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Thomaz Kawauche - 119 - Abril de 2021
Histórias da razão
Edição retoma os clássicos de Rousseau
Foto da capa do livro Rousseau Escritos sobre a política e as artes
Rousseau Escritos sobre a política e as artes
Autor: Jean-Jacques Rousseau
Organização: Pedro Paulo Pimenta
Editora: UBU e UnB - 656 páginas
Foto do(a) autor(a) Thomaz Kawauche

Faltava no Brasil um volume como esse da Ubu reunindo os principais escritos do genebrino Jean-Jacques Rousseau (1712-78) e atualizando as coletâneas anteriores da Globo (Obras) e da Abril (“Os Pensadores”). Quem percorrer o arco de pensamento que vai do Discurso sobre as ciências e as artes (1750) ao Contrato social (1762) terá uma boa noção da crítica mais sagaz e sutil já feita à ideia de natureza humana. Algumas fórmulas paradoxais do autor são bem conhecidas, como essa do Discurso sobre a origem da desigualdade (1755): “Os homens são maus; uma triste e contínua experiência dispensa provas. Entretanto, o homem é naturalmente bom, creio tê-lo demonstrado” (p. 255). Mas a leitura vale a pena não só por reflexões desconcertantes desse tipo. De modo geral, o grande mérito das 656 páginas de Rousseau - escritos sobre a política e as artes é o fato de terem sido elaboradas por especialistas em filosofia do século 18; o esmero no estilo de tradução e nas notas não passa despercebido. A biblioteca rousseauniana brasileira se enriquece com esse trabalho editorial, pois, não bastando a boa antologia organizada por Pedro Paulo Pimenta, alia-se ainda aos textos o ensaio de Franklin de Mattos, “Outra versão das Luzes”, que a uma só vez esclarece e embeleza o conteúdo do livro, além de delinear a unidade dos escritos através de um fio condutor: a relação entre controvérsia e retórica.

Rousseau disserta sobre vários assuntos, mas sempre apoiado na mesma tese, a saber, que tudo que é produzido nas relações sociais, de sentimentos a instituições civis, é como um pharmakon (a droga-veneno dos gregos) cujos efeitos podem ser salutares ou nocivos de acordo com o estado de saúde da sociedade e com as circunstâncias em que a administração se realiza. Referência obrigatória nessa chave de leitura é o ensaio “O remédio no mal - o pensamento de Rousseau” de Jean Starobinski (1920-2019). O tema da cura da doença pelo princípio da própria doença, segundo Starobinski, perpassa os escritos de Rousseau de modo sistemático (ver em As máscaras da civilização, Companhia das Letras, 2001). Ora, sabemos que tanto a retórica quanto a controvérsia podem ser deletérios numa sociedade como a da França no Antigo Regime - ou, quiçá, a do Brasil na era das fake news - onde as aparências importam mais do que a verdade e a virtude. Rousseau, autodenominado “homem de paradoxos” (pois, entre outras esquisitices, critica os livros sendo ele mesmo um escritor), propõe um uso medicinal desses venenos; no Prefácio à peça Narciso, por exemplo, alimenta o debate em torno do discurso de 1750 ao se referir às ciências e às artes como antídotos extraídos das próprias patologias sociais delas decorrentes: “embora essas coisas tenham feito muito mal à sociedade, é essencial hoje servir-se delas, como de um remédio para o mal que causaram” (aliás, pergunto aos editores por que esse texto, produzido entre 1752 e 53, não entrou na coletânea?).

A própria faculdade racional do ser humano pode ser vista como uma perigosa instituição civil digna de um rótulo farmacológico do tipo “tarja preta”: lembremos que, para Rousseau, a razão é um dispositivo constituído e aperfeiçoado pela arte humana no devir da história e, portanto, longe de ser um bem em si, seu uso pode resultar em efeitos colaterais dependendo das conjunturas. A ponta de lança do Discurso sobre a desigualdade está exatamente em demonstrar as condições que fazem o progresso da razão engendrar a derrocada moral. Assim, se, por um lado, filósofos como Voltaire e Montesquieu apostam todas as fichas na razão por julgarem-na um dado confiável da natureza, por outro lado, Jean-Jacques desconfia dela e prefere um modelo clínico semelhante ao da história natural das doenças, no qual as paixões devem regular o bom avanço da racionalidade dos homens, e não o inverso.

