Ensaios em quatro volumes abordam a evolução da arte moderna de meados do século 19 até nossos dias
A saga da arte moderna
VICTOR KNOLL
Fosse Hegel redivivo, certamente diria com um sorriso irônico dependurado nos lábios: "Viram! Eu tinha razão! A ave de minerva alça vôo somente ao entardecer, quando uma etapa da vida já se cumpriu". De fato, em algum momento da segunda metade do século 20, o que aprendemos a identificar como "arte moderna" passou a ser algo do passado. Agora é possível pensá-la. Agora ela pode se constituir plenamente em objeto.
Ainda mais, o que chamamos por "moderno", no que se refere à arte, permanece uma "idéia obscura e confusa" quanto à sua natureza e seu valor. Aliás, quando na história termina o moderno, o moderno inicia-se na arte. Tal é a posição da equipe de ensaístas ligada à Open University, ao se lançar na empreitada de avaliar -e mesmo apreender- o sentido histórico da chamada "arte moderna".
O primeiro ponto é este: o modernismo -ou a obra à qual se aplica o termo "moderno"- reconhece-se porque se opõe ao passado, ao estabelecido, ao que atende pelo nome de "pintura acadêmica". Só depois aparecem as razões estilísticas e temáticas, como por exemplo o uso da pincelada que leva ao abandono do detalhe realista ou ainda a recusa da profundidade pela planaridade.
Baudelaire e a modernidade
Assim, quando aplicado à arte, indica ao mesmo tempo um período de sua história como discrimina "diversos tipos de arte produzidos nesse período". Compreende-se, portanto, que "arte moderna" não se identifica necessariamente com a "arte do período moderno". "Poderíamos até mesmo dizer que o moderno é uma forma de diferença e que, a partir de meados do século 19, pelo menos no que diz respeito à pintura, determinou uma relação particular entre os tipos de temas contemporâneos e os tipos de tratamento que encontramos em Manet, Morisot e Monet."
Trata-se aqui da supressão do detalhe do rosto para chamar a atenção do espectador para outras partes do quadro. Esse interesse por "outras partes" da representação pictórica, que equivale a um estar atento a tudo que nos cerca, é um dos traços que Baudelaire atribui à "modernidade". Assim, "moderno" não indica apenas algo "do" presente, "mas representa uma atitude específica para com o presente". Alia-se a esse sentido de "moderno" o aparecimento dos grandes centros metropolitanos: Paris. No caso da pintura são os meios de representação que passam a ter mais importância do que os temas. A natureza-morta é um tema convencional, entretanto os trabalhos de Braque e Picasso da primeira fase cubista -essencialmente naturezas-mortas- nada têm de convencional e são eminentemente "modernos".
Por outro lado, o termo "moderno" escapa ao domínio conceitual "claro e distinto". Como diz Fer, "a pintura moderna foi produto de uma cultura moderna, mas não o único produto; foi uma forma de produção entre muitas outras formas complexas de representação visual, incluindo a pintura acadêmica, a ilustração popular, a fotografia e assim por diante". Cumpre ainda mencionar -embora merecesse um olhar mais demorado-os compromissos do "moderno" com o artificial e, em continuidade, com uma cultura que passa não só a usufruir como a cultuar a máquina.
A tradição moderna
Finalmente, a noção de "moderno", de pintura modernista, é cristalizada pela atuação crítica de Greenberg -e então podemos passar a falar em uma tradição moderna-, pois estabelece que "toda pintura moderna bem-sucedida apresentava em comum um amplo reconhecimento da superfície do quadro -ou seja, a planaridade da tela". Enquanto os "velhos mestres" trabalhavam com a ilusão da profundidade, a "planaridade mais revelava que ocultava o veículo da pintura". Greenberg dá um salto de cem anos e alia Pollock a Manet.
Embora o autor de cada ensaio, que aborda de modo específico um período ou um movimento, se caracterize por uma ótica particular, todos estão afinados pelo modo como a equipe encara e trata o conceito de "moderno".
A preocupação de Briony Fer, portanto, procede: procura avaliar os recentes desdobramentos no estudo da arte moderna mediante o exame dos usos controversos dos termos "moderno" e "arte". O primeiro caminho apontado é de teor histórico-social, assumido por Nigel Blake e Francis Francina que se debruçam sobre os resultados obtidos pelos historiadores sociais da arte para explicar -note-se, trata-se de explicar e não de compreender ou interpretar, e creio, explicar o fenômeno artístico do mesmo modo que o moderno Newton explicou a atração universal dos corpos- retomando, para explicar as obras de arte como representações que resultam de práticas sociais. De fato, não há lugar-comum mais moderno! Daí se segue a brilhante afirmação: "Para eles, práticas artísticas, modernidade e modernização estão intimamente ligadas e são inseparáveis das transformações sócio-econômicas que acontecem na França sob o capitalismo em desenvolvimento". Que tal proposição exprima o objeto ou o cenário no qual floresceu a arte do referido período, está bem; outra questão é tomá-la como um princípio metodológico.
