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Murilo Marcondes de Moura - 116 - Dezembro de 2014
Crítica literária e criação
O belo, o sublime, o humor, o erotismo em suas determinações históricas
Foto da capa do livro O Guardador de Segredos
O Guardador de Segredos
Autor: Davi Arrigucci Jr.
Editora: Companhia das Letras - 272 páginas
Foto do(a) autor(a) Murilo Marcondes de Moura

“É toda a minha vida que joguei”. O conhecido verso de Drummond, presente em poema que celebra a conquista de sua maturidade criadora, ocorreu-me após a leitura de O guardador de segredos, novo livro de crítica de Davi Arrigucci Jr. Não apenas por ser o mais recente de um crítico de atuação já duradoura (quase quarenta anos nos separam de seu primeiro livro, O escorpião encalacrado), e dos mais destacados entre nós, mas por compor com os anteriores, inclusive com os dois livros de ficção, uma espécie de mitologia pessoal, ao menos uma unidade flagrante. Que unidade é essa?

Comecemos por identificar o tom dominante de seus escritos – afirmativo e obstinado, advindo de sua posição diante das obras e assuntos escolhidos – aderente, em relação a sua beleza e complexidade, pertinaz, diante do enigma que lhes é constitutivo. 

Fundamental aqui é a visão da dificuldade imanente às grandes obras, a cuja exposição toda demora parece insuficiente ao crítico, sempre disposto a prolongar a tarefa da compreensão, que ele considera, a rigor, inesgotável.  Esse adiamento metódico, a fim de abarcar o máximo possível da obra em estudo, esse “desejo irrefreado de ir até o limite da visão”, segundo suas próprias palavras, no prefácio ao livro Achados e perdidos, já em 1979, imprime ao seu texto crítico um andamento que Alfredo Bosi, com humor mas com muita acuidade, caracterizou como o de um “andante sostenuto”.

Esse elã, espécie de entrega plena do autor a sua atividade, parece escapar ao enquadramento meramente profissional e decerto tem raízes mais profundas. Davi Arrigucci Jr. declarou algumas vezes que projetava, num primeiro momento, ser escritor e filólogo. Esse projeto, concretizado pela tardia publicação de duas novelas, ajuda a explicar algo: criação e crítica acham-se imbricadas. Para ele, as obras literárias têm uma grandeza vital e o ofício tanto do crítico quanto do criador tocam necessariamente o que há de mais essencial na experiência humana.  É o que podemos ler ainda no prefácio ao livro de 1979, “tentativa de compreensão disso que nos ultrapassa, desafia e ilumina”; em Ugolino e a perdiz, o narrador, antes de empreender a narrativa de uma insólita caçada de Ugolino, frisa que essa história “resumia o impulso de viver que o animava, o que é sempre inexplicável, mas dá vontade de entender”; em O rocambole, a propósito de certa personagem, o narrador afirma, “tudo neste mundo tem uma história, cujas causas podem ser investigadas até se perderem de vista”.

Essa alta visão da literatura abrange muita coisa: o sublime, o sentimento do belo, certamente, mas também o humor, o erotismo, entre outras dimensões, consideradas todas desde sempre em suas determinações históricas.

Distante de qualquer neutralidade, já que aquilo de que se diz é vital e se mantém com ele pacto estreito, o estilo crítico de Davi Arrigucci Jr. é inconfundível, embora sem as idiossincrasias de outros ótimos críticos nossos – Mário de Andrade por excelência.  A escolha vocabular, a elaboração da sintaxe são alguns dos procedimentos mais visíveis em que se busca atrelar precisão conceitual e sugestão poética. O trabalho de minúcia com a linguagem, abre-se, por sua vez, para a forma maior do ensaio no acercamento desse outro sempre esquivo. Mais ou menos como Ugolino diante da perdiz: “Precisava imaginar um anel de outro tipo, mais vasto, como os múltiplos tentáculos de um polvo, fechando o cerco sobre ela (...) Valia a pena tentar esse tipo de anel galopante do fundo do mar em terra firme”, em que o engenho extravagante do imaginado dá a medida da dificuldade do empreendimento.

