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Peter Burke - 4 - Julho de 1995
Enredos da história
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Enredos da história

 

PETER BURKE

Meta-História: A Imaginação Histórica do Século 19
Hayden White Tradução: José Laurênio de Melo Edusp, 464 págs. R$ 31,20

Hayden White é um professor da Universidade da Califórnia, que trabalha nas fronteiras entre história, literatura e filosofia, sendo, por este motivo, repudiado pelos profissionais das três disciplinas, numa época que se diz afeita à interdisciplinaridade. Mesmo assim, goza de reputação internacional ou, melhor dizendo, de dois tipos de reputação. Para muitos intelectuais, ele é um guru, um crítico cultural, um intérprete superior da pós-modernidade. Para outros, sobretudo historiadores, sua reputação lembra a dos ateus do século 17 ante os olhos do clero da época. Para certos historiadores, notadamente Gertrude Himmelfarb e Arnaldo Momigliano, já morto, White é o exemplo horrível de um colega (ou seria melhor dizer ex-colega?) que cometeu traição, quebrou um tabu e violou a fronteira sagrada entre história e ficção. Será que ele merece uma dessas reputações, de guru ou de renegado?
Para responder tal questão, é necessário retomar os estudos realizados por White no final dos anos 60 e início dos 70, época em que a maioria de nós ainda não se sabia pós-moderno; retomar a monografia Meta-História" (1973) e os trabalhos reunidos em Trópicos do Discurso" (1978). Este último volume contém 12 ensaios, alguns deles excelentes peças de uma história das idéias bastante tradicional, voltada para autores como Vico, Croce e Foucault, ou para temas como o bom selvagem e o absurdo. Devo, porém, aqui me concentrar na monografia e em mais três ensaios polêmicos, O Fardo da História", O Texto Histórico como Artefato Literário" e As Ficções da Representação Factual", que antecipam ou desenvolvem idéias de Meta-História". Foi no primeiro destes ensaios, publicado originalmente em 1966, que White acusou os historiadores de ainda estarem vivendo na metade do século 19, pois seguiam padrões de realismo literário abandonados pelos romancistas há mais de um século, e os desafiou a se valerem das novas perspectivas sobre o mundo oferecidas por uma ciência dinâmica e por uma arte igualmente dinâmica".
Em Meta-História", o objetivo do autor é oferecer o que denomina de análise formalista" dos textos históricos, concentrando-se em clássicos oitocentistas como Jules Michelet, Leopold von Ranke, Alexis de Tocqueville e Jacob Burckhardt -apesar de a introdução de Trópicos" dedicar cinco páginas à retórica de A Formação da Classe Operária Inglesa", de Edward Thompson.
No seu estudo, White faz quatro afirmações ou asserções principais. Afirma que cada um dos quatro grandes historiadores do século 19 moldou sua narrativa ou enredo com base naqueles de gênero literário consagrado. Assim, Michelet escreveu suas histórias na forma de romance (estória romanesca), Ranke na de comédia, Tocqueville na de tragédia e Burckhardt na de sátira. Afirma ainda que, em cada um desses historiadores, predomina um dos quatro principais tropos retóricos: metáfora em Michelet, metonímia em Ranke, sinédoque em Tocqueville e ironia em Burckhardt. Em terceiro lugar, White afirma que tais enredos e tropos encontram-se associados a quatro modos de explicação, os modos do formismo, do organicismo, do mecanicismo e do contextualismo". Por fim, relaciona cada um desses modos a quatro atitudes políticas: anarquismo, conservadorismo, radicalismo e liberalismo, respectivamente. Mais adiante, White faz uma interpretação da obra de quatro filósofos oitocentistas da história: Hegel, Marx, Nietzsche e Croce.
