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Francisco de Oliveira - 84 - Abril de 2002
A tradição celebrada
Foto do(a) autor(a) Francisco de Oliveira

A tradição celebrada

Sobre um clássico de Antonio Candido 

A Tradição Esquecida- "Os Parceiros do Rio Bonito" e a Sociologia de Antonio Candido 
Luis Carlos Jackson Ed. UFMG (Tel.0/xx/31/3499-4650) 240 págs., R$ 29,00

FRANCISCO DE OLIVEIRA 

Em livro bem cuidado, Luis Carlos Jackson dispõe-se a revalorizar um dos livros clássicos de Antonio Candido. Do ponto de vista de Jackson, "Os Parceiros do Rio Bonito" ficou -a concordância no singular é com a obra, e não com o título, esclarecimento necessário em se tratando de Antonio Candido...- secundarizado mesmo na hierarquia das obras do autor e num lugar menor em relação às obras-mestras da interpretação da formação da sociedade brasileira, o formidável esquadrão apelidado por Candido de "demiurgos do Brasil", a saber: Gilberto Freyre, Caio Prado Junior, Sérgio Buarque de Holanda e, acrescentaria eu, Celso Furtado e Florestan Fernandes, para ficar numa lista que poderia estender-se. O engraçado é que o mestre da teoria da literatura brasileira ele mesmo não considera o livro esquecido, pois já teve 12 edições, desde a primeira em 1964, que Candido reconhece ter demorado a aparecer, em razão de sua renitência em publicar imediatamente os textos de sua lavra pois, segundo ele, "Os Parceiros" demandava uma revisão que nunca fez.
Jackson refaz cuidadosamente o percurso de Antonio Candido, desde os idos de 30, da escolha da novíssima Faculdade de Filosofia e da mais que incerta ciência social, da desistência da Faculdade de Direito que frequentou concomitantemente com a de Filosofia, seguida por alguns de seus melhores amigos, e da nem tentada Faculdade de Medicina, preferência de seu pai. Aqui, o material de que se serve, além da bibliografia, são duas entrevistas do próprio Antonio Candido, que Jackson nos oferece na íntegra em seu livro, ao lado das de Edgar Carone, Décio de Almeida Prado e José de Souza Martins, o que transforma "A Tradição Esquecida" numa preciosidade bibliográfica e testemunhal. Estamos no terreno de uma pesquisa rigorosamente conduzida. Gol de letra, Luis Carlos!
O livro de Jackson desenvolve-se em uma introdução e três capítulos, aos quais se juntam as notas e as preciosas entrevistas já citadas. O autor trata de trabalhar três questões sobre Candido e "Os Parceiros". A primeira diz respeito à discussão se Antonio Candido é sociólogo, se "Formação da Literatura Brasileira" é sociologia da literatura ou tem verdadeiramente o estatuto de teoria e crítica literária e, por último, qual o lugar de "Os Parceiros" na estante básica das obras da formação da sociedade brasileira.
Parece, pela ordem, que inquieta Luis Carlos que o próprio autor estudado se veja menos como sociólogo e mais autenticamente como crítico literário, mais como empírico -a "paixão pelo concreto" referida por Candido na primeira entrevista- e menos como teórico e que sua principal obra sociológica não tenha aparentemente criado "escola" e sua repercussão tenha sido menor que seu valor intrínseco, ofuscada talvez pelas grandes interpretações sobre o campesinato e o latifúndio brasileiros, esses irmãos xifópagos da retrógrada estrutura agrária brasileira.Os títulos dos capítulos dizem abertamente da intenção e das perguntas do autor: "O Sociólogo em Antonio Candido ou Antonio Candido Sociólogo", "A Tradição Esquecida" e "O Sertanejo, O Caipira e o Camponês Brasileiro".

