não se trata de gente que não sabe como ter leis, uma fé e um rei, e sim de gente que escolheu não os ter porque escolheu a liberdade.
A "gente toda nova", como dissemos, é introduzida num momento preciso do Discurso, quando La Boétie indaga como se deu o mau encontro, isto é, como explicar que o homem, o único naturalmente feito para viver livremente, seja aquele que se sujeita a um jugo que nem mesmo os animais aceitariam sem primeiro lutar contra ele e sem serem forçados a ele. Essa interrogação se articula a uma outra, que é o centro do Discurso: a interrogação de La Boétie não se dirige à diferença entre poderes legítimos e ilegítimos nem à busca da causa da tirania, mas se volta para o enigma da separação do poder. Como foi possível que os homens tenham instituído um poder separado da sociedade e que, graças a essa separação, pode dominá-los como uma força estranha e transcendente?
Que a interrogação do Discurso não é sobre a causa da tirania e sim sobre a origem do poder separado da sociedade, a prova está em que La Boétie afirma haver três tipos de tiranos - por eleição, por conquista e por hereditariedade -, mas que, embora diferentes as maneiras de chegar ao poder, é "sempre a mesma a maneira de reinar". Ou seja, o tirano não é aquele que exerce um poder excessivo e ilegítimo, mas simplesmente aquele que exerce o poder quando os homens escolheram ou aceitaram um poder que se situa fora e acima da sociedade e que alguém o exerça porque escolhido para exercê-lo. Por que não há diferença nas maneiras de reinar? Porque o eleito se comporta como um conquistador e o conquistador, como se tivesse sido eleito, e ambos trabalham para assegurar a hereditariedade do poder, que lhe dará traços da naturalidade, como se tivesse existido desde sempre, por Natureza. A pergunta de La Boétie, portanto, é: como nasceu um poder transcendente à sociedade? E a resposta inicial é que, se se perguntasse à "gente toda nova" se quereria servir a um senhor, ela responderia "não" e não permitiria o nascimento de tal poder.
Assim, a "gente toda nova" surge no Discurso para demonstrar que não há necessidade natural nem necessidade de destino no surgimento do Estado como poder separado da sociedade, isto é, como dominação de um senhor ou de vários senhores sobre o restante da sociedade. Se não é por necessidade da natureza nem por necessidade do destino que tal poder foi instituído, qual é a origem e a causa de sua instituição? Se esta não é uma necessidade, então há de ser ou contingente ou voluntária. Visto que, nas ações humanas, o contingente é o que acontece por fortuna enquanto o que acontece por vontade é feito por liberdade, cabe indagar se o poder separado, isto é, o Estado, surgiu por infortúnio, e não por ação humana deliberada do homens, ou se nasceu pela liberdade da vontade humana. Nasceu por fortuna e mau encontro ou por livre decisão da vontade?


O Discurso da servidão voluntária, como seu título indica, debruça-se sobre um enigma: como os homens, seres naturalmente livres, usaram a liberdade para destruí-la? Como é possível uma servidão que seja voluntária? De fato, escreve La Boétie, servidão voluntária é alguma coisa que a natureza, ministra racional de Deus e boa governante de todas as coisas, se recusou a ter feito. Mais do que isso. Servidão voluntária é algo que a própria linguagem se recusa a nomear, pois essa expressão é um oxímoro, uma vez que vontade livre e servidão são opostas e contrárias: toda vontade é livre e só há servos por coerção ou contra a vontade, coisa de que até os animais dão prova. O enigma, portanto, é duplo: como homens livres se dispuseram livremente a servir e como a servidão pode ser voluntária?
É para responder a essa interrogação e decifrar esse duplo enigma que La Boétie começa propondo o infortúnio ou o mau encontro como resposta. Foi por fortuna que os homens se desnaturaram, isto é, perderam a liberdade natural e escolheram ter senhores, acostumando-se a servi-los. Desaparecido o amor da liberdade e enraizada a "obstinada vontade de servir", os humanos perderam o direito natural, isto é, desaprenderam de ser livres e se esqueceram de que, por natureza, obedecem apenas à razão e não são servos de ninguém. Por que por fortuna? Por que por mau encontro e infortúnio? Porque, escreve La Boétie, por natureza somos todos livres, iguais e companheiros, com o dom da fala e do pensamento para nos reconhecermos uns aos outros e para que, declarando nossos pensamentos e sentimentos, possamos criar a comunhão de ideias e afetos. Portanto, "não pode cair no entendimento de ninguém que a natureza tenha posto alguém em servidão". Consequentemente, se somos servos, não o somos por obra da natureza, mas por operação da fortuna. Mas que infortúnio foi esse, que mau encontro foi esse que nos desnaturou a tal ponto que já nem nos lembramos de que um dia fomos iguais e livres?
