Ciência e democracia
Ensaios sobre a realidade dos estudos científicos
HUGH LACEY
A Esperança de Pandora
Bruno Latour
Tradução: Gilson César Cardoso de Sousa
Edusc (Tel. 0/xx/14/235-7111)
372 págs., R$ 35,00
Filósofo e antropólogo francês, Bruno Latour é bem conhecido por suas obras polêmicas anteriores, como "A Vida de Laboratório" (ed. Relume-Dumará), que escreveu com Steve Woolgar, e "Ciência em Ação" (ed. Unesp). O livro "A Esperança de Pandora", publicado originalmente em inglês em 1999, confirma sua reputação de ser o mais brilhante expoente do emergente campo dos estudos sociais da ciência. Demonstra também que os estereótipos comuns desse campo não se aplicam ao próprio Latour.
Os estudos sociais da ciência, dizem os críticos, assumem "que a ciência é socialmente construída; que tudo é discurso; que não existe uma realidade exterior; que a ciência não tem conteúdo conceitual; que quanto mais ignorante for a pessoa, melhor; que tudo, no fundo, é político; que a subjetividade deve mesclar-se à objetividade; que os cientistas mais fortes, viris e cabeludos sempre vencem, se dispõem de "aliados" suficientes nos lugares certos; e outras enormidades ("other nonsense')".
Muitos críticos reagiram com enfáticas reafirmações da objetividade e neutralidade da ciência; para eles, a ciência, em virtude de seus métodos de obtenção de conhecimento, é a detentora de uma racionalidade superior, é a garantia de "progresso". Eles se inclinam a ver as tentativas de estudar sociológica, antropológica e historicamente as atividades e instituições científicas como sendo motivadas por sentimentos contrários à ciência e ao progresso, que tomam o conhecimento científico como objeto não de uma avaliação racional, conduzida dentro de práticas empíricas e experimentais bem estabelecidas, mas de uma explicação social.
Não há nenhum traço de atitude "anticientífica" neste livro. Pelo contrário, é com cuidado e admiração que Latour submete vários episódios de investigação científica a um exame detalhado, tomando-os (pelos olhos treinados de antropólogo) em sua complexidade e concretude. Ele não põe em dúvida a confiabilidade do conhecimento científico bem estabelecido. Mas, em vez de perguntar: "Que tipos de conexão entre a teoria e os dados empíricos asseguram a objetividade do conhecimento científico?", a principal questão de Latour pode ser enunciada como: "O que deve ser feito -por quem e para quem, com que meios de interagir com objetos naturais, com que formas de transformá-los, com que aparelhos de laboratório, com a colaboração de quem e de quais instituições- para obter conhecimento científico confiável?".
Ele entende que a primeira questão não pode ser satisfatoriamente respondida sem se considerar o fato de que a obtenção de conhecimento científico confiável é o produto final de um complexo curso de ação que envolve numerosas e variadas interações com outros seres humanos, instituições e coisas e profundas transformações das coisas e da própria sociedade. Essa é a tese filosófica central em sua versão dos estudos sociais da ciência.
A segunda questão não conduz, é claro, a uma única resposta, mas ao esboço de estudos de caso que ilustram a riqueza e a variedade das práticas científicas. O primeiro deles trata de uma investigação, realizada em conjunto por pesquisadores brasileiros e franceses de botânica e ciências do solo, para saber se a mata está avançando sobre o cerrado ou se, inversamente, é o cerrado que avança sobre a mata, em uma região de Rondônia. Outros estudos dizem respeito à descoberta da possibilidade de fissão nuclear controlada, pelo físico francês Frédéric Joliot no final dos anos 30, e a algumas descobertas de Pasteur sobre a fermentação e os micróbios. São estudos de caso muito originais e interessantes, que proporcionam rico material para pensar, independentemente de apoiarmos ou não a tese filosófica de Latour.
Imagens de ciência
Embora não seja "anticientífica", a visão de Latour opõe-se a uma certa imagem de ciência amplamente endossada na comunidade científica e nas instituições cujos interesses são atendidos pelos desenvolvimentos da "tecnociência". De acordo com essa imagem, a ciência moderna descobriu que a natureza é governada por leis impessoais; e é isso que não apenas torna a natureza racionalmente inteligível mas também requer que as ações de pessoas razoáveis sejam moldadas pelos resultados (objetivos) da pesquisa científica, já que supostamente o conhecimento da natureza impessoal é neutro em relação aos valores que podem ser mantidos por pessoas razoáveis. É essa imagem que confere credibilidade à separação entre as duas questões.
Latour propõe uma imagem alternativa: a ciência como "a aquisição de acesso, mediante experimentos e cálculos, a entidades que a princípio não têm as mesmas características dos seres humanos. A ciência lida com entidades não-humanas que, sendo a princípio estranhas à vida social, são lentamente socializadas em nosso meio por meio dos canais dos laboratórios, expedições, instituições e assim por diante. Pasteur, por exemplo, não "constrói" os seus micróbios; pelo contrário, seus micróbios e a sociedade francesa passam, por meio de sua mediação comum, de um coletivo composto de, digamos, x entidades para outro, composto de muito mais entidades, incluindo os micróbios".
Em apoio a essa imagem alternativa, são apresentados estudos de caso em que as velhas distinções entre ciência "pura" e "aplicada" pouco significam e em que não se pode geralmente esperar a realização da neutralidade, isto é, a aplicabilidade do conhecimento científico a serviço de valores distintos daqueles que tiveram papel nas práticas de pesquisa que produziram o conhecimento.
Latour sustenta que a imagem da ciência como conhecimento objetivo, impessoal, cujas credenciais racionais (autenticadas apenas pelos juízos de cientistas profissionais reconhecidos) são abstraídas do contexto social, das vidas humanas e das prioridades institucionais, representa erroneamente os fenômenos da prática científica; e assim auxilia a ocultar os vínculos essenciais que a ciência dominante mantém com a tecnociência e então com poderosas instituições militares, governamentais e industriais, cujas efetivas contribuições são frequentemente cruciais para se obter conhecimento científico confiável.
Tal imagem também legitima a separação entre a conduta científica e a perspectiva democrática. De acordo com essa imagem, a democracia não tem nada a ver com as credenciais do conhecimento científico. Apenas os dados empíricos e os critérios racionais são considerados relevantes; as opiniões das pessoas são irrelevantes. Penso que isso está certo, se devidamente compreendido.
No entanto, se Latour estiver certo, muito terá que ser feito antes de se obter algum item de conhecimento científico. Dependendo do que for feito em laboratórios, pesquisas de campo etc. e de quais forem os colaboradores institucionais, diferentes objetos serão conhecidos -por exemplo, a fissão nuclear controlada ou os mecanismos para armazenar energia solar, as culturas transgênicas ou os agroecossistemas produtivos sustentáveis. O que é feito reflete inevitavelmente todo tipo de interesses econômicos, políticos e morais. Assim não há mistério algum quando o conhecimento científico não se revela neutro, quando serve a interesses tecnocientíficos em vez de atender a interesses democráticos mais amplos.
Latour tenciona que sua imagem de ciência seja mais precisa e, ao mesmo tempo, torne possível pensar seriamente o papel da ciência numa democracia. Seus argumentos merecem ser ampla e criticamente discutidos.
Hugh Lacey é professor de filosofia em Swarthmore College (EUA) e autor de "Valores e Atividade Científica" (Discurso Editorial).
Tradução de Caetano Ernesto Plastino.