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Davi Arrigucci Jr. - 87 - Julho de 2002
Drummond meditativo
Foto do(a) autor(a) Davi Arrigucci Jr.

Drummond meditativo

 


Leia três fragmentos do novo livro do crítico literário Davi Arrigucci Jr. sobre a poesia de Carlos Drummond de Andrade



Coração Partido -
Uma Análise da Poesia
Reflexiva de Drummond
Davi Arrigucci Jr.
Ilustrações: Paulo Pasta
Cosac & Naify
(Tel. 0/xx/11/3218-1444)
145 págs., preço não definido

DAVI ARRIGUCCI JR.

O xis do problema  "Sair do Estácio é que é o xis do problema"
(Noel Rosa) 

O poeta que surgiu em 1930 e acabou se tornando a figura emblemática da poesia moderna no Brasil construiu uma grande obra em que tudo acontece por conflito. Desde muito cedo, Carlos Drummond de Andrade experimentou dificuldades e contradições para forjar o denso lirismo meditativo que o caracteriza.
A meditação parece fruto dos seus tempos de madureza, mas vem de antes, da origem mineira. Já no princípio, o poeta coaduna a discórdia com a reflexão.
Recusa silenciosa, idéia calada, a cisma tem uma história, que pode não ter datas nem fatos perceptíveis de imediato, mas faz diferença, pelo processo interior em busca de expressão. E só através daquela estrada de Minas, pedregosa, que conduz à "máquina do mundo" e ao enigma -estrada imaginária que a mente desenha-, se pode buscar a unidade de estrutura da obra como um todo, cujos traços de coerência profunda vão apontando mesmo nos poemas breves, de corte humorístico, do início.
Seu lirismo, sem prejuízo da mais alta qualidade, nunca foi puro, mas mesclado de drama e pensamento. Por força da memória e da experiência, a certa altura incursiona também pela narrativa -memória em versos, como disse dele Pedro Nava, referindo-se a "Boitempo". E ainda se podia lembrar a ficção em prosa, sobretudo o conto e a crônica, a que o escritor também se dedicou com assiduidade.
Mas no plano da poesia, que aqui importa, nota-se desde o começo a mistura de gêneros, com a presença de traços estilísticos dramáticos e narrativos que se integram perfeitamente, como acontece com frequência no poema lírico, à subjetividade dominante própria do gênero principal. Eventuais traços dramáticos ou narrativos apenas matizam o que enuncia a voz central que fala ao leitor. A questão se acha, porém, na forma reflexiva que a lírica assume nesse caso.
É que o pensamento desempenha um papel decisivo no mais íntimo dela, pois define a atitude básica do sujeito lírico, interferindo na relação que este mantém com o mundo exterior, ao mesmo tempo que cava mais fundo na própria subjetividade: o resultado desse processo é o adensamento do lirismo pelo esforço meditativo, que casa um esquema de idéias à expressão dos sentimentos. Os românticos foram nesse caminho há muito tempo; é preciso ver o que fez dele um dos modernos, Drummond.
O xis do problema é o modo como a reflexão, que espelha na consciência o giro do pensamento refletindo-se a si mesmo, se une ao sentimento e à sua expressão poética, determinando a configuração formal do poema, num mundo muito diferente daquele dos primeiros românticos e da poesia meditativa que inventaram.
Se for verdade, como quis Heráclito, que a discórdia é harmonia não compreendida, para compreender a poesia de Drummond será necessário refazer um pouco sua história por dentro, tratando da alma e do mundo em sua complicada conjunção. Daí partem as contradições e o movimento interno da reflexão que define aqui a atitude do autor diante da obra.
Este ensaio procura compreender o modo como o poeta exterioriza, através da lírica meditativa, seu "sentimento do mundo". É uma tentativa de interpretar um percurso difícil: como consegue, por seu trabalho de arte fundado na reflexão, dar forma orgânica aos fatos, problemas e valores que lhe marcaram a experiência no contato com o mundo. Trata sobretudo do humor, do amor, do trabalho, enredados na mesma teia de problemas, resumida no fim.
Em termos drummondianos, talvez se possa dizer que o sentimento é a marca que o mundo lavra na alma. A poesia, espécie de mineração, é uma arte de lavrar palavras: inscreve a marca do sentimento numa forma de linguagem. Por isso, ela traz em segredo, feito enigma, como uma cicatriz, algo do sentido do mundo que só sua forma pode conter e, de repente, revelar.
Por sua vez, a interpretação, tentativa de compreensão crítica, é um meio de ler, de decifrar o segredo da forma lavrada: procura uma chave para o enigma. Mineração a seu modo também, refaz a história interior do sentimento inscrito nas palavras, em busca do que estas possam significar.