Meta-História" é um livro brilhante, no sentido literal de ofuscar o leitor e praticamente paralisar a capacidade crítica, pelo menos na primeira leitura. Talvez seja melhor lê-lo como um romance -da forma como Rousseau costumava ler tratados de filosofia. Pois White é mais intuitivo que empírico. Em vez de construir sua argumentação peça por peça, prefere começar pelas conclusões, que ele ilustra, de tempos em tempos, com exemplos concretos.
Meta-História" é também um livro extremamente original, apesar da natureza dessa originalidade ter sido com frequência mal interpretada. White não foi, com certeza, o primeiro estudioso a se interessar pelos aspectos literários da escrita da história. Mais ou menos na mesma época em que publicou seus primeiros ensaios, no final da década de 60, Jack Hexter, um historiador americano bastante tradicional, havia escrito um artigo sobre a retórica da história" para a Encyclopaedia of Social Sciences". Um pouco antes, Roland Barthes escrevera sobre as metáforas utilizadas por Michelet. No início do século, um estudioso inglês, Francis Cornford, publicara um livro chamado Thucydides Mythistoricus", que compara a narrativa da Guerra do Peloponeso à da tragédia grega. Na Antiguidade, o historiador grego Políbio desqualificara alguns de seus colegas chamando-os de trágicos". Os historiadores romanos também tinham consciência do que então se chamava de os cosméticos de Clio", os recursos literários da historiografia.
A abordagem que White adota para a retórica da história, vendo-a em termos de elaboração do enredo (emplotment"), é entretanto bem menos corrente e consiste no desenvolvimento das teorias de dois críticos literários norte-americanos, Kenneth Burke e Northrop Frye. A idéia dos quatro enredos básicos -romance, comédia, tragédia e sátira- é de Frye; original em White, é a ênfase no conteúdo da forma" ou, em outras palavras, a associação entre enredos e modos de explicação e de atitudes políticas.
Como deve o historiador reagir às afirmações de White? Minha reação, após um período inicial de deslumbramento, foi e é uma combinação de crítica e de admiração. Primeiramente, acredito que, tanto na monografia quanto nos ensaios aqui discutidos, White mostrou a validade de se examinar a retórica dos escritores de um gênero que os bibliotecários britânicos consideram não-ficção". Por se mostrar útil e até indispensável, sua expressão elaboração do enredo" (emplotment") entrou na língua inglesa. White é ainda autor de várias observações penetrantes -não apenas sobre os quatro historiadores que discute em detalhe, como também sobre a obra de Johann Gottfried Herder, por exemplo, ou de Wilhelm von Humboldt.
Para mim, o mais revelador dos capítulos é o dedicado a Ranke, o papa da escrita histórica científica" e objetiva", no qual White sugere que esse historiador conservador se sentia atraído pela idéia da história enquanto comédia, ou seja, uma história ao longo da qual se resolvem os conflitos e se restaura a harmonia social. Eu gostaria que todos os estudantes de história, independentemente de seus interesses ou especialidades, lessem e relessem esse capítulo com cuidado, de preferência com um livro de Ranke aberto sobre a escrivaninha. 