Nosso autor realmente caminha na contramão do Século das Luzes, pois, para horror dos philosophes, não exclui de sua “ciência do homem” nem mesmo as paixões religiosas, que, como bem sabemos, eram repudiadas por incitarem fanatismo e intolerância. Rousseau decepciona em particular os ateus ao pregar, no Contrato social, uma “religião civil”, também chamada de “profissão de fé puramente civil”, espécie de código moral do cidadão cujos dogmas na prática são “sentimentos de sociabilidade” (p. 647). No entanto, polêmicas à parte quanto à questão religiosa, tal postura anti-iluminista não precisa ser vista como uma apologia ao obscurantismo ou à barbárie, e menos ainda como uma concessão à teologia política. O autointitulado “Cidadão de Genebra” não deixa de criticar o fanatismo e a intolerância dos cristãos e, no próprio capítulo da “religião civil”, faz afirmações que escandalizam os teólogos (Nietzsche nada teria a objetar aqui): “O Cristianismo prega apenas servidão e dependência. Seu espírito é demasiado favorável à tirania para que ela não se aproveite dele. Os verdadeiros cristãos são feitos para ser escravos; estão cientes disso e não se importam” (p. 646). A religião civil é, de modo similar aos espetáculos e às belles-lettres, um contraveneno. (Se houvesse espaço nesta resenha, eu explicaria que o recurso político aos sentimentos religiosos se justifica porque, para Rousseau, moral e política são inseparáveis e, portanto, é impossível estabelecer instituições justas que ignoram a dimensão passional do corpo político.)

O objetivo de Rousseau é, isto sim, tornar compreensível o que há de bom na natureza humana a despeito dos vícios engendrados pelo mau uso da razão e pelas desordens da vida em sociedade. Se critica as ciências, o teatro e a religião cristã, é porque tem em vista os efeitos nocivos dessas obras produzidas pela razão humana, e não a razão em si mesma. Como alega nas respostas às objeções de seu primeiro Discurso (pp. 67-142), não se trata de queimar as bibliotecas nem de destruir os colégios, pois, a bem da verdade, Rousseau ama as ciências de sua época, tendo até mesmo escrito sobre química e botânica; ama também as artes, sobretudo a música e a literatura romanesca. No coração da polêmica, encontramos a crítica à educação tradicional na imagem das instituições de ensino que formam fidalgos, mas não verdadeiros cidadãos: “Por toda parte vejo estabelecimentos imensos, onde a juventude é educada a altas expensas, aprendendo todas as coisas, exceto seus deveres. Vossos filhos ignorarão a própria língua, mas falarão outras que não são utilizadas em nenhuma parte; saberão compor versos que quase não compreenderão; [...] Mas não saberão o significado das palavras como magnanimidade, temperança, humanidade e coragem” (p. 58). Esse trecho, vale notar, é um dos momentos altos do Discurso sobre as ciências e as artes e, não por acaso, será retomado em 1762 no Emílio (há três traduções no Brasil, sendo a mais antiga a de Sergio Milliet pela Difel).

Podemos entender que, ao menos na coletânea publicada pela Ubu, a questão lançada por Rousseau é sempre a mesma: como pode a razão entrar na constituição da ordem civil causando o menor dano possível? A sequência dos itens do sumário mostra as perspectivas a partir das quais o estatuto da razão é passado em revista: 1) a crítica às ciências e às artes, 2) a história conjectural da desigualdade, 3) a investigação sobre a origem das línguas e da música, 4) a discussão acerca dos efeitos morais e políticos do teatro em Genebra, e por fim, 5) a dedução dos princípios de uma ciência da legislação na forma de uma teoria geral do Estado.

Longe de ser aleatória, tal seleção de textos busca evidenciar a fina urdidura entre a trama literária e a argumentação filosófica. Um belo exemplo dessa tecelagem verifica-se no romance epistolar Júlia, ou A nova Heloísa (1761), reconhecido como best seller absoluto do século 18 (ver a tradução de Fúlvia Moretto, Hucitec/Unicamp, 1994). O desafio dos tradutores se encontra, portanto, no problema da expressão: de que maneira transpor para nossa língua os sentimentos rousseaunianos que comunicam lucidez racional, sobretudo do ponto de vista da política, no melhor estilo das belas-letras? Veja-se por exemplo, no último capítulo do Ensaio sobre a origem das línguas, o caso da expressão “bourdonnement des divans”: na edição de “Os Pensadores” ela é traduzida como “sussurros dos sofás”, parecendo bem menos elucidativa do que “conchavos palacianos” (p. 352 na versão da Ubu) ao considerarmos a alusão aos costumes estabelecidos pela sociedade cortesã de língua francesa. Por outro lado, há alegorias que só podem ser mantidas evitando-se o recurso à sinonímia; é o caso de “concert”, metáfora da orquestra musical utilizada por Rousseau para se referir ao vínculo harmonioso entre partes independentes. Há ocorrências na Carta a d’Alembert (“um concerto bem ajustado entre o espírito da cena e o das leis”) e no Contrato social (“fazendo-os agir de concerto” ou “a força e a vontade não agem mais de concerto”); aqui e ali, trocar “concerto” por “acordo” ou “conjunto” - a tradução da Ubu é respeitosa nesse ponto, mas as edições existentes cometem tal descuido - seria uma inobservância da imagem comunicada no texto. Desvio menos perdoável encontra-se no Prefácio do Discurso sobre a desigualdade, onde “corps politique” é traduzido como “estrutura política” (p. 166), o que obnubila a importantíssima metáfora do organismo social de modo arbitrário - as tradutoras (não especialistas no autor em contraste com os demais tradutores, vale notar) parecem ter prestado mais atenção nos aspectos formais do texto; felizmente, nas demais ocorrências utiliza-se “corpo”.

