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Jeanne-Marie Gagnebin - 94 - Março de 2003
Dialética sem labirinto
Sonho, mercadoria e fetiche em Salter Benjamin
Foto da capa do livro Dialética do olhar
Dialética do olhar
Autor: Susan Buck-Morss
Tradução: Ana Luiza Andrade
Editora: E. UFMG/Argos - 566 páginas
Foto do(a) autor(a) Jeanne-Marie Gagnebin

O livro de Susan Buck-Morss sobre Walter Benjamin e o "Projeto das Passagens" é uma obra já bastante antiga na paisagem dos estudos benjaminianos; foi publicada em 1989, isto é, antes da tradução (recente) do "Passagen-Werk" para o inglês. Assim também acontece com sua versão brasileira, já que a editora da UFMG promete uma tradução da obra de Benjamin para 2003 ou 2004.
O fato de os comentários de Buck-Morss serem publicados antes da obra do próprio Benjamin é determinante tanto para suas qualidades quanto para suas deficiências. Com efeito, seu maior trunfo consiste em nos oferecer um guia de orientação no universo labiríntico não só das "passagens" parisienses, essas galerias cobertas de vidro construídas no século 19 e já obsoletas no seguinte, mas também no próprio texto de Benjamin: reunião sem nexo de anotações ou coleção estruturada de observações histórico-filosóficas, cuja chave cabe aos intérpretes atuais descobrir? Livro-mor do Benjamin maduro ou anexos de um outro livro sobre Baudelaire?
As discussões a esse respeito continuam até hoje. Buck-Morss propõe uma grade de leitura coerente: "A preocupação política de Benjamin proporciona a orientação global a cada constelação e salva o projeto da arbitrariedade".

Eixos principais
Dividido em três partes, o guia de Buck-Morss procura mostrar a gênese temporal e espacial do "Passagen-Werk", os eixos principais de organização do material (história/mito/natureza, igualmente sonho, mercadoria e fetiche) e o alcance político e filosófico das análises benjaminianas. A grande riqueza de citações e ilustrações, em sua maior parte oriundas do próprio texto de Benjamin, testemunha a incrível multiplicidade de elementos tanto documentais como teóricos que ele reuniu nessa montagem, não levada a termo em virtude de sua morte prematura. Buck-Morss chama a atenção para textos menos conhecidos (resenhas menores, descrições de cidades, ensaios radiofônicos) e acrescenta várias fotografias de arquivos históricos ou de artistas contemporâneos com o intuito, bem-sucedido, de lançar uma luz atual sobre as hipóteses formuladas por Benjamin, nos anos 1930, a respeito da cultura e da política modernas. Seu livro constitui uma mina de informações na qual o leitor pode garimpar vários pequenos tesouros disseminados no "Passagen-Werk".
Apesar dessas qualidades inegáveis, os longos comentários de Buck-Morss são questionáveis. Desde 1992 (data do centenário do nascimento de Benjamin), houve uma recrudescência de estudos sobre o autor, cuja importância para a compreensão das transformações tanto da experiência cotidiana e política quanto das práticas artísticas atuais continua a crescer. Mesmo com as limitações inerentes à filologia e ao rigor dos trabalhos acadêmicos (que Buck-Morss assimila um pouco rapidamente aos "iniciados"), essas pesquisas apontam, em sua maioria, para a necessidade de ultrapassar alternativas características da primeira recepção de Benjamin: entre literatura e filosofia, ou entre marxismo e teologia, ou ainda entre pensamento idealista e pensamento materialista.
O que torna o pensamento de Benjamin instigante -insisto: não só academicamente, mas também politicamente!- é, correndo o risco da ambiguidade, mesmo da incoerência e da contradição, o fato de ter ousado pensar a problemática de nossa modernidade a partir de obras culturais e de fenômenos históricos concretos e particulares, cuja singularidade questiona as interpretações generalizantes e sistemáticas, ou melhor, coloca em questão a vontade, o desejo de enclausurar os fenômenos pelo pensamento categorial. Isso não implica que Benjamin fosse um pós-moderno relativista; significa que ele se apropria de Marx, sem dúvida, mas também de Freud, Proust, Kafka e Nietzsche (figuras pouco presentes no livro de Buck-Morss), de Louis Aragon e de Isaac Luria, sem falar em Charles Péguy e em Carl Schmitt!
Defender um Benjamin marxista, mesmo que "heterodoxo", como o faz Buck-Morss é totalmente plausível, mesmo louvável, já que Marx parece ter saído de moda, talvez por enquanto. Mas não basta repetir e afirmar essa interpretação contra os colegas pós-modernistas, desconstrucionistas, psicanalíticos, com os quais a autora polemiza entre as linhas do seu livro e que, feliz ou infelizmente, o leitor brasileiro desconhece.

