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Antonio Carlos Secchin - 42 - Setembro de 1998
Duas vezes Álvares
Foto da capa do livro O belo e o disforme
O belo e o disforme
Autor: Cilaine Alves
Editora: EDUSP - 192 páginas
Foto do(a) autor(a) Antonio Carlos Secchin

A rala bibliografia acerca da poesia romântica brasileira vê-se enriquecida com dois títulos de alto nível: "O Belo e o Disforme" e "Risos entre Pares". Oriundos ambos de dissertações de mestrado, apresentam, mediante caminhos diversos, contribuição bastante original para o aprofundamento de questões atinentes ao discurso da chamada "segunda geração" de nosso romantismo e à prática poética de Álvares de Azevedo.

Cilaine Alves reconstitui a história da recepção crítica de Álvares, nela vislumbrando duas vertentes: a denominada "psicobiográfica", que, partindo de Joaquim Norberto (1872), atravessa Sílvio Romero e José Veríssimo até desembocar em Mário de Andrade; e a "crítica psicoestilística", exemplificada na elegância analítica de Antonio Candido. Mas, seja na inglória tarefa de resgatar o homem a partir do texto, seja na descrição matizada dos procedimentos técnicos de que se vale o poeta, tratar-se-ia, em todo caso, de análoga preocupação em registrar uma personalidade (biográfica ou poética) que, "confessando-se" em verso, acabaria remetendo, em última instância, ao mito do "adolescente problemático" e de vez em quando genial.
Tentando descartar-se do psicologismo (como bem demonstra João Adolfo Hansen num denso prefácio), Cilaine atém-se à construção do sistema poético de Álvares a partir de elementos que se integram em contínuos processos de produção de duplos: a percepção da mulher (angelical/prostituída), as oscilações do sujeito cindido entre a ânsia do todo e a vivência do precário, a ambiguidade advinda do choque entre a recusa à contabilização burguesa do mundo e o desejo mal contido de vender a poesia como jóia rara.
Nessa esteira, as lições azevedianas hauridas em Byron não são estudadas como vivências atormentadas de uma alma tropical, mas antes como assimilação de técnicas propícias à construção de sistemas duais, com ênfase na mescla estilística recuperadora do grotesco, a exemplo do que ocorre em textos como "O Poema do Frade". A segura fundamentação do lastro crítico-teórico europeu na produção de Álvares é um dos pontos altos do livro, desmistificando a aura espontaneísta cultivada pelo próprio poeta, zeloso em minimizar o quanto de artifício subjazia na consecução de sua obra.
Trafegando com desenvoltura nas matrizes fecundadoras do romantismo (Schlegel e Schiller são convocados com argúcia e constância), Cilaine também revela competência no trato específico do objeto poema. Todavia, ao menos num caso, parece forçar a nota, partindo de premissa errônea: referimo-nos à sua leitura do famoso texto "É Ela!...". 


A OBRA
O Belo e o Disforme Cilaine Alves Edusp (Tel. 011/818-4156) 192 págs. 
Risos entre Pares Vagner Camilo Edusp (Tel. 011/8189-4156) 240 págs.



