Crescendo no Universo
RENATO DA SILVA QUEIROZ
Os criacionistas, adversários incansáveis da teoria da evolução, mantêm suas armas permanentemente apontadas para Darwin e seus sucessores. E não hesitam em usá-las, disparando projéteis sob a forma dos mais diversos argumentos, dentre eles o lugar-comum de que a teoria da evolução não seria cientificamente defensável. A complexidade da vida é tamanha, e tão sincronizada, que não se pode admitir que seja fruto de um processo aleatório, garantem eles, para em seguida postular a necessidade de Deus e seu papel de coordenador dessa perfeição.
Afortunadamente, os adeptos da teoria da evolução reúnem em suas fileiras a própria ciência e defensores brilhantes, com destaque para Richard Dawkins, cujos livros "O Gene Egoísta" (Itatiaia-Edusp), "O Relojoeiro Cego" (Edições 70, Portugal) e "Um Rio que Saía do Éden" (Rocco) já estavam disponíveis em língua portuguesa. Agora, com a tradução de "A Escalada do Monte Improvável", a obra desse cientista, regente da recém-criada cátedra de compreensão pública da ciência, em Oxford, torna-se ainda mais acessível ao leitor brasileiro.
Dawkins define-se como um darwinista inveterado. Nessa medida, esmera-se em demonstrar que a má compreensão do darwinismo dá margem a graves equívocos, o principal deles consistindo em confundi-lo com uma teoria do puro acaso. Lembrando que uma das fases do processo darwiniano -a mutação- costuma ser realmente aleatória, Dawkins ressalta, contudo, a não-casualidade da seleção natural, melhor definida como a sobrevivência lenta, cumulativa, passo a passo e não casual de variantes surgidas aleatoriamente. Em outras palavras: "Toda geração é uma peneira de genes", a seleção natural impulsionando a evolução no sentido do aperfeiçoamento.
A OBRA A Escalada do Monte Improvável - Uma Defesa da teoria da Evolução Richard Dawkins Tradução de Suzana Sturlini Couto Companhia das Letras (tel. 011/866-0801) 372 págs. R$ 27,50 |
Para demonstrar e ilustrar o mecanismo da seleção, o autor arquiteta um engenhoso procedimento, produzindo, graças à informática, criaturas virtuais chamadas "biomorfos" computadorizados. Nesse experimento, são simulados processos reprodutivos de animais e plantas. Instruindo-se o computador para prever a hereditariedade e a ocorrência de mutações aleatórias, é deslumbrante a diversidade de formas que se podem observar no decorrer de umas poucas centenas de gerações reprodutivas. Dado que os biomorfos ganham vida na realidade virtual do computador, torna-se possível viajar, numa rapidez vertiginosa, ao longo de muitas gerações do processo reprodutivo.
O experimento indicado acima resume-se à simulação do processo de seleção artificial. Um passo adiante consiste em requintar o procedimento, alterando-se o software para que simule a própria seleção natural, semelhante à artificial, mas desprovida das interferências de um selecionador humano. Teias de aranha, observa Dawkins, prestam-se muito bem a essa operação, levada de fato a efeito numa tela bidimensional de computador. Os resultados daí obtidos são ainda mais fascinantes e estão descritos em detalhes no denso capítulo intitulado "Algemas de Seda".
Dawkins retoma nesse livro alguns de seus temas prediletos, a saber, a constatação de que a natureza é destituída de qualquer propósito (nós, os humanos, é que temos o propósito no cérebro) e a formulação segundo a qual todos os seres vivos, mesmo os mais complexos, são veículos-robôs por meio dos quais os genes sobrevivem e viajam ao longo de sucessivas gerações. A tese fundamental da obra, todavia, afirma ser impossível alcançar precipitadamente níveis evolutivos mais altos. Isso significa que a evolução ocorre gradualmente, e é justamente assim, passo a passo, que os problemas considerados insolúveis nesse contexto podem ser superados.
À procura de reforço para essa ênfase no gradualismo, tese por sinal antagônica à das macromutações, Dawkins vale-se sobretudo da evolução do olho, pois, à primeira vista, não teria havido tempo suficiente para o desenvolvimento de órgão tão complexo a partir de algum aparato rudimentar de pigmento fotossensível. Na verdade, corrige o autor, essa crença é improcedente, pois nada evolui com tanta dificuldade quanto se imagina, e evoca, a propósito, uma outra simulação em computador conduzida por dois biólogos suecos. De acordo com tal experimento, estimou-se que bastariam 364 mil gerações -menos de meio milhão de anos- para um eficiente olho de peixe, provido de lente, poder evoluir. Portanto essa e outras evidências conspiram contra a alegação criacionista da escassez de tempo para que o olho fosse produzido pelo mecanismo da evolução via seleção natural, ademais dos embaraços que criam sobretudo para a própria teoria das macromutações.
É assim, por via das mutações e da seleção natural, que os seres vivos, gradual e cumulativamente, evoluem durante milhões de anos, sem grandes saltos, escalando passo a passo as suaves rampas do "monte improvável". É esse o caminho que conduz à complexa e riquíssima diversidade da vida, contornando os acidentados penhascos situados na outra face da montanha.
Para se atingir o grau de rigor alcançado por Dawkins neste livro tão bem traduzido e ilustrado, é imprescindível ter em mente o preceito de Charles Darwin. Ao final de um esboço autobiográfico escrito em 1881, o autor de "A Origem das Espécies" nos dá a dica: "Sistematicamente, evito colocar meu pensamento na religião quando trato de ciência, assim como o faço em relação à moral, quando trato de assuntos referentes à sociedade".
Renato da Silva Queiroz é professor do departamento de antropologia da USP.