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Robert Wegner - 116 - Dezembro de 2014
Compreensão e revolta
Mais cartas de Mário de Andrade: “cansado de tanta guerra, crescido de coração”?
Foto da capa do livro Câmara Cascudo  Mário de Andrade: Cartas 1924-1944
Câmara Cascudo Mário de Andrade: Cartas 1924-1944
Autor: Mário de Andrade e Luis da Camara Cascudo
Organização: Marcos Antonio de Moraes
Editora: Global - 384 páginas
Foto do(a) autor(a) Robert Wegner

À copiosa correspondência publicada de Mário de Andrade (1893-1945) vêm se juntar suas cartas trocadas com Luís da Câmara Cascudo (1898-1986) e com Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982). O livro Câmara Cascudo e Mário de Andrade abrange o período entre 1924 e 1944, somando 159 correspondências organizadas por Marcos Antonio de Moraes, que as comenta por meio de notas que trazem perfis dos autores e referências ou mesmo transcrições de artigos e livros citados pelos missivistas. As notas de Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda: correspondência já são elas próprias um exercício de interpretação a preparar o estudo de maior fôlego que se segue à correspondência. Diante da relativa limitação das cartas, que não ultrapassam o número de 31, escritas entre os anos de 1922 e 1944, Pedro Meira Monteiro procura comprovar que seus indícios são suficientes para permitir não apenas um estudo da relação estabelecida entre Mário e Sérgio, como uma reinterpretação do modernismo. Desse modo, o organizador/autor escreve um sofisticado estudo sobre o modernismo e oferece um quadro que dá inteligibilidade àqueles documentos esparsos.

Com suas características próprias, os organizadores empreenderam um trabalho sólido. Registro, contudo, que a edição das cartas com Câmara Cascudo se ressente de um índice onomástico, imprescindível em livros de correspondências, e ressalto que as duas publicações contam com a reprodução de artigos importantes dos missivistas, que auxiliam uma leitura compreensiva das cartas. Autores, conjuntos documentais e tratamentos tão diferentes nos fazem perceber alguns Mários entre os trezentos que ele era e, fundamentalmente, um autor em movimento.

Em uma das suas primeiras cartas a Cascudo, em junho de 1925, Mário se apresenta com conhecido poema, dizendo que, não importa se está em sua escrivaninha na Rua Lopes Chaves, é tão brasileiro quanto o seringueiro do Norte (Carta 7), assim como, poderíamos completar, quanto aquele que vivia em Natal com suas pesquisas e conhecimento da cultural popular. O outro lado da mesma moeda está nas observações críticas que, meses mais tarde, Mário tece ao programa do Primeiro Congresso Regionalista do Nordeste que Cascudo lhe enviara, argumentando que a ideia regionalista não lhe agrada, pois que “desintegrante da ideia de nação” (Carta 13). Nos dois casos, Mário pretende se pensar como e construir o brasileiro.

Mário e Sérgio

Entre março de 1926 e fevereiro de 1928, há um vazio na correspondência entre Mário e Sérgio. Este silêncio se seguira ao explosivo artigo “O lado oposto e outros lados”, publicado em outubro de 1926, onde Sérgio criticara Mário, colocando-o ao lado dos adeptos da “construção” e o aproximando de Alceu de Amoroso Lima, que, em 1929, anunciaria sua conversão ao catolicismo. Monteiro reforça que Sérgio Buarque não via Mário de Andrade a caminho dessa construção por meio da religião que buscava uma ordem “senão de outro mundo, pelo menos do Velho Mundo”, mas entrevia em Mário a intenção da construção por meio da cultura nacional, uma cultura que impusesse uma ordem.

No mesmo ano em que Alceu se convertia ao Catolicismo, Mário publicava um artigo sobre Jesus, “Morto e Deposto”, de onde se depreende sua religiosidade como algo absolutamente íntimo. Para ele, o Catolicismo não mais poderia ser o sustentáculo de uma civilização: “Jesus morreu pra nos salvar da terra, escreve, não pra nos salvar num pedaço de terra”. O artigo incomoda Câmara Cascudo (Carta 57). Para ele, a cultura popular e o cristianismo se subsumiam, e o folclore dava sentido à nação e ao intelectual que se pusesse a ouvir o povo com naturalidade. Mário não deixou de se encantar com esta postura ingênua diante do popular e isto marcou sua amizade com o potiguar.

As cartas trocadas entre Mário e Cascudo nos anos 1930 são notórias para uma sociologia dos intelectuais. Mário manifesta todo seu ardor com a revolta de São Paulo, em 1932, enquanto o potiguar pede “uma medalha paulista do movimento constitucionalista” (Carta 100) e argumenta que a rebelião paulista representava autonomia também para outros Estados. Mário não se conforma com a perseguição aos paulistas após a derrota e manifesta seu descontentamento com os nordestinos que ocupavam os cargos no governo paulista (Carta 101). Cascudo compreende a indignação do amigo.

Em junho de 1937, Cascudo fala de dificuldades financeiras, pedindo a intermediação de Mário para que possa escrever artigos para jornais e revistas de São Paulo. O amigo não deixa o bilhete sem resposta e abre possibilidades para Cascudo, mas, ao mesmo tempo, toma a liberdade de avaliar sua produção escrita e seus métodos de trabalho: falta-lhe “paciência” e “medida”, tem um “jeito anticientífico do estudo de você, a ausência de dados sobre como foram colhidos os dados, de quem etc” (Carta 131).

Nessa época, à frente do Departamento de Cultura, Mário estava empreendendo, com o auxílio de Dina Dreyfus, curso para a formação de etnógrafos. Nesse contexto, para Mário, Cascudo deixara de ter valor como alguém que portava em si próprio a cultura popular. Esta, agora, só poderia ser mediada pela pesquisa científica. É desse mundo da pesquisa científica institucionalizada que são escritas as últimas correspondências entre Mário e Sérgio, em que o primeiro, pesquisando folclore, pede auxílio ao segundo, já o reconhecendo como um historiador profissional (Carta 26).

No fim da década de 1920, Mário quis comprar uma pequena casa em Natal, chegando a supor que profetizara o fato quando escrevera que “meu coração caiu no Nordeste e se Deus me der dinheiro é lá que hei-se morrer!” (Carta 64). O negócio malogrou em 1930. Por outro lado, poucos meses antes de morrer, Mário comprou um sítio em São Roque que pertencera ao bandeirante Fernão Paes de Barros. Mário faz a doação ao SPHAN, “mas – escreve a Sérgio em dezembro de 1944 – em minha vida o sítio será colônia de férias pra você com Maria Amélia e herdeiros”. O tempo foi curto, mas Mário escolheu onde repousar.

Mário Andrade e Sérgio Buarque de Holanda
Organização: Pedro Meira Monteiro
Editora: Companhia das Letras - 431 páginas
Robert Wegner Robert Wegner é professor do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (COC/Fiocruz)
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