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Olgária Chaim Feres Matos - 46 - Janeiro de 1999
As lembranças e os dias
Foto do(a) autor(a) Olgária Chaim Feres Matos

As lembranças e os dias

OLGÁRIA CHAIN FERES MATOS

Essas "Memórias" -que Betty Loeb Greiber, Lina Saigh Maluf e Vera Cattini Mattar reuniram neste belo trabalho- nos remetem, entre outros, a "Memória de Velhos", de Ecléa Bosi, "Ruídos da Memória", de Marina Maluf, "O Brasil não é Longe Daqui", de Flora Sussekind. O "estilo autobiográfico", entre a ciência e a ficção, não visa uma história universalizável pelo discurso "factual e objetivo" do conhecimento da história. Surpreende o Brasil do emigrante e dos mascates -daqueles que se despedem de paisagens familiares, revestidas de experiências e esperanças.
Por um efeito de anamorfose ou mesmo de forclusão, surge a personagem do mascate, identidade originária dos primeiros imigrantes. Aproximando-se da visão de um Brasil "país do futuro", os depoimentos são sóbrios ao esquecer o drama da separação. São raros os momentos de nostalgia: "Eu chorava demais de saudade, nossa Senhora, como eu chorei! É por isso que eu digo, o imigrante morre mais de uma vez: a gente morre a verdadeira morte uma vez, mas o imigrante morre mais de uma vez, quando deixa a família, pais e irmãos".
Exílio até certo ponto voluntário, o dos sírios (libaneses, jordanianos, palestinos) que chegavam por aqui, no final do século passado e inícios deste, para fugir, talvez, da violência do colonizador turco e da intolerância muçulmana. Esta razão migratória se completa com aquela que diz: "Ninguém veio por conta do governo daqui como os que vieram trabalhar na agricultura: poloneses, italianos, portugueses, espanhóis. Não. Tudo por conta própria. Espontânea, particular".
"Memórias da Imigração" é como "O Brasil não é Longe Daqui", mas ao revés. Primeiro verso de uma canção popular alemã -ele continha um duplo sentido-, "convite à imigração", mas também "amargo paradoxo (...) da observação expressa por alguém já no país em questão e que não reconhece nele a paisagem anunciada" (Flora Sussekind, Companhia das Letras, pág. 21). Propaganda emigratória, ela acaba revelando o descompasso entre aquilo que se espera do Brasil e o que se vive de fato, país de epidemias, de instabilidade política -lembradas nos levantes de 1924, da Revolução de 30, do Movimento de 32, por exemplo. E o trabalho incerto em terras estrangeiras. Os relatos, neste livro, constroem e preservam "avant la lettre" o Brasil mítico de Stefan Zweig, "Brasil, País do Futuro", de 1941: "Aqui a política com todas as perfídias", anota Zweig, "ainda não é o ponto cardeal da vida privada, não é o centro de todo o pensar e sentir. Logo que alguém chega a esta terra, a primeira surpresa que depois, felizmente, a cada dia se renova, é a de ver a maneira amistosa e não fanática pela qual os seres humanos vivem neste gigantesco território. Sem querer, respira ele de novo, sente-se bem por haver saído do ar mefítico do ódio entre raças e classes inimigas e de se achar nesta atmosfera mais humana" (Ed. Guanabara, pág. 8).
País harmonioso e sedutor, dado a ver quando o menino, na Síria , diz: "Mãe, a senhora não me bata mais que qualquer dia vou para o Brasil, eu vou para o Brasil!". Poucas são as referências à adversidade que aguardou alguns mascates nas encruzilhadas onde mais de um desapareceu nas mãos de assaltantes e saqueadores. Ou mesmo outras perdas: "A menina não foi feliz no parto e morreu. A mãe, que era parteira de mão cheia, ficou desesperada (...). Já não tinha prazer nenhum na vida, chorava, chorava, minhas tias iam lá consolar (...). Ela tinha um sobrinho que era mascate, que ela chamou para morar junto. Ele levantava cedo, fechava a porta e saía, só chegava de tarde. Um dia ele chegou, bateu, bateu, foi chamar a tia e quando entrou ela já estava morta. Acho que de tanta tristeza, de tanto que chorava, ela morreu dormindo. Até o lençol da cama dela era preto (...). Pois é, parece história, conto, novela".
O dramático é, nesta perspectiva, bem mais matizado do que as narrativas no livro de Ecléa Bosi. Ao relatar a morte de sua mãe, Dona Risoleta, filha de ex-escrava, conta como ela preparava o beiju, estendendo um lençol sobre o qual colocava a farinha de mandioca, ao mesmo tempo em que, no tacho do fogão à lenha, fazia o melado da rapadura. Armou-se uma tempestade, lembra-se, e a mãe sai para salvar a farinha apanhando o temporal; depois disso, sua garganta se fechou, não pronunciou mais qualquer palavra. A febre levou-a. Em outras palavras, a filha conta de que maneira a mãe ia trabalhando e morrendo. Há um entrelaçamento aqui dos lençóis do mundo do trabalho e os da agonizante. A vida vai-se misturando à morte, o calor da fornalha aquece o corpo, mas gela o sangue e, ao final, a mandioca branca se faz alva mortalha. Retratos falados contêm temporalidades próprias e singulares, diversas do fluir abstrato e contínuo dos ponteiros de um relógio. A memória não mantém ilhados espaço e tempo; a recordação se faz na desordem das lembranças. A memória é autobiografia e epistemologia. A narrativa não é lenda nem ficção, não é homogênea, tampouco linear. Nas experiências da rememoração, a história -de cada um e a da cidade- resiste a qualquer cronologia. A memória é presentificação do ausente.
Os descendentes dos mascates resguardam para si um Brasil das "mil raças", onde hibridizações, aculturações e sincretismos se solidarizam, à parte uma ou outra circunstância em que um racismo mitigado aparecia na designação pejorativa "turco". O Brasil dos árabes desconhece o preconceito de nacionalidade, etnia ou crença religiosa. Ele é, rigorosamente, o país do futuro. Nas memórias de Mussa Chacur, lemos: "Aprendi língua estrangeira sem professor (...). Estudei alemão (...). Na nossa loja (da rua 25 de Março) me chega uma freguesa preta. Falou comigo, eu olhava assim para ela, ela falava, eu olhando, não entendia o que ela falava (...). (Isso) nos primeiros dias que cheguei de Homs (...). Eu perguntei a ela em alemão: "A senhora fala alemão?' -"O senhor fala?' -"É, falo sim'... e começamos a conversar! Contei a minha vida, ela contou a dela! Que trabalhava com família alemã, foi para a Alemanha (...). Para despedida, eu saí fora da loja na calçada, despedindo, falando com ela : "Auf Wiedersehen!'... Passaram duas filhas de alemães que estudavam no Conservatório Musical. Olharam assim... preta e turquinho que chegou há pouco tempo, já está falando alemão? Elas lá pararam e ficaram assim olhando para nós, me lembro disso".


