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Iara Silva Silveira - 117 - Junho de 2018
Distopia Feminista
Mulheres serviçais, esposas, religiosas e reprodutoras
Foto da capa do livro O conto da aia
O conto da aia
Autor: Margaret Atwood
Tradução: Ana Deiró
Editora: Rocco - 368 páginas
Foto do(a) autor(a) Iara Silva Silveira

Em “O Conto de Aia”, escrito por Margaret Atwood, reconhecemos uma distopia visivelmente inspirada nos regimes totalitários e no fundamentalismo cristão.  Lançado em 1985 (republicado em 2017 pela editora Rocco), a obra da escritora canadense obteve uma grande popularidade ao ser adaptada em “The Handmaid’s Tale”, série televisiva eleita 'Melhor Série Dramática de TV’ pelo Globo de Ouro em 2018, além de outras treze indicações e sete premiações. 

A obra literária retrata um contexto futurista apresentado através da República de Giled, antes conhecida como Estados Unidos da América. Nesse estado teocrático e autoritário as mulheres são subdivididas de acordo com a função que exercem dentro da sociedade: as Martas (serviçais), Esposas, Tias (religiosas) e as Aias (reprodutoras). Esta última de grande relevância para a sobrevivência da população, visto que uma grande catástrofe nuclear fez surgir grandes índices de infertilidade.

A narrativa fica por conta de Offred- que significa of Fred- (de Fred) que em um passado distante era casada e tinha uma filha, entretanto, com o novo regime tornara-se aia, o que impossibilitava sua permanência como esposa e mãe. Com a necessidade social de aumentar a taxa de natalidade, era responsabilidade das aias terem relações sexuais com o maior número de homens possível, o que não as tornavam mães, já que as crianças nascituras eram propriedades do casal para o qual as aias eram designadas.

Utilizada apenas para fins de reprodução, sem nenhuma liberdade e direitos básicos, a vida de uma aia era por muitos considerada uma benção se comparada a de mulheres inférteis, homossexuais, viúvas e feministas, condenadas a trabalho forçado em uma colônia com grande índice de radiação. Para Offred isso não amenizava sua condição: “A sanidade é um bem valioso: eu a amealho e guardo escondida, como as pessoas antigamente amealhavam e escondiam dinheiro. Economizo sanidade, de maneira a vir a ter o suficiente quando chegar a hora”, escreve em seu diário proibido.

Os livros distópicos estão amplamente ligados à realidade social, e “estão comumente associados a contextos históricos particulares” (Souza: 2012, p139). Logo, por mais absurda e impactante que seja a realidade mencionada na obra, é necessário relacioná-la a períodos passados, mas principalmente a acontecimentos recentes, como estupro, patriarcalismo e analfabetismo feminino.

A Organização das Nações Unidas estabeleceu em 1993 o estupro marital como uma violação dos direitos humanos. A recomendação da organização é que nem o casamento ou qualquer outro relacionamento pode ser considerado como justificativa e/ou consentimento. Em O Conto de Aia, a infertilidade e a aceitação por parte das esposas deixam claro que a relação entre o homem e as aias não são consideradas uma infração, mas algo necessário. Utilizadas meramente como objeto sexual e de reprodução, as mulheres destinadas a tal papel tinham duas opções: aceitar livremente que seu corpo seja usado pelo maior número de homens possíveis, ou então serem encaminhadas para o trabalho escravo. A narrativa absurdamente chocante reabre a discussão sobre a polêmica, visto que, em países como Índia e Singapura o estupro matrimonial é justificado. Sendo assim, torna-se necessário o questionamento sobre a quantidade de mulheres que se submetem a relações sexuais forçadas através de ameaças, agressões, dependência financeira, pressão familiar, etc.

A liberdade negada para as aias é muitas vezes representada através de valores tradicionais que pesam sobre os ombros das mulheres, a questão é: E se a mulher não desejar ter filhos? O casamento é uma obrigatoriedade? Há problemas em valorizar prioritariamente a carreira e a vida acadêmica? A violência doméstica continuará sendo mascarada?

Por mais que as lutas feministas estejam em constante evolução, a sociedade continua limitada por valores patriarcais, explícitos no mercado de trabalho, na política e na educação. A formação educacional mencionada na obra é exclusivamente centrada na formação sexual das aias, não havia então possibilidades de inserção no mercado de trabalho e muito menos nas universidades. Ou seja, para a mulher cabiam apenas algumas funções: cuidar dos esposos, cuidar da casa ou gerar filhos, infelizmente tal cultura retrógrada vai além da ficção e persiste dentro da sociedade moderna do século XXI.

Iara Silva Silveira é professora de língua portuguesa na rede pública de ensino e professora de literatura no Colégio Novo Milênio (COOTEC). 


Iara Silva Silveira
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