Fragilidades e aflições de Machado
HÉLIO DE SEIXAS GUIMARÃES
Cartas do escritor na juventude e na velhice
Correspondência de Machado de Assis
Tomo I – 1860 -1869
Organização: Irene Moutinho e Sílvia Eleutério
Academia Brasileira de Letras e Biblioteca Nacional
362 p.,
Empréstimo de ouro
Cartas de Machado de Assis a Mário de Alencar
Organização: Eduardo Coutinho e Teresa Cristina Meireles de Oliveira
Ouro sobre azul
128 p., R$ 69,00
Dois livros recentes trazem cartas em que testemunhamos as fragilidades e aflições de Machado de Assis na juventude e na velhice. Aos 20 e poucos anos, Machado sofria com a falta de emprego estável e de dinheiro. Na casa dos 60, com a perda da mulher, a doença e a perspectiva da morte. Nas duas pontas da vida, a maior motivação e algum consolo parecem estar na literatura, essa coisa estranha que resulta na e da conjunção das palavras com o papel.
A Correspondência de Machado de Assis é apenas o primeiro volume de um projeto, coordenado por Sergio Paulo Rouanet, que promete publicar pela primeira vez, ainda em 2009, toda a correspondência ativa e passiva do escritor, em ordem cronológica. Pelo visto até aqui, já se pode dizer que é um trabalho fundamental, pelo rigor no trato da documentação, profusão das notas explicativas e cuidado no estabelecimento do texto.
Ao todo, são 90 cartas, das quais 23 foram escritas por Machado. As restantes ele recebeu de vários autores, como Quintino Bocaiúva, o futuro cunhado Faustino Xavier de Novais, Joaquim Serra, Luís Guimarães Júnior e Sizenando Nabuco. Deste último, há duas que mencionam paixões, ciúmes, amores, beijos... e uma incerta Maria Lúcia. São cartas entre moços, nas quais o irmão de Joaquim Nabuco se sai até com um irreverente “Ora porra!”.
Não é essa, no entanto, a nota dominante. O que temos é um jovem escritor que se desdobra em colaborações para vários jornais e revistas, mexe os pauzinhos por um emprego no funcionalismo público, gosta de cartear com figurões, aflige-se com a falta de dinheiro e finalmente vislumbra a estabilidade afetiva no casamento com Carolina.
Arte e literatura
Em meio às tribulações do começo de vida, também há considerações sobre arte e literatura. Em carta a José de Alencar - a mais longa e reverente das que escreveu na década de 1860 - afirma que, na construção de personagens, considerava mais importante a personalidade humana do que o cidadão. A José Feliciano de Castilho, revela mais convicções: “Se a arte fosse a reprodução exata das coisas, dos homens e dos fatos, eu preferia ler Suetônio em casa, a ir ver em cena Corneille e Shakespeare”.
Lidas no conjunto, as entrelinhas dessas cartas da juventude falam muito sobre a arte machadiana. O contraste entre a tagarelice generalizada e a contenção de Machado mostra como o escritor já então destoava do ambiente, fugindo dos arabescos e circunlóquios que sobrecarregam a correspondência passiva. Alguns desses missivistas certamente serviram de inspiração para a galeria machadiana de literatos falastrões, estudantes mal curados de romantismo e oradores de sobremesa.
Muito menos contido é o autor nos manuscritos reunidos em Empréstimo de ouro. Nesse belo livro, os fac-símiles de 22 cartas de Machado estão acompanhados de transcrições, notas e reproduções de imagens do escritor, de seus contemporâneos e do Rio de Janeiro no começo do século 20. Os originais das cartas, que pertenceram a Afrânio Coutinho, constituem fração importante de um movimento epistolar mais intenso, que se desenvolveu entre janeiro de 1898 e agosto de 1908, e do qual Machado de Assis participou com pelo menos outras 11 cartas.
Antonio Candido, em nota inicial, dá a justa medida do interesse desses escritos – registros às vezes comoventes da vida afetiva de um homem “mutilado pela viuvez, solitário e alquebrado”. De fato, Machado mais de uma vez parece lamentar-se por não ter tido filhos, ao comparar-se ao amigo mais jovem e dizer que este tem consolos que ele não tem: “Também eu tenho desses estados de alma, e cá os venço como posso, sem animações de esposa, nem risos de filhos”.
Nos últimos anos de vida, marcados por abatimentos, crises nervosas e achaques da velhice, a “calcarea carbônica”, a maravilha curativa e o tribrometo tornam-se personagens recorrentes nos textos do escritor, que a certa altura refere-se a si mesmo como “um pobre diabo cansado, que mal dá de si alguma cousa pouca, desalinhada e torta”.
Nessas cartas, temos a rara oportunidade de entrever um pouco da intimidade de um escritor no mais das vezes tão discreto e reservado. Talvez por isso as confidências e semiconfidências trocadas com Mário de Alencar tenham sido tão valorizadas, dando margem a muita especulação de biógrafos e críticos.
Vem daí, por exemplo, a infundada e descabida hipótese de que Mário seria na verdade filho de Machado, assim como a afirmação no mínimo discutível de que o Memorial de Aires é obra essencialmente autobiográfica. Tais idéias teriam como lastro a correspondência e, principalmente, as “Páginas de Saudades”, que Mário de Alencar escreveu logo depois da morte do amigo mais velho e nas quais divulga informações que Machado lhe teria segredado.
O que parece certo pela leitura das cartas é que Machado encontrou no jovem amigo ecos da reverência e da admiração que ele mesmo, na juventude, demonstrara pelo pai de Mário, José de Alencar, atando nas epístolas finais as duas pontas da vida. Já doente e a poucos meses da morte, em meio a leituras do Prometeu, de Ésquilo, do Fédon, de Platão, e de um livro de Schopenhauer, Machado reafirma para Mário de Alencar uma convicção que parece ter trazido desde a juventude: “A arte é remédio e o melhor deles.”