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Pedro Paulo Pimenta - 118 - Fevereiro de 2020
Filosofia e história da filosofia
A interpretação original respaldada em leitura rigorosa
Foto da capa do livro Espinosa e o problema da expressão
Espinosa e o problema da expressão
Autor: Gilles Deleuze
Tradução: Luiz Orlandi
Editora: Editora 34 - 429 páginas
Foto do(a) autor(a) Pedro Paulo Pimenta

Na trajetória do filósofo francês Gilles Deleuze, a história da filosofia é inseparável da filosofia propriamente dita. Não somente porque ele sempre se dedicou com visível deleite ao (árduo) ofício de historiador, mas porque sua historiografia é filosófica de uma ponta a outra, desde

Empirismo e subjetividade (1953), sobre Hume, até A dobra: Leibniz e o barroco (1988). Para Deleuze, conhecer os clássicos e comentá-los implica um posicionamento da parte do comentador, um gesto pelo qual ele enviesa sua leitura e recupera o filósofo estudado para o tempo presente, tornando-o atual sem que para tanto seja necessário adaptá-lo forçadamente a nossas preocupações. 

Manobra ousada, que embute riscos consideráveis, como o anacronismo, a distorção e tantos outros, em que seus contemporâneos muitas vezes incorreram. Em Deleuze não: a interpretação original é respaldada em leitura rigorosa, e as descobertas com que atina são sustentadas pelo espírito como pela letra dos textos. Estes, ao serem abordados como engrenagens ou partes de um sistema, abrem-se para o conflito ou o diálogo com outros autores, desenhando um horizonte em que a história da filosofia é formada pela sincronia entre autores que são tratados como rigorosamente contemporâneos entre si, e, por extensão, nossos contemporâneos.

Às vezes, a ligação entre esse gênero de comentário e a produção que Deleuze reclama para si como original é explícita. É o caso, notadamente, de Espinosa e o problema da expressão, ora publicado em português, em excelente tradução coordenada por Luiz Orlandi. O livro surgiu em 1968, como pendant da “tese de habilitação” de Deleuze, Diferença e repetição (reeditado recentemente pela editora Paz e Terra). O leitor brasileiro tem com isso a oportunidade de descobrir por conta própria os fios que ligam esses dois livros, um deles um clássico da filosofia do século XX, o outro um comentário de fôlego, que encontra na obra de Espinosa um bom exemplo de uma tendência geral que, para Deleuze, percorre o pensamento moderno e contemporâneo e que irá se opor decididamente ao hegelianismo – verdadeira bête noire do autor, que ele combate com uma obsessão que chega a ser divertida. 

Se não me engano, foi o estudo de Deleuze que recolocou Espinosa no mapa das preocupações filosóficas contemporâneas, dando a ele uma posição de destaque que se tornou cada vez mais proeminente, inclusive graças aos esforços dos estudiosos brasileiros de sua obra. É um deleite contrastar o comentário de Deleuze, vivo e ágil, relativamente curto, e muito claro, com as morosas páginas que Martial Guéroult dedicou ao filósofo holandês. Salta aos olhos a diferença entre o comentário rigoroso, erudito, exaustivo, e a interpretação, não menos rigorosa, porém necessariamente parcial, e, mais importante, original. Tornou-se um vício acadêmico bem brasileiro (não posso falar pelos hábitos de estrangeiros) confundir a explicação estrutural dos textos, praticada pela escola de Guéroult e Goldschmidt, com o seu fichamento, prática escolar que o aluno de filosofia supostamente teria adquirido já no ensino médio. O sisudo Espinosa de Guéroult, o arejado Espinosa de Deleuze estão aí para desmentir esse lamentável equívoco, e, quem sabe, elevar as exigências de nossos professores, em relação não somente a seus estudantes, mas, principalmente, em relação a si mesmos.

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Embora não seja tão óbvio, também os tomos dedicados por Deleuze a Hume, já mencionado, e a Kant (A filosofia crítica de Kant, 1963),  fazem parte de uma estratégia mais ampla, pela qual o filósofo se posiciona, sem muito alarde, mas com firmeza, em relação às principais correntes da filosofia francesa de sua época, com destaque para a fenomenologia (que ele rechaça) e ao bergsonismo (que ele intenta recuperar em outra chave). Quando digo isso, não se trata de nenhuma novidade. É um ponto para o qual chamou a atenção, anos atrás, Bento Prado Neto, neste mesmo Jornal de Resenhas (em sua primeira série, se não me engano), comentando Empirismo e subjetividade. O Hume de Deleuze é tão interessante que poucos comentadores de Hume se interessaram por eles, sorte talvez similar à do Kant de Lebrun. Pondo de lado os “debates” correntes nos papers acerca do filósofo escocês – já então, em 1953, celebrado como pai dos analíticos, dos utilitaristas, da filosofia da ciência e não se sabe mais o quê –, Deleuze explora Hume a partir de uma intuição básica que se revela acertada: o mundo do empirismo cético-naturalista é o domínio dos signos, de uma representação que se dobra sobre si mesma e não remete a nenhum substrato originário (seja a fisiologia de Locke, seja o vivido da fenomenologia). Desenha-se aí o quadro de uma filosofia preocupada quase que exclusivamente com a constituição do sentido, ou, como dirá Kant, da “condição de possibilidade” da representação, indagada não a partir da relação entre esta e um objeto, mas como um dispositivo digno de ser estudado em si mesmo. (Como Foucault de resto percebeu, poucos anos depois, em As palavras e as coisas).