De modo algo fantasioso, nele enxerga uma crítica à "construção da nacionalidade pela via do indianismo". Para tanto, parte da presença comum do fenômeno do eco no poema de Álvares e na "Confederação dos Tamoios", de Gonçalves de Magalhães, suposto alvo de paródia por parte de Azevedo -atitude evidentemente impossível, na medida em que Álvares morreu em 1852 e "A Confederação" só veio a lume em 1856.
Outra ressalva, de menor amplitude, prende-se à preferência pelas transcrições em grafia original, a pretexto de reconstituir "o ar do tempo". Se o recurso ainda poderia (talvez!) justificar-se nas citações de poemas, revela-se apenas excêntrico quando aplicado a textos críticos: obsta a fluidez da leitura, sem, em contrapartida, propiciar ganho estético de qualquer natureza. Ademais, se era tão imperativo recuperar o ar do tempo, por que sonegá-lo dos títulos, todos eles invariavelmente atualizados?
"Risos Entre Pares" opera em território contíguo ao explorado no livro de Cilaine. Vagner Camilo eleva à condição principal o que é secundário em "O Belo e o Disforme" (a caracterização e a importância do humor em Álvares) e, ao mesmo tempo, amplia o raio de investigação, com a presença, dentre outros, de Bernardo de Guimarães poeta. É notável em Camilo a capacidade de reconstituir a ambiência estudantil na São Paulo do século 19, não apenas no nível dos costumes pitorescos, mas sobretudo como um microuniverso fomentador de determinadas práticas discursivas, com seus protocolos de produção, escrita e escuta poéticas.
Em contraste com o registro patriótico e moralizante do primeiro grupo romântico, a segunda geração transfere para a figura do próprio poeta o eixo de gravitação do mundo, num caldeirão de "eus" inflacionados e propensos a acolher, como seus pares, apenas os seres ímpares, avessos às solicitações do trabalho e à modorrenta seriedade dos bem-compostos. Boêmia e poesia davam-se as mãos em parcerias e confrarias dos estudantes da Paulicéia, fomentando, se não o amor, pelo menos o humor grupal.
Camilo destrança o cipoal de uma gama variada de conceitos e registros, todos deflagradores do riso romântico: o humorístico, o paródico, o cômico, o irônico, o satírico, o pornográfico, o grotesco, cada qual percebido em sua especificidade e eventual teor de entrelaçamento com seus "próximos". Na seção dedicada a Álvares, o autor assinala certeiramente os limites da conexão azevediana com o sublime e o grotesco, ao demonstrar que, contrariamente aos preceitos de Victor Hugo no prefácio de "Cromwell" (a mais famosa carta de intenções da estética romântica), nosso poeta opera alternada e não simultaneamente com os dois conceitos, esvaziando-os, em consequência, da tensão do choque.
Assim, de modo cabal, Camilo demonstra em "É Ela!..." e "Namoro a Cavalo" a vigência de marcas preconceituosas e classistas vazadas em tom cômico e sem mescla estilística, a léguas da consciência problematizada e problematizadora da efetiva ironia romântica. Segundo Camilo, a ascensão, em Álvares, do meramente cômico ao patamar sofisticado do "humour" teria sido plenamente efetivada unicamente em "Idéias Íntimas". Na excelente leitura desse poema, Vagner acompanha a constituição do espaço físico dos aposentos do poeta e sua transmigração simbólica mediante as "viagens" do artista em contínuo transe e trânsito.
Adiante, o ensaísta centra-se no "riso obsceno", de início com as "Poesias Livres", de Laurindo Rabelo, sustentadas muitas vezes por trocadilhos e piparotes desferidos contra desafetos políticos. À pornografia direta e grosseira de Laurindo contrapõe-se o verbo mais refinado de Bernardo de Guimarães com o seu "Elixir do Pajé", que relê, na clave da paródia e da sexualidade, o tacape ereto da épica de Gonçalves Dias. Já em "A Origem do Mênstruo", Camilo enfatiza o descompasso entre a aceitação do fenômeno biológico em Bernardo romancista e a visão "amaldiçoada" do mesmo fenômeno em Bernardo poeta, atribuindo-a a um possível "temor inconsciente da castração". Mais fecundas, a meu ver, são suas considerações acerca da prática do bestialógico, cujas origens são lastreadas na Idade Média e no Renascimento. A destacar, ainda, sua filigranada e complexa leitura de "A Orgia dos Duendes" como representante do pandemonismo sertanejo.
Num livro tão bem estruturado e aliciante em suas propostas de revisão do cânone, é de lamentar, talvez, a exclusão sumária de Castro Alves no quadro geral das considerações do ensaísta -o Castro Alves nada tonitruante e pleno de inflexões irônicas de "Hino ao Sono", "Boa Noite", "O Adeus de Teresa". No mais, conforme enfatiza Vilma Arêas em sua bela apresentação, o texto de Camilo se inscreve junto "à melhor tradição de nossa crítica literária". Nas "Considerações Finais", o autor sintetiza as transformações do riso, desde o matiz soturno dos românticos até o que denomina "o riso claro dos modernos". A dicção de Camilo, ao mesmo tempo incisiva e elegante, sua visada não-redutora nas articulações entre contexto e texto, aliada à segurança e à pertinência argumentativas, o credenciam para efetuar até a modernidade o desdobramento analítico das vertentes que, com tanta acuidade, soube localizar em nosso romantismo.


Antonio Carlos Secchin é professor de literatura brasileira na Universidade Federal do Rio de Janeiro. 

Antonio Carlos Secchin é professor de literatura brasileira na UFRJ.
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