Interdisciplinaridade
"Formação da Literatura Brasileira", considerada a obra seminal de uma tradição de teoria crítica inaugurada por Candido -inaugurada na verdade nos rodapés da então "Folha da Manhã" e estruturada a partir do exercício da docência em letras em Assis-, dificilmente poderia deixar de sofrer a influência que eu não diria sociologizante, mas interdisciplinar, da prática e do ambiente intelectual em que Candido se formou. Mas não é sociologia, e tanto a primeira quanto a segunda afirmação não são incompatíveis nem excludentes.
Há em "Formação" e em "Os Parceiros" o mesmo compromisso, declarado por Candido nas entrevistas: na primeira, o compromisso com o texto; no segundo, o compromisso com a realidade social. Têm a mesma estatura, que eu diria teórica, embora Candido não se considere um teórico.
Na primeira, o compromisso revela-se como resultado do abandono da postura da primeira fase como crítico, o de tentar ver ideologicamente o que o autor criticado queria dizer, para ver o que o texto quer dizer, o que o texto é. Na segunda, o compromisso se revela na plasticidade e no ecletismo da bibliografia, escolhida pelo critério da melhor aproximação com a realidade, escoimada o quanto se pode das próprias preferências ideológicas do autor. Ecletismo que foi motivo de crítica. Para a crítica literária, a realidade social deve converter-se em texto, em estética; na sociologia, o modo de vida dos investigados, no caso parceiros de uma fazenda decadente, deve ser investigada com as melhores ferramentas e aproximações teóricas e uma observação cuidadosa que evite o pré-conceito.
Creio que trazendo ao primeiro plano essa fecundação presente na obra crítica e sociológica de Antonio Candido, Jackson responde satisfatoriamente à sua primeira preocupação.
Além disso, conquanto Candido não se veja como teórico, não há como negar que a "escola" de teoria e crítica literária que lhe deve sua melhor e maior inspiração -que custa muito, custa transpiração- desenvolve-se a partir de uma teoria da crítica formulada por Candido, quando ele se descola de Silvio Romero, por exemplo, para ele um grande historiador da literatura e um péssimo crítico literário. Nos termos com que Leopoldo Waizbort analisa a nova edição de "Machado de Assis - A Pirâmide e o Trapézio", de Raymundo Faoro, "o social tornado forma" ("Jornal de Resenhas", 9/3/ 2002). É isso o que está presente em Roberto Schwarz, por exemplo, assumidamente um discípulo de Candido, com seu já clássico "Um Mestre na Periferia do Capitalismo", em que a volubilidade da classe dominante brasileira torna-se forma em Machado. Esclareça-se, desde já, que não estou transformando Faoro em discípulo de Candido. Para mim, se isso não é teoria da literatura, então eu já não sei mais o que é teoria.
Nos estudos de sociologia, tem razão Jackson. A tradição de Candido fundada em "Os Parceiros" ficou esquecida, embora também seja verdade que ela fecundou toda uma "filière" de estudos sobre a realidade rural, na linha de uma Maria Isaura Pereira de Queiroz e de um José César Gnacarini, como fica ressaltado nas entrevistas de Candido, que se incorpora à reflexão de Jackson. Aqui Jackson talvez devesse ter ousado mais na investigação desse "esquecimento".
Candido mesmo ajuda muito a esclarecer a relativa secundarização da proposta interpretativa dos "Parceiros", por reconhecer em primeiro lugar que, quando o livro finalmente saiu, o debate brasileiro estava tão radicalizado entre a oposição latifúndio versus minifúndio e a consequente proposta da reforma agrária radical que talvez a maior sutileza de sua análise não correspondesse às expectativas políticas da época da primeira edição, em 1964, ano da catástrofe golpista. Embora José César Gnacarini, com seu "Latifúndio e Proletariado", na verdade tenha realizado uma admirável síntese da proposta de Candido com a temática mais macrossocial e macropolítica da reforma agrária.
Ainda assim, é forçoso reconhecer que o conflito que pautou a agenda política nos anos do aparecimento dos "Parceiros", e que continua atual, isto é, a estrutura fundiária extremamente concentrada que dá lugar às formas mais violentas da velha violência coronelística e agora empresarial, é secundarizado na obra sociológica de Antonio Candido.
Dizendo de outro modo, o conflito, que está lá, se esconde sob as formas de uma investigação etnográfica da cultura caipira; reforçando ainda mais, o latifundiário quase não aparece. O que retirou centralidade às oposições mais esquemáticas e força à interpretação. Talvez a literatura brasileira do conflito agrário não tenha sabido aproveitar o que era essencial na proposta metodológica de Candido, lograda exatamente porque sua abordagem começa pela cultura: a da formação do largo e fundo consenso entre as classes sociais no campo brasileiro, entre o minifundista e o latifundiário, base da arraigada permanência da forma de dominação, reatualizada agora pelo "agrobusiness".
Não é estranha à sutileza de Antonio Candido que o dono da fazenda fosse seu amigo, Edgar Carone. É difícil ver num amigo o latifundiário empedernido, figura central da saga do atraso agrário brasileiro. Mas, com olhos de ver, certamente está lá a pista para investigar-se a estranha parceria, se quisermos chamá-la assim, entre dominantes e dominados no campo, que financiou as bases da industrialização brasileira.
"Os Parceiros" como título talvez tenha sido inconscientemente a escolha de um simulacro para descrever a funda contradição. Se essa obra sociológica, que seu próprio autor considera menor, não tem a dimensão épica das obras dos que Candido chamou os "demiurgos" do Brasil, visto que esse lugar na estante dos grandes clássicos brasileiros é ocupada por "Formação da Literatura Brasileira", vale a pena, como o fez Jackson, celebrá-la e mais, segui-la.


Francisco de Oliveira é professor de sociologia na USP e coordenador do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (USP).

Francisco de Oliveira é professor do departamento de sociologia da USP.
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