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Renato da Silva Queiroz - 42 - Setembro de 1998
Crescendo no Universo
Foto do(a) autor(a) Renato da Silva Queiroz

Crescendo no Universo

RENATO DA SILVA QUEIROZ

Os criacionistas, adversários incansáveis da teoria da evolução, mantêm suas armas permanentemente apontadas para Darwin e seus sucessores. E não hesitam em usá-las, disparando projéteis sob a forma dos mais diversos argumentos, dentre eles o lugar-comum de que a teoria da evolução não seria cientificamente defensável. A complexidade da vida é tamanha, e tão sincronizada, que não se pode admitir que seja fruto de um processo aleatório, garantem eles, para em seguida postular a necessidade de Deus e seu papel de coordenador dessa perfeição.
Afortunadamente, os adeptos da teoria da evolução reúnem em suas fileiras a própria ciência e defensores brilhantes, com destaque para Richard Dawkins, cujos livros "O Gene Egoísta" (Itatiaia-Edusp), "O Relojoeiro Cego" (Edições 70, Portugal) e "Um Rio que Saía do Éden" (Rocco) já estavam disponíveis em língua portuguesa. Agora, com a tradução de "A Escalada do Monte Improvável", a obra desse cientista, regente da recém-criada cátedra de compreensão pública da ciência, em Oxford, torna-se ainda mais acessível ao leitor brasileiro.
Dawkins define-se como um darwinista inveterado. Nessa medida, esmera-se em demonstrar que a má compreensão do darwinismo dá margem a graves equívocos, o principal deles consistindo em confundi-lo com uma teoria do puro acaso. Lembrando que uma das fases do processo darwiniano -a mutação- costuma ser realmente aleatória, Dawkins ressalta, contudo, a não-casualidade da seleção natural, melhor definida como a sobrevivência lenta, cumulativa, passo a passo e não casual de variantes surgidas aleatoriamente. Em outras palavras: "Toda geração é uma peneira de genes", a seleção natural impulsionando a evolução no sentido do aperfeiçoamento.


A OBRA
A Escalada do Monte Improvável - Uma Defesa da teoria da Evolução
Richard Dawkins
Tradução de Suzana Sturlini Couto
Companhia das Letras
(tel. 011/866-0801)
372 págs. R$ 27,50



Para demonstrar e ilustrar o mecanismo da seleção, o autor arquiteta um engenhoso procedimento, produzindo, graças à informática, criaturas virtuais chamadas "biomorfos" computadorizados. Nesse experimento, são simulados processos reprodutivos de animais e plantas. Instruindo-se o computador para prever a hereditariedade e a ocorrência de mutações aleatórias, é deslumbrante a diversidade de formas que se podem observar no decorrer de umas poucas centenas de gerações reprodutivas. Dado que os biomorfos ganham vida na realidade virtual do computador, torna-se possível viajar, numa rapidez vertiginosa, ao longo de muitas gerações do processo reprodutivo.
O experimento indicado acima resume-se à simulação do processo de seleção artificial. Um passo adiante consiste em requintar o procedimento, alterando-se o software para que simule a própria seleção natural, semelhante à artificial, mas desprovida das interferências de um selecionador humano. Teias de aranha, observa Dawkins, prestam-se muito bem a essa operação, levada de fato a efeito numa tela bidimensional de computador. Os resultados daí obtidos são ainda mais fascinantes e estão descritos em detalhes no denso capítulo intitulado "Algemas de Seda".
Dawkins retoma nesse livro alguns de seus temas prediletos, a saber, a constatação de que a natureza é destituída de qualquer propósito (nós, os humanos, é que temos o propósito no cérebro) e a formulação segundo a qual todos os seres vivos, mesmo os mais complexos, são veículos-robôs por meio dos quais os genes sobrevivem e viajam ao longo de sucessivas gerações. A tese fundamental da obra, todavia, afirma ser impossível alcançar precipitadamente níveis evolutivos mais altos. Isso significa que a evolução ocorre gradualmente, e é justamente assim, passo a passo, que os problemas considerados insolúveis nesse contexto podem ser superados.
À procura de reforço para essa ênfase no gradualismo, tese por sinal antagônica à das macromutações, Dawkins vale-se sobretudo da evolução do olho, pois, à primeira vista, não teria havido tempo suficiente para o desenvolvimento de órgão tão complexo a partir de algum aparato rudimentar de pigmento fotossensível. Na verdade, corrige o autor, essa crença é improcedente, pois nada evolui com tanta dificuldade quanto se imagina, e evoca, a propósito, uma outra simulação em computador conduzida por dois biólogos suecos. De acordo com tal experimento, estimou-se que bastariam 364 mil gerações -menos de meio milhão de anos- para um eficiente olho de peixe, provido de lente, poder evoluir. Portanto essa e outras evidências conspiram contra a alegação criacionista da escassez de tempo para que o olho fosse produzido pelo mecanismo da evolução via seleção natural, ademais dos embaraços que criam sobretudo para a própria teoria das macromutações.
É assim, por via das mutações e da seleção natural, que os seres vivos, gradual e cumulativamente, evoluem durante milhões de anos, sem grandes saltos, escalando passo a passo as suaves rampas do "monte improvável". É esse o caminho que conduz à complexa e riquíssima diversidade da vida, contornando os acidentados penhascos situados na outra face da montanha.
Para se atingir o grau de rigor alcançado por Dawkins neste livro tão bem traduzido e ilustrado, é imprescindível ter em mente o preceito de Charles Darwin. Ao final de um esboço autobiográfico escrito em 1881, o autor de "A Origem das Espécies" nos dá a dica: "Sistematicamente, evito colocar meu pensamento na religião quando trato de ciência, assim como o faço em relação à moral, quando trato de assuntos referentes à sociedade".

 


Renato da Silva Queiroz é professor do departamento de antropologia da USP.

Renato da Silva Queiroz é professor do departamento de antropologia da USP.
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