O pouco que sempre fica para quem se arrisca a interpretar não é mais do que a pergunta pelo sentido, princípio e fim de tudo. Dar forma ao sentido é a razão da existência dos artistas. [...]

Ingênuo, sentimental
Desde o princípio, como se acaba de observar, a marca de Carlos Drummond de Andrade foi a complexidade. Muito diferente do caso de Manuel Bandeira, que havia inaugurado entre nós as formas da poesia moderna e a magia do estilo simples que envolve o complexo, sugerindo a mais pura espontaneidade, a expressão poética de Drummond nunca dá a impressão de correr solta, com naturalidade.
Ao contrário, ela é sempre objeto de uma procura, o produto de um esforço incessante, da luta com as palavras, que é um dos motivos recorrentes de sua obra e parece corresponder à sua concepção mais funda e dramática do poético: a poesia que é capaz de inundar uma vida inteira e resistir à pena que busca fixá-la num verso.
A diferença que separa os dois grandes poetas é mais importante do que parece à primeira vista, pois se liga ao modo de ser mais íntimo de cada um, e não se reduz exatamente a uma oposição de contrários, lembrando antes a famosa distinção de Schiller entre a poesia "ingênua" e a "sentimental", sem se reduzir, está claro, tampouco a ela.
A "ingenuidade" bandeiriana não é por certo meramente espontânea ou instintiva -na concepção schilleriana o poeta ingênuo se distingue pelo modo de criar natural ou instintivo-, mas depende de uma intenção e de um saber artístico capazes de guiar o poeta na intuição da própria naturalidade, que dá a impressão da mais pura espontaneidade, mas é em grande parte produto de uma construção verbal altamente refletida e refinada, de uma "fábrica altamente engenhosa", como disse dele o próprio Drummond, pressupondo, além do mais, uma atitude propícia ao encontro da poesia.
O alumbramento, súbita manifestação do momento forte em que irrompe o poético, mal esconde a "apaixonada escuta" a que se vê forçado Bandeira para a captação do segredo da poesia. É que, em sua opinião, ela se acha dispersa feito um éter difuso, ou como o metal nobre que só se deixa desentranhar da ganga bruta em raros instantes da existência, quando o poeta pode captá-la como uma emoção particular, distinta da emoção banal.
Mesclada a essa "ingenuidade", há então o sentimento de negatividade do mundo e a ironia, pois se supõe não só que a poesia pertença a uma esfera mais alta, para além do imediatamente dado, e possa manifestar-se de repente com a violência do sublime no chão do cotidiano, mas também que os momentos fortes sejam naturalmente muito poucos, e o alto ande sempre misturado ao baixo.
Essa concepção ironicamente realista nada tem de ingênuo no sentido corriqueiro do termo; antes revela uma aspiração que vai além da realidade imediata, que o poeta se recusa a aceitar e cujo aspecto melancólico denuncia pelo próprio movimento interior do desejo insatisfeito que o leva a ultrapassá-la em busca de um bem maior, a que em geral não dá lugar a vida madrasta.
No entanto, o modo de criar de Bandeira se revela afim àquele que caracteriza o poeta "ingênuo" de Schiller, pois não se vê obrigado à mediação inevitável da reflexão. Identificando-se com a simplicidade humilde, que toma por um valor de base, sua poesia flui espontaneamente seguindo a natureza, fonte escondida, latente sob o chão mais despojado.
Tampouco Drummond é um poeta sentimental, no sentido corrente do termo; ao contrário, parece repelir esse adjetivo, uma vez que adota uma atitude reflexionante e irônica que precisamente evita aquilo que constitui o significado comum, emocional e lacrimoso, dessa palavra.
O conceito de Schiller, que por certo teve de desviar-se dos equívocos que a palavra alemã já então devia conotar, nos leva ao que é característico do poeta "sentimental" e tem tudo a ver com o sentimento refletido, a poesia "pensamenteada" do autor do "Sentimento do Mundo". Um caso interessante e exemplar para a compreensão da atitude drummondiana tal como se mostra já em seu início é o do poema de "Alguma Poesia" que traz no título precisamente a palavra "Sentimental":
"Ponho-me a escrever teu nome/ com letras de macarrão./ No prato, a sopa esfria, cheia de escamas/ e debruçados na mesa todos contemplam/ esse romântico trabalho.// Desgraçadamente falta uma letra,/ uma letra somente/ para acabar teu nome!/ Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!// Eu estava sonhando. . ./ E há em todas as consciências um cartaz amarelo:/ "Neste país é proibido sonhar'".