Todo esse lastro impregna o novo livro, O guardador de segredos, que, desde o título, desentranhado de um verso de Sebastião Uchoa Leite, retoma questões fundamentais para o crítico: o “sublime oculto”, o “enigma”. Cabe identificar, também, a longa fidelidade à literatura brasileira e, ainda que em menor escala, à literatura hispano-americana.  Igualmente notável, é a variedade de obras e gêneros estudados, variedade esta que impôs a organização do livro em três partes maiores, relativas respectivamente à poesia, à prosa, à crítica, seguidas de um excelente excurso sobre o cinema de Hitchcock, em especial sobre o filme Frenesi, em que o crítico literário nada de braçada ao revisitar, amparado por um sólido sentimento da forma, temas que lhe são caros, como o humor negro, o erotismo, a caça...

No que concerne à poesia, são estudados João Cabral de Mello Neto, a partir de um enfoque fecundo do conceito de trabalho em sua poética, Drummond, Ferreira Gullar, Cecília Meireles; mas a novidade maior é a atenção dirigida a poetas menos canônicos, e também mais próximos da geração do próprio crítico: Roberto Piva e Sebastião Uchoa Leite, ambos esquisitos, mas de aproximação improvável, de linhagens opostas mesmo. Possivelmente, os estudos sobre esses dois poetas foram aqueles em que o crítico enfrentou as maiores dificuldades nesse setor do livro. 

Roberto Piva é abordado em dois ensaios. Parte-se do reconhecimento de seu “individualismo anárquico” e da natureza informe ou caótica de sua poesia, mas o propósito é compreender a “novidade da mistura incandescente que ele inventou, sem reduzi-la ao sabido”.  Os diálogos de Piva com a poesia internacional, Whitman e Rimbaud, os surrealistas, a geração beat, entre outros, são de novo sublinhados, assim como com a prata da casa, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, mas logo ultrapassados, pois, num primeiro instante, indicariam apenas o enquadramento mais geral do poeta na modernidade.  O que pode definir para o crítico a particularidade de Roberto Piva é o modo de lidar com a “matéria” brasileira – “componentes heterogêneos e por vezes disparatados”, que o sujeito lírico vai “aglutinando” em seu caminhar pela cidade de São Paulo; aglutinando, mas transfigurando obsessivamente, de modo que o resultado é a mescla entre a notação bruta e o impulso para o sublime. Nesse sentido, as aproximações com Álvares de Azevedo e Mário de Andrade avançam um pouco mais, inclusive pelo espaço comum da cidade de São Paulo, e o crítico surpreende analogias tanto com o “individualismo dramático” do poeta romântico como com a “poesia itinerante” do poeta modernista, conforme formulações de Antonio Candido. Ao situar Roberto Piva na tradição da poesia brasileira, o próprio crítico também se posiciona diante da tradição da crítica brasileira. 

Na parte do livro relativa à crítica, além de Antonio Candido, Davi Arrigucci Jr. aborda outros dois autores, Gilda de Mello e Souza e Marlise Meyer. Há também uma longa e importante entrevista em que o autor discorre sobre a interpretação das obras literárias.

Quanto à prosa, são discutidos, entre os livros brasileiros, O quinze, Os ratos, Grande sertão: veredas e Faca, de Ronaldo Correia de Brito.  O texto sobre o romance de Guimarães Rosa retoma outro, já clássico, maior e talvez mais completo (“O mundo misturado”), mas contém formulações diferentes e fascinantes, além da marca da oralidade, que evoca o grande professor.  Ainda no âmbito da prosa brasileira, é assinalada a progressiva internalização do ponto de vista do outro de classe, do pobre, desde O quinze, passando por Vidas secas, até Grande sertão: veredas. Esse diálogo se estende à obra extraordinária de Juan Rulfo, comparada à de Guimarães Rosa, sobretudo Pedro Páramo, com seu mosaico de vozes que nos falam “desde la muerte”, na terra devastada do México pós-revolução. Completam esse setor, estudos sobre Felisberto Hernández e Jorge Luiz Borges/Bioy Casares, este dos maiores da coletânea.

Assim como é visível o diálogo entre os diferentes ensaios do livro, é claríssima a trama que se estabelece entre este e os demais livros de Davi Arrigucci Jr., compondo um conjunto que é dos mais importantes de nossa crítica em qualquer tempo. 

Murilo Marcondes de Moura é professor de literatura brasileira na USP
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