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Eduardo Escorel - 24 - Março de 1997
Dois mestres do cinema novo
Foto da capa do livro Joaquim Pedro de Andrade, a revolução intimista
Joaquim Pedro de Andrade, a revolução intimista
Autor: Ivana Bentes
Editora: Relume-Dumará - 171 páginas
Foto do(a) autor(a) Eduardo Escorel

Tomado pelo câncer que o mataria aos 56 anos, Joaquim Pedro de Andrade devia estar se sentindo como o urubu do dito popular, registrado em "Macunaíma", que "quando está de caipora o de baixo caga no de cima". Desenganado, sem filmar há oito anos e de pé atrás com um livro em preparo sobre seus filmes, talvez tenha concluído, como o herói de Mário de Andrade, que "este mundo não tem jeito mais e vou pro céu!".

Quase uma década depois da sua morte, Joaquim Pedro continua de caipora. O livro que fora anunciado acabou não sendo publicado, mas uma nova autora se apresentou para falar da sua vida e dos seus filmes. Impiedoso consigo mesmo e com os outros, Joaquim Pedro seria o primeiro a lamentar a publicação desse "perfil" escrito por Ivana Bentes.
Apesar da admiração da autora, sua tentativa de descrever a trajetória de Joaquim Pedro se perde por falta de pesquisa, pressa na redação e pelo tom laudatório do texto. Um cineasta que fazia cinema "para não ser aplaudido depois de sequências dó de peito" merecia outro tratamento. Ele mesmo respeitaria mais uma crítica contundente, mas bem-fundamentada, do que uma loa pontuada por erros e imprecisões.
Por enquanto, uma das contribuições mais positivas para a reavaliação da obra de Joaquim Pedro e de outros diretores do Cinema Novo vem sendo dada pelas retrospectivas promovidas pelo Centro Cultural Banco do Brasil, desde 1994, no Rio de Janeiro. No caso da mostra dedicada a Leon Hirszman, em 1995, além da exibição de seus filmes, a edição de suas entrevistas nos dá um retrato bem mais fiel e interessante do que o "perfil" de Joaquim Pedro.
Chega a parecer exagerado o escrúpulo de Carlos Augusto Calil em apresentar essas "memórias póstumas" de Leon Hirszman como "ficção", por resultarem de uma montagem que procurou organizar "blocos de idéias" e dar uma "fluência e um encadeamento" que as entrevistas, na sua versão original, não possuem. Com a devida cautela, podemos perfeitamente tomar o texto como um longo depoimento autobiográfico em que Leon faz uma revisão crítica de seu percurso intelectual e de suas realizações.
Joaquim Pedro não teve a mesma sorte. Ao se basear em uns poucos depoimentos de amigos e familiares, Ivana Bentes caiu em sucessivas armadilhas pregadas pela memória dos entrevistados e pela tendência de alguns, às vezes com muita graça, de fantasiarem o passado. Exemplar é o suposto episódio contado por Mário Carneiro, que teria surpreendido Werner Herzog "de joelhos, (...) fazendo um discurso em homenagem a Joaquim".
À parte o descuido com a grafia de alguns nomes próprios e a tradução de "bête et méchant" (estúpido e cruel) por "besta e chato", Ivana Bentes comete tantos erros factuais que o valor do seu "perfil" fica comprometido.
Segundo ela: a) "Couro de Gato" se aproximaria "da pureza, economia e humor de Humberto Mauro" em "A Velha a Fiar", quando, na verdade, o filme de Joaquim Pedro foi feito três anos antes que o de Humberto Mauro; b) um "prefeito de Brasília" teria declarado, na Copa de 62: "Eu cumpri o meu dever construindo este estádio, vocês agora cumpram o seu, ganhando a Copa". A frase, citada na narração de "Garrincha, Alegria do Povo", refere-se, na realidade, ao Maracanã e foi dita pelo prefeito do Rio de Janeiro, Ângelo Mendes de Morais, aos jogadores da seleção brasileira de 1950.
