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Alberto da Costa e Silva - 87 - Julho de 2002
Enredos africanos
Foto do(a) autor(a) Alberto da Costa e Silva

Enredos africanos

O destino dos príncipes proscritos no Brasil

Reis Negros no Brasil Escravista - História da Festa de Coroação de Rei Congo
Marina de Mello e Souza
Ed. UFMG (Tel. 0/xx/31/3499-4650)
387 págs., R$ 35,00

ALBERTO DA COSTA E SILVA

Relembro três histórias conhecidas. Quando, em 1622, derrotaram o "cassanze", um rei vassalo do manicongo (ou rei do Congo), que dominava a região entre os baixos rios Bengo e Cuanza, e lhe destruíram a "ensaca" (ou cidadela), os portugueses de Luanda desterraram para o Brasil vários régulos e chefes que dele dependiam ou a ele se haviam aliado. Alguns vieram como escravos; outros como homens livres e foram alistados no Exército ou receberam tratos de terra para seu sustento; e outros ainda, embora tivessem embarcado livres, foram ilegalmente escravizados na chegada.
Por volta de 1750, para impedir que concorresse à sua sucessão, o "dadá" Tegbesu, rei do Daomé, vendeu como escravo o príncipe Fruku, juntamente com outros da linha de Agaja. Fruku viveu 24 anos na Bahia, até que seu amigo de infância, Kpengla, que assumira o poder, o mandou buscar. Com o nome de dom Jerônimo, Fruku regressou ao Daomé, onde exerceu importantes funções públicas e, morto Kpengla, concorreu ao trono. Perdeu-o para Agonglo e sumiu da história. Já o filho de Agonglo, Adondozan, ao tornar-se "dadá" em 1797, mandou pôr num navio negreiro quem tinha por adversária, a rainha Nan Agotimé, mãe do futuro rei Guezo.
A última dessas histórias é a única a dizer-nos que com Nan Agotimé embarcaram muitas de suas partidárias, mas é provável que o mesmo tenha acontecido com outros personagens que sofreram a escravidão como desterro político. Por malungos terão eles tido também outros compatriotas e pessoas provenientes de terras vizinhas, que os sabiam reis, rainhas ou príncipes proscritos.
Além disso, não era raro que, no Brasil, encontrassem conterrâneos na mesma cidade ou em fazendas vizinhas, que pronto os reconheceram, permitindo, assim, que fundassem santuários religiosos ou se fizessem reis de maracatus ou de congadas e, como tais, continuassem a rezar aos deuses e aos antepassados, a assegurar a coesão dos seus ou a congregar ao seu redor novas comunidades, com gente de distintas origens, como, de resto, tantas vezes ocorria na África, onde era frequente que, em torno de núcleos aristocráticos, se formassem com elementos díspares novas nações.
Na África onde começam, como deveriam começar quase todos os livros que tratam da escravidão negra, os vários enredos que Marina de Mello e Souza desamarra, neste seu rico e interessantíssimo "Reis Negros no Brasil Escravista -História da Festa de Coroação de Rei Congo". Na África, ou, mais precisamente, no reino do Congo. Do qual eram súditos quase todos os congos vendidos ao Brasil, e podiam ter sido vassalos os reis, régulos e chefes de hungus, lenjes, pendes, andongos, dembos, iacas e angicos que aqui vieram ter.