O poema lembra imediatamente o final do "Poema de Sete Faces", pois como ali se trata de uma espécie de idílio constrangido, no qual a confidência do sentimento é barrada por algum tipo de censura (aparentemente aqui a família mineira, envolvida no ritual doméstico da hora da refeição, e a sociedade brasileira que ela representa, em sua repressão ao sonho "romântico").
À primeira vista, estamos diante de uma composição muito simples, tirada da observação da vida de todo dia -até o traço mais trivial e de verve cômica da escrita do namorado com letras de macarrão-, um quadro de gênero da pintura realista, com seu recorte linear de uma cena doméstica à hora da refeição, quando a roda familiar em volta da mesa se dedica à conversa e à troca de experiências.
A marca modernista se percebe logo pelo rebaixamento do poético dos temas elevados para a trivialidade do cotidiano e da fala corriqueira, e pela ironia, que desde o título modula o ideal do sonho romântico em contraste com a realidade bruta que o contradiz, tolhendo sua expressão. O poema, como seu despojamento antipoético segundo os moldes tradicionais, parece então organizar-se, pelo registro irônico de uma perspectiva humorística, diretamente em torno do fato trivial, como uma espécie de poema-piada.
Mas, na verdade, não há fato direto algum aqui, e o chiste é mais complexo, porque sua ironia é mais radical e se une o tempo todo à reflexão. Ela transforma completamente, pela duplicidade que imprime a tudo, a anedota explícita que dá sabor cômico e caráter narrativo ao poemeto. Quer dizer: a cena toda representa, em sua forma objetiva e distanciada de narrativa, uma fantasia do Eu sobre o Eu; ela é a imagem projetada da subjetividade que se dobra sobre si mesma; não um mero registro de fatos, mas um meio de pensamento.
Assim procedendo, o poeta adota, ironicamente, para além da ironia inicial do título, a forma romântica do pensamento para tratar da impossibilidade de um "romântico trabalho", que procura dar forma ao sonho de um namorado. No sentido corrente, "romântico" remete decerto à expressão espontânea das emoções, o mesmo campo semântico a que se vincula comumente o adjetivo sentimental. A utilização irônica da historieta como meio de pensamento logo manifesta a duplicidade mais intrincada do título e do que se está verdadeiramente tentando exprimir.
O estilo de pensamento dos primeiros românticos é, como se viu, o pensamento reflexivo, que se debruça sobre si mesmo, no esforço inesgotável de procurar no vasto, ilimitado coração, o que não pode alcançar senão por essa via da reflexão. Mas, paradoxalmente, a reflexão -esse pensar sem fim que lembra o sonho- é que impede o sujeito de atingir o que busca em si mesmo, arrastando-o à procura sem fim da natureza perdida que é agora só um ideal inatingível, mas aproximável sempre pelo empenho do trabalho reflexivo.
Assim, expressa "Sentimental", portanto, o paradoxo do sentimento em sua dificuldade de exprimir-se com naturalidade, de tal modo que só o consegue por via de uma anedota transformada pelo movimento da reflexão em espelho dessa mesma dificuldade que enfrenta o poeta em seu trabalho de dar forma ao sentimento. A historieta da espontaneidade reprimida -o namorado que se empenha em vão no trabalho irrealizável de dar forma ao sonho com letras de macarrão- se faz a mediação reflexiva para uma difícil poesia, depois que a ingenuidade se tornou impossível para a experiência moderna.
Como o poeta "sentimental" de Schiller, Drummond faz da impossibilidade de ser espontâneo o caminho dificultoso da procura da poesia por via da reflexão.
Na verdade, a reflexão se torna o procedimento básico para quem o ato de criar constitui sempre uma recorrente dificuldade, apresentando-se como uma procura da poesia, que é, paradoxalmente também, uma busca da naturalidade, pois revela, nos termos schillerianos, o empenho em "restabelecer a sensibilidade ingênua segundo o conteúdo, mesmo sob as condições da reflexão". Para quem já não é natureza, e busca o perdido, o trabalho é dos mais árduos.
Assim, a reflexão surge como a condição para que o poeta alcance o que busca e, contraditoriamente, se torna o empecilho para isso. Este paradoxo, central à poética drummondiana, é expresso por diferentes modos, mas quase sempre o poeta se vê encalacrado em situações aporéticas, estrada de fato pedregosa a que teve de se afeiçoar desde a origem distante em Minas. [...]