Nesse mesmo gênero de trapalhada, valeria ainda mencionar: c) a viagem de Joaquim Pedro a Moscou, feita em 1965, que, segundo Ivana Bentes, teria ocorrido em 1963; d) a referência à prisão dos "Oito do Glória", em 1966, que ocorreu em 1965; e) a menção a "Alexandre Eulálio, crítico paulista...", que, como todos sabem, era carioca, mas diamantinense de coração; f) a afirmação que "Macunaíma" possibilitou uma peça como "O Rei da Vela", quando o filme foi feito dois anos depois da encenação do texto de Oswald de Andrade.
Esses são apenas alguns dos inúmeros erros dos quais uma revisão cuidadosa até poderia ter dado conta. O que seria mais difícil corrigir são os também numerosos enganos conceituais.
Ao contrário do que diz Ivana Bentes, a) em "Garrincha, Alegria do Povo", Joaquim Pedro não pôs "em prática as técnicas do cinema-verdade aprendidas em Paris e Nova York" por não dispor do equipamento necessário para isso, como ela mesma informa, corretamente, duas páginas adiante; b) "O Padre e a Moça" não é "estruturado em planos-sequência", que só vão surgir em "Os Inconfidentes", quatro anos depois; c) na montagem de "O Padre e a Moça", feita aliás pelo próprio Joaquim Pedro com a minha colaboração, não tive "grandes problemas para fazer os cortes" etc.
Dado o limite de espaço desta resenha, acrescentaria apenas que "Macunaíma" não deve ser considerado "uma ruptura na obra de Joaquim Pedro", como pretende Ivana Bentes. Mesmo "Os Inconfidentes", em que surgem pela primeira vez recursos que irão caracterizar seus filmes seguintes, guarda relação estreita com "O Padre e a Moça". Nas palavras do próprio Joaquim Pedro, "tanto o padre quanto Alvarenga ou Cláudio Manuel da Costa assumem uma responsabilidade que não corresponde a um poder concreto, a seus respectivos níveis de ação"(1).
A partir de "Os Inconfidentes", além dos planos-sequência, a marca do cinema de Joaquim Pedro estará nos personagens que se definem mais pelos diálogos do que pela ação, nas dramatizações imprevistas (Joaquim Silvério entrando na banheira com o Visconde de Barbacena) e nas soluções insólitas ("Aquarela do Brasil" e "Farolito" na trilha sonora de cenas que se passam no século 18). Recursos de estilo que teriam sua aplicação mais radical em "O Homem do Pau Brasil".
É preciso admitir, no entanto, que este último filme de Joaquim Pedro não está à altura da sua obra anterior. Ao contrário do que pretende Ivana Bentes, a versão cinematográfica das idéias de Oswald de Andrade envelheceu e não há, como ela afirma, espectador que se delicie "com a comicidade da situação". Traduzindo em miúdos, "O Homem do Pau Brasil" não é um bom filme e, por infelicidade, Joaquim Pedro não viveu para nos dar novos filmes da mesma qualidade e interesse dos que já fizera.
Leon Hirszman, por sua vez, teve a felicidade de obter reconhecimento internacional com seu último filme de ficção, "Eles Não Usam Black-Tie", e de realizar ainda uma obra-prima, o documentário "Imagens do Inconsciente", antes de morrer sem ter completado 50 anos. O seu depoimento revela uma trajetória que vai da superação da ortodoxia e do dogmatismo, expressos em "Pedreira de São Diogo" e "Maioria Absoluta", até alcançar o equilíbrio entre razão e sentimento em "Black-Tie" e "Imagens do Inconsciente". Depois de ter evitado qualquer emoção em "São Bernardo", Leon procurou recuperar o que sentia sempre que via "Black-Tie" no teatro e "chorava muito": comunicar idéias com emoção. Com isso chegou à sua maturidade como autor.
Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman: dois mestres do Cinema Novo, aproximados também pela fatalidade de terem morrido moços. Ambos ainda aguardam uma visão lúcida de suas obras.

Nota:
1. "Vamos Rever Agora Cinco Bons Filmes", entrevista a Cláudio Bojunga, "Jornal da Tarde", 22/11/73. 

Eduardo Escorel é cineasta.
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