A resposta é buscada na origem da tirania: o infortúnio, essa contingência incontrolável, aconteceu no momento em que os homens elegeram um senhor, que se tornaria tirano, ou no momento em que foram conquistados pelas armas de um tirano. No primeiro caso, foram imprudentes; no segundo, vencidos pela força. Ora, ainda que diferentes as maneiras de um tirano chegar ao poder, já sabemos que é idêntica à maneira de governar e, se assim é, não basta referir a causa da tirania à fortuna, pois mesmo que suba ao poder num momento de infortúnio, o tirano nele se conserva por consentimento voluntário dos tiranizados. Se a fortuna pode explicar o advento da tirania, isto é, que o poder se separe da sociedade, não pode explicar sua conservação e, dessa maneira, estamos de volta ao nosso enigma inicial: como é possível a servidão voluntária?
O Discurso procura, então, nova resposta. Se por natureza os homens são livres e servem somente a si mesmos, servindo à razão, a servidão só pode ser explicada pela coação ou pela ilusão. Por coação: os homens são forçados, contra a vontade, a servir o mais forte. Por ilusão: os homens são iludidos por palavras e gestos de um outro, que lhes promete bens e liberdade, submetendo-os ao iludi-los. Novamente, porém, a resposta não é satisfatória, pois, como anteriormente, a coação e a ilusão podem explicar por que o tirano sobe ao poder, isto é, por que o poder se separa da sociedade, mas não podem explicar por que ele assim se conserva. Agora, porém, La Boétie parece encontrar a boa resposta: a tirania se conserva pela força do costume. Este é uma segunda natureza e os humanos, inicialmente forçados ou inicialmente iludidos, se acostumam a servir e criam seus filhos alimentando-os no leite da servidão; por isso os que nascem sob a tirania não a percebem como servidão e servem voluntariamente, pois ignoram a liberdade. O costume, portanto, é o que nos ensina a servir.
Ora, qual o engano dessa argumentação que parece tão coerente? Supor que o costume possa ser mais forte do que a natureza e apagá-la. A prova de que isso é falso está no grande número de exemplos históricos de povos e indivíduos que lutaram para recobrar a liberdade perdida. Destarte, o poder separado, mesmo que seja instituído por fortuna e conservado por costume, não encontra na fortuna e no costume sua origem verdadeira. É preciso, ainda uma vez, explicar de onde o poder separado tira a força para se conservar e de onde vem o desejo de servir. É preciso saber por que e como os homens agem para sua própria servidão.
A força do tirano, explica La Boétie, não está onde imaginamos encontrá-la: nas fortalezas que o cercam e nas armas que o protegem. Pelo contrário, se precisa de fortalezas e armas, se teme a rua e o palácio, é porque se sente ameaçado e precisa exibir signos de força. Fisicamente, um tirano é um homem como outro qualquer - tem dois olhos, duas mãos, uma boca, dois pés, dois ouvidos; moralmente, é um covarde, prova disso estando na exibição dos signos de força. Se assim é, de onde vem seu poder, tão grande que ninguém pensa em dar fim à tirania? Vem da ampliação colossal de seu corpo físico por meio de seu corpo político, provido de mil olhos e mil ouvidos para espionar, mil mãos para espoliar e esganar, mil pés para esmagar e pisotear. O corpo físico do tirando não é ampliado apenas pelo corpo político como corpo de um colosso, também sua alma ou sua moral são ampliados pelo corpo político, que lhe dá as leis, lhe permite distribuir favores e privilégios e seduzir os incautos para que vivam à sua volta para satisfazê-lo a todo instante e a qualquer custo. A pergunta que cabe fazer é: quem lhe dá esse corpo político gigantesco, sedutor e malévolo? A resposta é imediata: somos nós, "povos insensatos", quem lhe damos nossos olhos e ouvidos, nossas mãos e nossos pés, nossas bocas, nossos bens e nossos filhos, nossas almas, nossa honra, nosso sangue e nossas vidas para alimentá-lo e aumentar-lhe o poder com que nos destrói.
Mas se assim é, e se, por infortúnio, um tirano galgou o poder e, por costume, ali se mantém, como derrubá-lo e reconquistar a liberdade? Responde La Boétie: não é preciso lutar contra ele, basta não lhe dar o que nos pede: se não lhe dermos nossos corpos e nossas almas, ele cairá. Basta não querer servi-lo, e o Estado tombará.
Mas, se é tão clara a resposta, maior então o enigma da servidão voluntária, pois se é coisa fácil derrubar a tirania é preciso indagar por que servimos voluntariamente ao que nos destrói. A resposta de La Boétie é terrível: consentimos em servir porque não desejamos a liberdade. Consentimos em servir porque esperamos ser servidos. Servimos ao tirano porque somos tiranetes: cada um serve ao poder separado porque deseja ser servido pelos demais que lhe estão abaixo; cada um dá os bens e a vida ao poder porque deseja apossar-se dos bens e das vidas dos que lhe estão abaixo. A servidão é voluntária porque há desejo de servir, há desejo de servir porque há desejo de poder e há desejo de poder porque a tirania habita cada um de nós e institui uma sociedade tirânica. Haver tirano significa que há sociedade tirânica. É ela, e somente ela, que dá poder ao tirano e o conserva ali onde o colocou para malfazer. É a divisão social que institui o Estado como poder separado. Eis o infortúnio.