A dialética de Benjamin
Gostaríamos de entender mais precisamente em que a dialética de Benjamin se aproxima da dialética de matiz hegeliano e marxista, já que Buck-Morss continua afirmando que há um movimento de tese/antítese e mesmo de síntese no pensamento de Benjamin; e em que ela difere e por quê: não me parece suficiente que essa diferença seja predominantemente de "conteúdos" ou de materiais, como se Benjamin tratasse de restos, resquícios e ruínas da história quando Hegel (e Marx?) falavam do seu movimento de realização.
Sem dúvida, Benjamin foi um dos primeiros pensadores de esquerda a tentar elaborar, levando a sério a experiência do fascismo, uma teoria da história que não repouse mais sobre a (tão bela!) hipótese, iluminista, hegeliana e marxista, de um desenvolvimento temporal necessário em direção ao "progresso". Essa tentativa, até hoje na ordem do dia, acarreta uma série de dificuldades em relação ao modelo teórico herdado de Marx; leva à necessidade de "ler o texto da história" com recursos emprestados, por que não, à teologia, sim, e à psicanálise também.
Não só porque teologia e psicanálise fornecem imagens e conceitos que poderiam ter uma carga emancipatória, como o messianismo da Cabala ou a crítica à civilização de Freud. Mas também porque oferecem práticas de leitura e de interpretação que colocam em questão a evidência de um sentido unívoco (aliás, a importância do "Trauerspiel" e da alegoria barrocos para Benjamin parece surgir do mesmo questionamento).
As hesitações e paradoxos do pensamento benjaminiano não precisam, portanto, ser atenuados ou silenciados; pelo contrário, devem ser mostrados e refletidos, já que apontam não só para dificuldades pessoais de um autor, mas também para as dificuldades de uma reflexão genuinamente engajada, autenticamente de esquerda, mas não determinista: exigência profundamente atual!
Assim, não acho feliz citar, por exemplo, só uma parte da famosa "Tese Sete" (das teses "Sobre o Conceito de História"), como o faz Buck-Morss, na qual os "bens culturais" são comparados por Benjamin a documentos da barbárie e ao "botim" ("Beute") carregado junto do cortejo triunfal dos vencedores -e não citar também a "Tese Quatro", na qual Benjamin afirma que as produções espirituais não podem ser reduzidas à representação do "botim" (mesma palavra: "Beute") que cabe ao vencedor, mas que devem ser vistas também como sinais de determinação, de humor, de astúcia, de coragem contra a dominação.
Tal procedimento unilateral não pode ser justificado por nenhuma militância da interpretação; ele vai, até, contra a necessidade política de uma urgente renovação da reflexão sobre cultura por parte da esquerda atual.
Uma última observação: a tradução de Ana Luiza Andrade é muito competente (que trabalho!). Os raros deslizes me parecem provir das dificuldades de tradução das próprias traduções de Benjamin usadas por Buck-Morss, isto é, da dificuldade de transpor vários conceitos alemães específicos do pensamento benjaminiano (alguns exemplos: "Urgeschichte", "proto-história", traduzido por "ur-história" ou "Urphänomen", "protofenômeno", traduzido por "ur-fenômeno", "Eingedenken", "rememoração", traduzido às vezes como "memória", outras como "lembrança", "grübeln", "matutar", traduzido por "ponderar").
Concluo, então, esta breve resenha com o seguinte apelo: que a publicação futura em português do "Passagen-Werk" seja a ocasião para amadores e amantes, conhecedores e especialistas de Walter Benjamin iniciarem uma discussão amigável, mas rigorosa e filológica, sobre alguns desses conceitos e imagens-chave do seu pensamento, palavras que nos dão e ainda nos darão muito o que pensar.


Jeanne Marie Gagnebin é professora de filosofia na Pontifícia Universidade Católica (SP), de literatura na Unicamp e autora de, entre outros, "História e Narração em Walter Benjamin" (Perspectiva).

Jeanne-Marie Gagnebin é professora do departamento de filosofia da PUC-SP.
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