Genealogia do racismo
BERNARDO ESTEVES
Geneticista sustenta que “cada homem é uma raça”
Humanidade sem raças?
Sergio Danilo Pena
PUBLIFOLHA
72 p., R$ 12,90
O geneticista Sergio Danilo Pena, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, tem se destacado por promover na esfera pública uma campanha de combate ao uso do conceito de raças humanas. Como essa noção não tem qualquer fundamento biológico, defende ele, é preciso que a sociedade supere a divisão da humanidade em raças e adote um novo paradigma para pensar a diversidade humana.
Sergio Pena tem sustentado esse ponto de vista de forma recorrente em conferências proferidas em todo o país, em artigos publicados na imprensa e nas colunas que assina mensalmente na Ciência Hoje On-line. Por fim, sistematizou seus argumentos neste livro.
Para levar a cabo seu objetivo – a busca de uma sociedade desracializada e que valorize a singularidade de cada indivíduo –, o autor se dedica primeiramente a mostrar que o conceito de raças humanas, por mais enraizado que pareça na mente de muitos, é uma construção histórica relativamente recente.
Pena atribui ao naturalista sueco Carl Linnaeus a primeira divisão taxonômica da espécie humana registrada na literatura científica, no final do século 18. Mas o racismo não foi inaugurado por essa classificação – na verdade, ela cristalizou um preconceito latente na sociedade, tendo servido para legitimar a escravidão e outras injustiças históricas.
A genealogia do racismo traçada pelo autor mostra que, desde sua formulação original, o conceito de raças passou por diferentes roupagens.
Racismo científico
O modelo de Linnaeus, que dividia a humanidade em quatro grandes tipos, foi sucedido pelo “racismo científico” preponderante no século 19, fundamentado em grande parte em uma nova classificação proposta pelo antropólogo alemão Johann Friedrich Blumenbach.
Na segunda metade do século 20, ganhou força o conceito de populações para explicar a variabilidade da espécie humana. No entanto, essa proposta não resolvia o problema original e perpetuava o conceito de raças – tratava-se, no fundo, de um “modelo populacional de raças”, conforme a formulação de Sergio Pena.
Ao revelar que a noção de raças não é senão uma invenção conceitual, o autor mostra como é urgente “desinventá-la”, para retomar o neologismo de Chico Buarque. Para tanto, ele recorre a achados recentes da biologia que mostram que nada no genoma humano justifica a divisão da nossa espécie em raças. Ele cita, por exemplo, um estudo do geneticista norte-americano Bruce Lewontin, que mostrou que há mais variabilidade genética entre os indivíduos de uma mesma população do que entre diferentes populações. Se a humanidade fosse praticamente extinta e fosse poupado apenas um pequeno grupo, a maior parte do patrimônio genético humano estaria preservada no genoma desses indivíduos.
Diante desses sucessivos golpes da biologia contra o conceito de raças, o geneticista afirma que a única divisão cabível da humanidade é em 6 bilhões de indivíduos – “cada homem é uma raça”, para retomar o título de uma obra do escritor moçambicano Mia Couto citada por Pena. Esse é o princípio norteador do paradigma que propõe para superar a noção de raças, que denomina como “modelo genômico/individual”.
Pena é um pesquisador plenamente gabaritado para levantar essa bandeira – seu grupo de pesquisa tem se destacado por importantes trabalhos sobre diversidade genômica e sobre o perfil genético da população brasileira. A essa bagagem teórica, acrescente-se sua facilidade em transitar em diferentes áreas do saber. Ao longo do livro, Pena não se refugia nas ciências biológicas e busca referências na história, na filosofia, na antropologia e em outras áreas, com uma versatilidade cada vez mais escassa numa era de especialização científica.
Pena tem ainda o dom de uma prosa fluida, eloquente e saborosa. Seu texto é tão elegante quanto sucinto e pode ser lido de uma só vez. Sua relevância, no entanto, é inversamente proporcional ao tamanho: o livro reúne argumentos essenciais para a discussão da questão racial no Brasil de hoje.