Dito isso, eu gostaria de sugerir que Nietzsche e a filosofia (1962), também surgido agora em português (em ótima tradução de Mariana de Toledo Barbosa e Ovídio de Abreu Filho), forma um tríptico com os volumes dedicados a Hume e a Kant, ao mesmo tempo em que se abre para o que virá sobre Espinosa. É o que se vê nestas palavras: “Espinosa abriu um caminho novo para as ciências e para a filosofia. Nem mesmo sabemos o que pode um corpo, dizia ele: falamos da consciência e do espírito, tagarelamos sobre tudo isso, mas não sabemos do que um corpo é capaz, quais são as suas forças e o que elas preparam”. Desvendam-se assim perspectivas inéditas na modernidade: estimula-se o desenvolvimento, especialmente a partir da segunda metade do século XVII, da anatomia e da fisiologia, e renova-se a medicina. Essa renovação deu-se sob a égide da filosofia, e teve, por seu turno, um impacto profundo no próprio saber filosófico, ao abrir um campo de estudos negligenciado: os fenômenos da matéria, em especial os ligados à produção da vida.

Consequências importantes, ligadas a uma teoria filosófica, a de Espinosa, que, por seu turno, será assimilada à de outro filósofo, que não costuma ser associado a ele (ao contrário: por um bom tempo, a obra de Espinosa esteve ligada à filosofia da natureza de Schelling e ao idealismo de Hegel). Já nas primeiras páginas de Nietzsche e a filosofia, Deleuze afirma que, para compreender as ideias de genealogia e de interpretação, tão caras ao filósofo alemão, é preciso entender que “jamais encontraremos o sentido de alguma coisa (fenômeno humano, biológico ou mesmo físico) se não soubermos qual é a força que se apropria da coisa, que a explora, que dela se apodera ou nela se expressa”. Contrariamente ao que se poderia pensar, “um fenômeno não é uma aparência, nem mesmo uma aparição, mas um signo, um sintoma que encontra seu sentido numa força atual”. O que leva Deleuze a concluir que a filosofia de Nietzsche é “uma sintomatologia, uma semiologia”, herdeira de certo empirismo – aquela filosofia da experimentação que está no cerne da medicina imediatamente posterior a Espinosa –, para o qual o corpo é a superfície onde a doença se torna legível, mediante a reconstituição de uma trama que, análoga aos processos patológicos que transcorrem em seu interior, permite formular um diagnóstico e um prognóstico, ou, em suma, elaborar um discurso sobre a doença, a morte e a vida. (Lembramos mais uma vez de Foucault, agora em O nascimento da clínica –1962).

Portanto, a metafísica não é, para Nietzsche, uma ciência transcendente, que, como quer a tradição, versa sobre objetos que ultrapassam o domínio empírico, nem tampouco um saber transcendental em sentido estrito, como quis Kant, que viu nela um exame das condições de todo conhecimento. Bem diferente disso, a genealogia verá nela uma doença do corpo enfraquecido e privado de vigor, uma patologia que cabe ao filósofo remediar, mediante a prática habilidosa de uma arte determinada: a arte da interpretação, que identifica a vontade de poder que opera por trás das mais plácidas e rarefeitas noções, e que não esconde sua própria ambição de se afirmar sobre elas – mas, desta vez, como “arte empirista e pluralista”, que se opõe às tentativas de reiteração da unidade no âmbito da filosofia e das ciências, recorrentes na época moderna. (É um tópico que será devidamente explorado em Diferença e repetição).Mas então cabe perguntar: não seria esse o modelo do próprio trabalho de interpretação envolvido na prática da história da filosofia, tal como realizada por Deleuze? A leitura de seus livros mostra que, quanto a isso, ele é um empirista autêntico e radical, que lê os textos nas entrelinhas, vasculha seus interstícios, atina com sentidos recônditos, recompõe a sua forma, distorce os lugares-comuns, sem nunca perder de vista a compreensão exata dos argumentos, dos conceitos e teorias que eles expõem. A essa virtude vem se juntar um pluralismo estrito, que projeta uma filosofia no espaço de tensão com as outras, que a iluminam, por certo, mas também a questionam e a ameaçam. Como ensinam as leituras que Deleuze faz de seus diletos filósofos, sempre que tomamos as coisas por entidades e nos iludimos de que seriam permanentes, e não, como sói, o produto de forças em disputa, signos, portanto, de um embate dinâmico, tornamo-nos fracos – isto é, perdemos a capacidade de examinar os processos de sua gênese ou formação, e trocamos, rapidamente, a reflexão pelo dogmatismo. Doença sutil e corrosiva, que não se restringe à filosofia, e para a qual, se não me engano, ainda não foi encontrado um tratamento adequado.

PEDRO PAULO PIMENTA é professor do departamento de filosofia da USP

Nietzsche e a filosofia
Autor: Gilles Deleuze
Tradução: Mariana Toledo Barbosa e Ovídio Abreu Filho
Editora: N-1 Edições - 256 páginas
Pedro Paulo Pimenta é professor do departamento de filosofia da USP.
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