Para comprovar que o desejo de liberdade é natural e que, para os homens, agir conforme a sua natureza é agir por liberdade, La Boétie confronta os muitos" (os povos insensatos e as nações cegas) que servem a "um só" e os "alguns" que não cessaram de desejar a liberdade porque não desejam servir. Esses "alguns" são, em primeiro lugar, os que são "capazes de enxergar mais longe" e de "olhar para trás e para frente": são os prudentes, aqueles que sabem que uma vez perdida a liberdade, "todos os males se seguem de enfiada". Porque prudentes, esses "alguns" não se deixam dominar pela fortuna, pelas condições adversas do presente, mas procuram ler o curso do tempo e agir para determinar o indeterminado, pois sabem que a ação presente se tornará um passado necessário que desencadeará efeitos necessários para o porvir.
Se os prudentes são os que não se deixam seduzir pela fortuna, por benefícios presentes que se tornarão malefícios vindouros, os amigos são aqueles que não se deixam iludir pelo risco maior, aquele risco que é o infortúnio originário porque é aquela ação voluntária e livre na qual será plantado o germe do poder separado ou a tirania. Que risco é esse?
A amizade, escreve La Boétie, é coisa santa, nome sagrado. Só existe onde há igualdade, liberdade e justiça, cultivada entre os que se unem pelo bom natural e para o bem fazer recíproco. Nela não há lugar para a cumplicidade e o malefício. Vence a fortuna porque não se ilude com falsos bens, pois cada amigo é para o outro o bem verdadeiro. Mas, se é isso a amizade, então o risco maior é que, por amizade, os amigos elevem um dos seus e o coloquem acima dos demais. Se o fizerem, instituem a desigualdade, lançam um dos seus para fora e para além dos limites da amizade, o separam da boa companhia, o isolam e o servem, imaginando assim compensá-lo do isolamento e do desamor que lhe trazem sua nova condição. Ora, que esse risco é real, basta para comprová-lo que nos lembremos que o nome grego tyrannós não significa aquele que exerce um poder pelo uso da força, e sim aquele que é mais excelente do que os outros em tudo o que faz. É tyrannós o melhor, o mais valente, o mais sábio, o mais clarividente, o mais hábil. É justamente por suas qualidades excepcionais que os amigos o elevam acima deles e o isolam, e, da admiração, passam à servidão.
Ao retomar as duas virtudes com que a tradição imaginara vencer a fortuna, a adversidade e o infortúnio, La Boétie produz um efeito de conhecimento espantoso: a origem da servidão voluntária encontra-se em três causas que deveriam torná-la impossível, isto é, a vontade livre, a prudência e a amizade. A vontade livre, se os humanos escolherem ter um senhor. A prudência, se ao deliberar calculando entre dois males, escolherem o mal menor em vez de mal nenhum. A amizade, se os amigos elevarem o melhor dentre os seus, separando-o do círculo do iguais porque é tyrannós. Dessa maneira, são exatamente as condições da virtude, da liberdade e da felicidade que podem ser a causa da servidão voluntária: é isto que La Boétie chama de infortúnio.
Para lançar uma luz sobre esse infortúnio, o Discurso introduz a "gente toda nova". Todavia, depois da alusão à gente nova, curiosamente La Boétie alude a uma outra gente, "a gente de Israel" cuja história provoca indignação no autor, pois "sem nenhuma coerção e nenhuma precisão deu a si mesma um tirano", isto é, Moisés. O texto é claro: se foi sem coerção nem precisão e se os humanos só servem se forçados ou iludidos, é evidente que os hebreus foram iludidos pelo fundador e que sua situação é exatamente a mesma que a dos gregos, mencionados na abertura do Discurso, quando, segundo Homero, aceitam a palavra de Ulisses: "em ter vários senhores nenhum bem sei/ que um seja o senhor, que um só seja o rei". Tanto no caso dos hebreus quanto no dos gregos, esses povos e nações não cessaram de sofrer "os males que seguem de enfiada".
Por que o contraponto entre o povo hebraico e o povo grego, de um lado, e a gente toda nova, de outro? La Boétie dirige o olhar ao momento da origem do poder separado, figurado pelos gregos e pelos hebreus, em contraposição à gente nova que impede essa instituição. Situando-se entre duas temporalidades, o Discurso não se situa entre dois tempos empíricos, e sim numa diferença ontológica: o tempo depois da liberdade e o tempo da liberdade.
No entanto, porque se situa na temporalidade, o Discurso sabe que se situa no contingente, no possível e no risco permanente do mau encontro ou do infortúnio. Eis por que a "gente toda nova" surge em sua argumentação para exprimir algo aparentemente contraditório: de um lado, figurar a humanidade enquanto tal, a universalidade originária do gênero humano, e, de outro, levar ao reconhecimento de que essa universalidade ou a humanidade, enquanto racional e livre, desapareceu. Sob essa perspectiva, os selvagens do Novo Mundo são os que não querem a servidão voluntária, recusam a separação entre a comunidade e o poder e por isso figuram a universalidade humana e a memória (ontológica) da origem perdida. Não são o Outro: são o humano nos homens.


Marilena Chaui é professora de filosofia da Universidade de São Paulo.
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