A pedra e a reflexão
Escrito em fins de 1924 ou no início de 25, o famoso "No Meio do Caminho" foi publicado pela primeira vez no nº 3 da "Revista de Antropofagia", em 1928, sem causar, que se saiba, qualquer celeuma:
"No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho/ tinha uma pedra/ no meio do caminho tinha uma pedra.// Nunca me esquecerei desse acontecimento/ na vida de minhas retinas tão fatigadas./ Nunca me esquecerei que no meio do caminho/ tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho/ no meio do caminho tinha uma pedra."
Incluído em "Alguma Poesia", provocou um vendaval na década de 30, quando já a revolta modernista da primeira hora parecia assentada. Tornou-se então objeto de chacota e impropérios, mas também de aplausos, mantendo acesa a chama da polêmica por muitos e muitos anos. É, por isso, um dos poemas mais conhecidos de Drummond.
Como pedra de escândalo em que todos tropeçam, é sempre citado, mas só considerado de passagem e, na verdade, pouco estudado analiticamente, apesar da grande importância para a compreensão da obra toda.
Nele, pela primeira vez, surge uma situação que depois se tornará recorrente no conjunto, o encontro do poeta com algum obstáculo que lhe barra a passagem ou interfere em seu caminho. Como toda situação reiterada, essa pode adquirir um papel simbólico, virando parte de uma história maior, e muito mais do que prometia à primeira vista, apesar do impacto inicial.
Com efeito, o poema começou por instaurar o pânico na visão tradicional da poesia, pelo choque de sua nova concepção do poético: a poesia já não era o que se pensava. Ficava evidente o que então não se sabia direito, mas se tornaria a condição geral de toda a arte moderna: o seu lugar incerto, ou, no caso específico, a dúvida sobre o que se considerar poesia.
No entanto, o poeta, ensimesmado na reflexão, não parecia ter dúvida alguma sobre a invenção do novo. Baixava o poético das alturas tradicionais para o plano da experiência cotidiana, quebrando a mesmice por um golpe surpresa, feito um seco e enigmático "koan", desferido na cabeça da percepção entorpecida. Sua arma era decerto o chiste, juntando seriedade ao cômico.
Era fácil sentir o golpe. O emprego do verbo ter, em vez de haver, no primeiro verso, até hoje assusta os puristas; o espaço nobre da poesia escrita vinha tomado pela fala coloquial; os mesmos segmentos de verso se repetiam mecanicamente quase no poema todo, pregando uma peça permutante, absurdamente antipoética segundo os padrões habituais, que fugiam da redundância; por fim, a completa banalidade do que ali se considera literalmente um acontecimento, isto é, topar com uma pedra no caminho.
Parecia piada. E era, mas combinada a um núcleo grave e reflexivo, efeito, por assim dizer, da topada.
Diferentemente do "Poema de Sete Faces", em que se observa o rebaixamento do poeta, agora o fundamental é o deslocamento, também para o terra-a-terra, do poético, aproximando-o da esfera baixa do cômico, para transformá-lo, no entanto, mais uma vez por via da reflexão, em problema sério. Mário de Andrade, que acompanhou com carinho o poeta desde os primeiros passos, disse com precisão que o poema era irritante, mas iluminador, um símbolo.
Provavelmente o que nele podia parecer o mais irritante -o ramerrão repetitivo-, aos olhos de hoje, se torna, ao contrário, não só seu principal procedimento de construção, mas um realce a mais de seu poder inovador.
O essencial não é apenas a repetição, recurso que funda o ritmo e sem o qual nenhuma poesia pode passar, mas a forma particular que assume aqui, como arte combinatória dos segmentos de verso, reafirmando o alto engenho sintático de Drummond, o poder de articulação com que tece seu pensamento poético.
Aqui ele se mostra como um lance permutativo, que pela troca repetida de partes de verso faz de novo do texto tecido verbal, tramado pelo retorno rítmico dos segmentos como lançadeiras de um tear, repisando pela repetição circular e infindável o efeito na alma do desconcerto da pedra no meio do caminho.