Crioulização cultural
Porque vai buscar o início de suas histórias na África, Marina pode nos mostrar como, antes que os reis das festas de negros, em Portugal e no Brasil, desfilassem de coroa européia sob os grandes guarda-sóis coloridos africanos, já o fazia o manicongo, no findar do século 15. Aquilo que tomamos por crioulização ou mulatização cultural já começara, portanto, na margem esquerda do Zaire, onde aos títulos africanos se colaram os europeus, com o manibamba a ser ao mesmo tempo o duque de Bamba, e, graças à cristianização das elites, a cruz se tornara o mais poderoso dos inquices. Das cerimônias de entronização do manicongo, constava uma luta simbólica entre dois partidos, o dele, o conquistador adventício, e o do "quitome", o senhor da terra. Ao atravessar o oceano, essa luta passou a ser entre cristãos e mouros ou entre o rei do Congo e a rainha Jinga, cuja imagem a escravaria não esqueceu no exílio.
Marina de Mello e Souza não nos apresenta todos os reis congos que se coroavam no Brasil como de linhagem real. Era normal que os africanos buscassem para líderes aqueles que julgavam herdeiros do dom da chefia e do diálogo com o invisível. É de crer-se, porém, que alguns desses reis preferissem, num meio hostil onde se encontravam à força, manter sua identidade em segredo para outros que não os mais próximos -e em segredo cumprir os ritos que dele se esperavam.
Os seus, sempre que possível, lhe compravam a liberdade e podiam fazer rei da festa quem ele determinasse, um rei da festa que era, portanto, um "chefe de palha". Na maioria dos lugares não havia, contudo, ninguém de estirpe real, e se escolhia para rei, em geral por um ano, quem mostrava qualidades de líder, ainda que nascido sem o sangue do mando.
Não faltava tampouco o rei que tomava o nome de congo porque tradicional na colônia, mas era grunce, gã, ovimbundo ou mahi.
Não se descarta no livro que alguns reis congos tenham sido "chefes de fumaça", reis de brincadeira, como, em geral, os considerava a sociedade branca -e continuaram a considerá-los muitos dos estudiosos das congadas e dos maracatus. Na maioria dos casos, eram todo o contrário. Se alguns senhores os levaram a sério e os usaram, e outros os tiveram como objeto de mofa, para os negros foram quase sempre reis verdadeiros, ainda que temporários. Os negros mais do que os respeitavam e os buscavam para aconselhar-se e para resolver disputas, como fariam na África, na África da saudade de cada um. Em torno deles, ajustava-se a resistência, que podia assumir as feições da acomodação. Ou esta suceder àquela, e vice-versa. Onde o amo via um instrumento de controle da escravaria, esta podia reconhecer a personificação dos valores que se recusava a perder.
A mesma situação -insiste Marina de Mello e Souza- pode ter sentidos diferentes, e até opostos, para o dominador e o dominado. E a mesma forma, funções diversas, para um e para o outro. Penso, por exemplo, que, se da perspectiva dos senhores, as compras de alforria pelos escravos significavam uma confirmação do direito de propriedade sobre seres humanos, ou seja, a aceitação desse direito pelos que se auto-adquiriam, para o escravo representava, mais que um desafio, uma ruptura com o sistema, ao devolver-lhe, no reconhecimento social, o homem que ele jamais deixara de ser e ao negar a equivalência entre negro e escravo.
Uma das melhores qualidades deste livro é, aliás, que nele não se acompanha o escravo com o olhar do senhor. Não é incomum, até mesmo em alguns dos autores mais indignados com o passado escravista brasileiro, que se veja o escravo como o queria o seu dono: desfibrado, sem vontade nem iniciativa, inteiramente domado como se fora um semovente, a só sair dessa condição pela fuga ou pela rebeldia armada. É tido quase como uma impiedade admirar-se o escravo que não se tornou quilombola. No entanto quanto mais o estudo, mais com ele me surpreendo e mais o admiro. E o que leio em "Reis Negros no Brasil Escravista" me fortalece na admiração.
Submetido à mais cruel das opressões, ele tirou proveito de cada pequenino espaço que lhe permitiram de liberdade. Sempre que pôde, torceu em seu favor as instituições criadas pelos senhores e para os senhores. E talvez as tenha usado para preservar as que trouxe consigo, escondidas, no navio negreiro. Assim, é possível que por trás de uma confraria católica se embuçasse uma sociedade secreta africana. Essa é uma das numerosas janelas -ou melhor das fendas e pequenos buracos nas paredes, que funcionam como janelas nas casas iorubanas- que Marina de Mello e Souza abre esbanjadoramente para dentro dos diversos compartimentos de seu tema principal. Olho por uma delas e vejo aquele "tambor" de Nazaré Paulista, que, excepcional percussionista, ocupou a posição por muitos anos.
Suspeito que fosse um daqueles mestres dos tambores, que só atingem o ápice de seu ofício após muitos anos de estudo e conhecem todas as sutilezas das polirritmias africanas. Devia ser raro que deles descesse no Brasil, pois, em muitas regiões da África, fazia parte de uma casta, não podendo, por isso, ser escravizado nem vendido. Naquelas onde não era castado, dificilmente um chefe que o capturasse, dele, por precioso, se desfaria.
Marina de Mello e Souza, neste livro bem fundamentado e bem escrito, acompanha a evolução das coroações e dos préstitos de reis congos até os nossos dias, quando deixaram de estar restritos aos negros e passaram a contar com crescente número de mestiços e brancos. Ela ficará feliz em saber que, na minha meninice, desfilavam, todos os anos, em datas diferentes, pela minha rua, em Fortaleza, um rei congo e um maracatu.
Neles não haveria mais de dois ou três negros -eram pouquíssimos os negros na cidade-, mas, no maracatu, que se apresentava com a mesma ordem dos cortejos reais da África Ocidental, todos os figurantes se pintavam de preto. Era como se, ainda que disso não tivessem consciência, eles quisessem que o desfile não deixasse de ser o que dantes fora: um cortejo de negros, no qual, sob o disfarce de festa, os escravos procuravam continuar a África, a sua África, embora fragmentada e imperfeita, no exílio no Brasil.


Alberto da Costa e Silva é presidente da Academia Brasileira de Letras e autor, entre outros livros, de "A Manilha e o Libambo - A África e a Escravidão, de 1500 a 1700" (ed. Nova Fronteira).

Alberto da Costa e Silva é diplomata, poeta, ensaísta, memorialista e historiador.
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