A OBRA
Memórias da Imigração - Libaneses e Sírios em São Paulo Betty Loeb Greiber, Lina Saigh Maluf e Vera Cattini Mattar Discurso Editorial (Tel. 011/814-5383) 772 págs., R$ 75,00



Esse trânsito entre palavras e raças é verbal e sentimental; encontra-se em outros depoimentos, em que a reconciliação das diferenças é anterior às próprias diferenças: "Meus filhos têm uma mistura muito grande de raças; minha mãe era palestina e meu pai libanês; a mãe de minha mulher era filha de português e o pai, filho de alemão. Então meus filhos têm sangue alemão, português, libanês, palestiniano, tem baiano, é uma trapalhada toda". Mesmo os vocábulos parecem destinados ao iluminismo cosmopolita: "Na Síria, o árabe conseguiu sobreviver (ao contrário do latim) e deu contribuições para todas as outras línguas! Até na Inglaterra: a palavra "park', por exemplo, vem de "bârakat', que quer dizer "parou'. "Bârakat' é "parque', lugar de parar. Agora, a palavra mais bonita que tem é a palavra "xarif' (...). "Sherif', "al xarif' -"o honrado' em árabe- deu o "sherif of the country', que é a pessoa que tem a honra de ser homem da lei. O próprio nome da Inglaterra, "Britânia', vem do fenício. Vem do aramaico, que era a língua dos fenícios. Em aramaico, "terra' é "birr', em árabe é "bâr'. "Tânac' quer dizer "estanho', o metal. Então "bir-i-tanic' quer dizer "terra do estanho' (...). Os fenícios iam à Cornualha comprar estanho porque ali tinha estanho. Chamavam aquela zona toda de "biri-tanic'. Daí vem "Britânia', "Bretanha'".
São recorrentes, nos depoimentos, referências a etimologias na mesma medida em que se afastam experiências tristes. Como se o lúdico das palavras compensasse paisagens e seres distantes e desaparecidos no espaço e no tempo: "Existem nomes árabes muito bonitos. Aliás, os nomes genuinamente árabes são todos traduzíveis. "Adibe', por exemplo, quer dizer "educada', "instruída', "ilustrada'; "Wadiha', quer dizer "criatura humilde'; "Afife' significa "impetuosa'; o meu nome "Chafic', quer dizer "piedoso', eu não tenho nada de piedoso, mas é isso; "Aun' é "socorro', porque era o brado que os eremitas davam quando iam ao cume das montanhas para clamar por Deus. Eles se ajoelhavam, levantavam o braço e diziam "auuunnn' prolongado, para que a voz chegasse até as alturas".
Palavras são, também, a reconstituição de usos, costumes e tradições, convertidos -de orientação e parábolas- em imagens de pensamento. Em pelo menos três gerações, os ensinamentos que passavam do avô ao pai e deste ao filho enfraquecem. A "colônia" dos sírio-libaneses perde a coesão. Os clubes como o Sírio e Monte Líbano não constituem mais uma identidade social e cultural, espaço de convivência e ritualização. A inteireza cultural -como a tradição da fala anaforática e a da transmissão de experiências com máximas morais- se dissolve: "Papai costumava dizer: "A perda é de tempo e não de dinheiro; pois este pode-se ganhar de novo após ter-se perdido, mas o tempo perdido não se recupera mais'".
Esta obra é a história do difícil processo de olhar-se como a um estrangeiro, de buscar diferenciações internas a cada um e a cada geração em relação ao que já fomos um dia e ao que se é e será. Mistério metafísico, quem sabe, a terra estrangeira é pátria ancestral e autal. A cultura dos antepassados permanece de alguma forma no presente, pois existe, nas vozes que escutamos hoje, ecos daquelas que emudeceram. Na simplicidade da palavra oral, este volume preserva tacitamente uma experiência primeira que retorna nas narrativas pessoais e que são também sociais. Seguindo um itinerário que se desloca e vacila, podemos compreender os silêncios da memória. Uma dor pode ser esquecida, lembrava Hannah Arendt, quando dela podemos contar uma história ou fazer dela uma história. No coloquial, reconhece-se ainda aquele tom profético que se encontra nos textos sagrados. Há algo do "fatalismo" árabe na atmosfera das narrativas acompanhadas muitas vezes do "maktub", consagrado na surata do Corão: "Ninguém encaminha aquele que Alá extravia".

 


Olgária Chain Feres Matos é professora do departamento de filosofia da USP.

Olgária Chaim Feres Matos é professora no departamento de filosofia da USP.
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