A reiteração constante tem algo de cômico porque parece a rigidez mecânica e absurda de uma roda do infortúnio da qual não se pode escapar; na sua mesma comicidade grotesca conota ainda algo de terrível, cujo efeito corrói a alma, ensimesmada e abatida diante da pedra irremovível. Esse ritmo de eterno retorno é também o movimento da reflexão que sempre volta ao mesmo ponto, como a uma idéia fixa.
Mas no meio do caminho (e do poema), sem se interromper o esforço reflexivo, da mesmice surge a diferença da fadiga, do desalento, da perplexidade, elementos que compõem, na verdade, um complexo sentimento de não-poder do Eu, em que se observa uma atitude parecida à do "Poema de Sete Faces": "Nunca me esquecerei desse acontecimento/ na vida de minhas retinas tão fatigadas".
Aí se encontra o eixo emotivo e intelectual da reflexão; ao redor dele gira o círculo das repetições infindáveis, a que retornará logo em seguida, obrigatoriamente, o próprio movimento reflexivo, sem saída frente ao obstáculo. A situação é decerto aporética, mas a ênfase não recai no esforço de decifração da pedra, que permanece enigmática, e, sim, no efeito que causa no mais íntimo (como a memória indelével de um trauma).
A rigor, o poema se reduz, portanto, a uma situação narrativa básica -a do caminhante que se defronta com o obstáculo-, situação essa que se converte no drama íntimo de quem se abate diante da barreira.
Visto assim no todo, o chiste parece uma "anedota de abstração", próximo do mito, em sua forma de continho concreto, mas com alta voltagem de generalização, prestando-se à recorrência.
Na verdade, faz pensar de novo no acontecimento no meio do caminho: a pedra está no início de tudo e também no fim. Atingindo a sensibilidade do poeta, ela desencadeia a reflexão, pois cria a aporia que está no princípio de todo querer saber.
A reflexão desencadeada faz dela, por sua vez, objeto do pensamento, o qual a recolhe ao interior da subjetividade, ao mesmo tempo que a devolve como experiência constitutiva de uma forma objetiva de linguagem, o poema, em que ela é de novo a pedra "No Meio do Caminho".
Nessa historieta circular, o que está em jogo, portanto, é sempre o princípio e o fim da criação poética: a pedra será, recorrentemente, a pedra no caminho de toda criação drummondiana. Nela reside a dificuldade básica que para ele funda a criação: é fator desencadeante e, simultaneamente, entrave do ato poético.
A pedra é o que move o poeta à reflexão e à procura da poesia, que ela, entretanto, barra, obrigando-o ao círculo infernal da busca sem fim, a retornar indefinidamente.
"No Meio do Caminho" pode sugerir, pelo título, uma alusão paródica ao princípio do poema de Dante e ao desgarramento fundamental do poeta. De fato, a questão do exílio do poeta desgarrado da reta via, perdido nos círculos infernais, parece de algum modo ainda encontrar eco nesta errância sofrida de um poeta moderno que ao começar, debruçado sobre o próprio ato fundador da criação, já vem ironicamente marcado pela fadiga do caminho infindável, que mais parece impedimento que via certa do encontro.
De algum modo ele já começa pela perplexidade de buscar o perdido, o que de fato deixa confundido o coração. No meio do caminho, o que se encontra de verdade é o sentimento tortuoso da fraqueza e da falta de jeito, a sensação de não poder nada frente ao sem-fim da dificuldade.
O poemeto constitui, portanto, não só a pedra de escândalo modernista que marcou a inauguração do universo poético de Drummond, pelo rebaixamento inesperado, irônico e contundente da poesia ao terra-a-terra mais trivial, mas a meditação básica e simbólica do poeta sobre o ato criador, cujo caráter problemático vem aí expresso curto e grosso como um desaforo para quem podia esperar do poético só mistério e elevação.
O exemplo podia ser outro, mas o que está em jogo é sempre a apreensão intelectual e imaginativa dos fatos e dos estados sentimentais numa forma particular e complexa, a que não falta o agudo senso de humor e sempre, em dimensão profunda, refletida na tortuosa interioridade, a relação complicada consigo mesmo e com o mundo de fora. É sobre esse labirinto que convém agora meditar. [...]


Davi Arrigucci Jr. é crítico literário e autor, entre outros livros, de "O Escorpião Encalacrado" (Companhia das Letras).

Davi Arrigucci Jr. É crítico, ensaísta e professor de literatura da USP.
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