Em suma, a transposição do discurso de Rousseau para outros registros não é mera questão de beleza literária, o que por outro lado não significa que as traduções literais ou aquelas filologicamente coerentes sejam sempre as melhores saídas. Antes de tudo, é necessário captar e reconstituir as imagens colocadas pelo autor, muitas delas ligadas às suas idiossincrasias, tentando fazê-las corresponder aos respectivos conceitos (no Ensaio, o dedo providencial que inclina o eixo da terra, por exemplo, alegoriza as condições materiais da sociabilidade humana). Mas isso não basta; é necessário notar ainda que, em Rousseau, a própria racionalidade do texto opera segundo um modelo retórico de uso da linguagem - assim como o legislador do Contrato, o escritor genebrino busca “persuadir sem convencer” (p. 547); no esquema antropológico do amor-próprio descrito no Discurso sobre a desigualdade, a razão se representa à maneira das paixões na forma de “interesse” (veja-se aí um protótipo do homo œconomicus das teorias de escolha racional do século 20), o que de modo algum pode ser confundido com irracionalismo, a menos que o modelo econômico de sociedade civil ali emergente seja chamado de irracional. Parafraseando Franklin de Mattos, permito-me observar que, em Rousseau, o racional é concebido em “outra versão”.

Como bem demonstrou Bento Prado Jr. (1937-2007), retórica e reflexão filosófica são inseparáveis na prosa de Rousseau (ver A retórica de Rousseau e outros ensaios, Unesp, 2018); a obra do genebrino celebra, nesse sentido, o casamento bem arranjado entre literatura e filosofia. De fato, quem não se encanta com a forma poética do método dedutivo para descrever o nascimento da vaidade a partir das primeiras comparações no hipotético estado de natureza? “Habituaram-se a reunir-se em frente às cabanas ou sob uma grande árvore; o canto e a dança, verdadeiros filhos do amor e do lazer, tornaram-se o entretenimento ou, antes, a ocupação dos homens e das mulheres desocupados e reunidos. Cada qual começou a olhar os outros e também a querer ser olhado, e a estima pública teve um preço. Aquele que cantava ou dançava melhor, o mais belo, o mais forte, o mais hábil ou o mais eloquente, tornou-se o mais considerado; e assim foi dado, a um só tempo, o primeiro passo para a desigualdade e para o vício” (p. 213). Eis uma amostra da bela - e nem por isso pouco rigorosa - “ciência do homem” de nosso autor. Não causa espanto que Pedro Pimenta chame de “romances filosóficos” (p. 7) tanto o tratado de educação Emílio quanto o romance epistolar A nova Heloísa, obras em que o próprio ato de refletir é condicionado pelo estilo retórico através de narrativas nas quais, por vezes disfarçadamente, a personagem principal é sempre a razão.

Textos que compõem o volume:

Discurso sobre as ciências e as artes (tradução de Maria das Graças de Souza); Respostas de Jean-Jacques Rousseau às objeções contra o seu Discurso sobre as ciências e as artes (tradução de Fabio Stieltjes Yasoshima e Maria das Graças de Souza); Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (tradução de Iracema Gomes Soares e Maria Cristina Roveri Nagle, notas de Jean-François Braunstein); Ensaio sobre a origem das línguas (tradução de Pedro Paulo Pimenta); Carta a D'Alembert sobre os espetáculos teatrais (tradução de Fabio Stieltjes Yasoshima); Do contrato social ou Princípios do direito político (tradução de Ciro Lourenço Borges Jr. e Thiago Vargas).

Thomaz Kawauche é doutor em filosofia pela USP e professor visitante na Unifesp, além de autor do livro Religião e política em Rousseau: o conceito de religião civil (Humanitas/FAPESP, 2013).


"Este texto foi publicado na Revista Princípios (vol. 27, n. 54, p. 227-233, 2020) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte".



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