Trópicos do Discurso: Ensaios sobre a Crítica da Cultura
Hayden White Tradução: Alípio Correia de Franca Neto Edusp, 312 págs. R$ 27,00

Meu único pesar é que o autor não tenha desenvolvido sua principal descoberta e realizado uma análise textual mais cerrada, sobretudo de trabalhos como a História da Inglaterra" e a História da Prússia", mostrando assim mais precisamente como a narrativa consegue dar a impressão de comédia (manifestada sobretudo na escolha do historiador pelo momento de começar e terminar sua história).
Contudo, existem também fragilidades na estrutura de Meta-História". Por exemplo, a idéia de sátira" é bem mais vaga que a de comédia ou a de tragédia, e ainda não me convenci de que a sua descrição da Civilização do Renascimento na Itália", digamos, como sátira, acrescente algo à compreensão deste estudo célebre. Meta-História" é, sem dúvida, esquemático demais. Os quatro enredos, os quatro tropos, os quatro modos de explicação, as quatro atitudes (para não mencionar a escolha de quatro historiadores e de quatro filósofos) ajudam a dar a impressão de que os californianos vivem num mundo de tétrades pitagóricas. Num livro preocupado com enredos historiográficos, parece estranho omitir a epopéia, com a qual os críticos têm tão frequentemente comparado o trabalho do historiador. As histórias de Michelet, por exemplo, ou as de Thomas Carlyle (que escreveu sobre Oliver Cromwell, a ascensão da Prússia e a Revolução Francesa), têm certamente uma qualidade épica, assim como A Formação da Classe Operária Inglesa", de Thompson. White menciona a epopéia de tempos em tempos, mas brevemente: o problema é que não a pode admitir ao seu esquema sem estragar a simetria.
Novamente, parece um pouco arbitrário associar enredos específicos e mais ainda tropos específicos com figuras individuais de historiadores. Não vejo razão que impeça um determinado historiador de mudar de enredo conforme o assunto -epopéia para o surgimento de uma nação ou de uma classe social, tragédia para uma guerra civil ou para o declínio de um império e daí por diante. Na verdade, não vejo mesmo por que razão um único historiador não possa tentar representar e justapor num mesmo trabalho pontos de vista múltiplos, representando, por exemplo, a decadência do Império Britânico como tragédia para os britânicos, mas como epopéia para as novas nações que conseguiram se tornar independentes. Ali onde White vê o preto no branco, ou pelo menos representa seu universo histórico de modo claro e distinto, só consigo divisar contornos imprecisos e tonalidades esmaecidas. Na prática, resulta que o próprio White se vê compelido a esquecer ou a abandonar suas categorias de tempos em tempos e falar de comédia ou tragédia em Michelet, ironia em Tocqueville e daí por diante.
Há ainda outros problemas levantados pelo trabalho de White e nos quais não se empenha com seriedade. Por exemplo, os historiadores discutidos teriam ou não consciência da elaboração de seus enredos? Às vezes, White fala de arquétipos, como se os enredos constituíssem o inconsciente do historiador. Por outro lado, nota de passagem que as concepções de tragédia e comédia com que operam alguns dos historiadores em questão são bastante simples. Tal tópico certamente mereceria análise mais aprofundada.
Outra questão que White (como Frye) não discute adequadamente: categorias básicas como tragédia, comédia e outras são universais ou meramente ocidentais? Seria possível ou frutífero estudar, por exemplo, o trabalho do historiador árabe Ibn Khaldun ou do historiador chinês Ssu-ma-Ch'ien por meio de tais conceitos? É possível ou frutífero analisar o trabalho de historiadores recentes em termos whiteanos? Como já sugeri, epopéia" parece designação adequada para a elaboração do enredo de A Formação da Classe Operária...", de Thompson. Mas como entender O Mediterrâneo...", de Braudel? Não estou satisfeito com a tentativa de um dos discípulos de White em classificá-lo de sátira menipéia". E aqui surge a pergunta inevitável: em que consiste o próprio enredo de Meta-História"? Finalmente, a maior das perguntas: a questão da verdade. Seria a historiografia simplesmente uma forma de ficção ou trata-se de um gênero com regras próprias, inclusive as regras da evidência?
Já que os críticos de White o acusam de ignorar a distinção entre verdade e falsidade, vale lembrar as condições restritivas de suas teses, que, apesar de explícitas no texto, os mesmos críticos não conseguem ou não querem enxergar. White não nega que os historiadores se preocupem com dados e fontes, nem que as controvérsias entre historiadores, presentes nas páginas de revistas especializadas, redundem com frequência em questões referentes ao acontecimento. Ele apenas afirma que, além disso", historiadores levam em conta a retórica.
Dadas tais condições restritivas, o impacto causado por Meta-História", quando publicado pela primeira vez, pode parecer atualmente um tanto difícil de entender, sobretudo para leitores acostumados com as afirmações muito mais ousadas de um Jacques Derrida. Ao fim e ao cabo, a idéia de uma retórica da historiografia é, como se viu, antiga. Uma coisa é dizer que os historiadores usam ornamentos" retóricos ou cosméticos, outra, bem diferente, é afirmar, como White o fez, que a própria substância da escrita da história, da narrativa e da análise, é retórica. É ainda preciso reconhecer que o autor fala tão pouco acerca da questão da evidência, que a interpretação errônea de sua posição torna-se inevitável. Sua decisão foi, sem dúvida, deliberada, com vistas a provocar seus ex-colegas, e sua dupla reputação de guru e renegado é certamente um resultado dessa escolha. De qualquer modo, White perdeu uma grande oportunidade -a de analisar com maior profundidade e detalhe a relação entre conteúdo e forma, segundo as regras desse gênero literário particular que é a historiografia. Mesmo na perspectiva deliberadamente formalista que adotou, teria valido a pena discutir tal relação. A tarefa ainda está por fazer.
Vinte e dois anos após sua primeira edição, já é tempo de se tentar ir além de Meta-História". Por sua vez, tal empresa requer um maior número de historiadores, filósofos e críticos, que, fora do mundo de língua inglesa, discutam com seriedade os argumentos de White. A publicação de dois de seus livros em tradução portuguesa -mesmo que tardia- é portanto extremamente bem-vinda. Tanto mais que a tradução dos termos técnicos usados pelo autor foi feita com um cuidado escrupuloso e exemplar. 

Peter Burke é historiador e professor da Universidade de Oxford.
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