Já Charles Harrison procura mostrar que as relações entre vida moderna e pintura moderna não podem se limitar ao estudo das circunstâncias sociais, históricas e econômicas em que a arte foi produzida. A identificação das obras como "modernas" é inseparável da questão de seu mérito estético. Tal questão deve ser tratada segundo a análise formal dos efeitos pictóricos. Compreender e avaliar o cubismo, por exemplo -mesmo quanto à sua inserção histórica- requer o exame, antes de tudo, de como se operou a construção do espaço plástico, do uso de materiais como pedaços de jornal e os compromissos com uma temática basicamente ligada à natureza-morta. O "moderno" do cubismo, de modo geral, está no achatamento do espaço pela superposição dos planos do objeto. Este ganhando uma nova feição figurativa. Aí está o "moderno" e não, como quer Nigel Blake e Francis Francina, em circunstâncias sociais, econômicas ou da vida metropolitana parisiense da segunda metade do século 19. Uma obra é reconhecida como "moderna" por força da análise formal.
A obra de Monet se presta tanto para as análises de Harrison quanto às de Blake e Frascina. O primeiro se atém ainda a Cézanne, Degas e Renoir, enquanto que os segundos se voltam para Manet e para Paris, a metrópole que serve de cenário para a vida moderna.
De qualquer modo, Briony Fer assinala o uso controverso dos termos "moderno" e "arte", o que dificulta o consenso ou cria equívocos entre interpretações que, estando em um mesmo rumo, são tidas como contraditórias.
Um novo olhar
Assim, ao examinar como e por que as diversas noções de "moderno" na arte desempenharam importante papel cultural, Fer procura estabelecer uma certa univocidade para o termo, tendo em vista assegurar alguma coesão aos ensaios provenientes dos nove autores que colaboraram na confecção dos instigantes quatro volumes que compõem a obra. Entretanto, observa que não se trata de criar uma camisa de força conceitual e que cada ensaio tem a sua ótica própria.
A dupla orientação metodológica já indicada, encontra paralelo no exercício crítico de dois nomes -contrariando Hegel-, que estabeleceram parâmetros para a compreensão da arte moderna no calor da hora de seu fazer-se: o caminho assumido por Greenberg na direção da análise formal e, ao mesmo tempo, a busca do sentido da produção artística nas determinações históricas e sociais reclamada por Schapiro.
A confecção dos ensaios recorre de maneira cerrada a determinadas obras, não só a título de exemplo, mas de cuja análise extrai a interpretação histórica e, assim, assume um certo caráter pedagógico, pois contribui para que o leitor as contemple de maneira mais rica e, talvez, até mesmo, com maior acuidade. De um modo geral, tem a virtude de mostrar que há um compromisso entre a produção e a contemplação das obras chamadas de "modernas". Cada movimento -seja o cubismo, seja o surrealismo- vem atender ao apelo de um novo olhar.
Uma preocupação constante é a de estabelecer as possíveis semelhanças e as assumidas diferenças entre os estilos e os movimentos artísticos. Daí perguntas como estas: o que aproxima e o que distancia o fauvismo e o expressionismo? A pintura metafísica e o surrealismo? Outro ponto que merece consideração diz respeito a certo mascaramento do "passado" -portanto, do que se opõe ao "moderno"-, imprimindo uma certa ambiguidade aos movimentos artísticos tidos como expressão exemplar da "arte moderna". O impressionismo é "novo" no uso do colorido, no aspecto temático, na composição da figura pela silhueta, mas a concepção do espaço plástico está comprometida com a perspectiva linear; já o cubismo rompe com o "passado" ao instaurar uma nova concepção de espaço plástico, mas seu tema favorito é a natureza-morta; de seu lado, o expressionismo traz a "novidade" da deformação da imagem, mas traz embutido em seu "pathos" o romantismo.
A arte moderna trilhou caminhos extremos: de uma produção guiada pelo cálculo e outra entregue ao espontaneísmo e à improvisação. Mondrian e a pintura gestual. Entretanto, não haverá na obra de Pollock uma certa "razão" no processo de produção? O geometrismo de Mondrian não seria apenas uma cortina do sonho?
Solidária da linha metodológica de Blake e Frascina, desenvolve-se a reflexão de Jonathan Harris a partir do tripé arte-cultura-sociedade, tendo em vista os compromissos ideológicos que nortearam a produção artística nos Estados Unidos entre os anos 30 e 60. Por vezes, esse viés metodológico nos assusta, como é o caso de Frascina, mais uma vez, ao procurar estabelecer um nexo entre a produção artística, a crítica e a curadoria com a Guerra Fria, nexo rompido nos anos 60 pelo feminismo e pela contestação da guerra do Vietnã. Decerto, é imaginoso.
Ainda em relação à análise histórico-social, David Batchelor procura mapear a maneira como os artistas vivenciaram a devastação social causada pela Primeira Grande Guerra. Por essa via o autor acompanha o aparecimento do dadaísmo, da revista "L'Esprit Nouveau" e dos primeiros surtos surrealistas com a "Révolution" de André Breton. De resto, como aponta Batchelor, com razão, a grande pergunta dos anos 20 é esta: o que significa fazer arte após a guerra? Leia-se: uma guerra que para a época era uma "guerra mundial".
Ao lado da explicação da obra de arte ou dos movimentos de vanguarda que recorre ao histórico-social ou da interpretação que se apóia nos aspectos formais, há que lembrar a psicanálise, muito bem acolhida no círculo artístico surrealista -também lugar-comum-, dando ao inconsciente um lugar no universo artístico para mais além do repousante divã. Assim, temos uma espécie de "ménage à trois": o histórico-social, o formal, o psicológico. Pena que, do olhar gramatical, todos sejam masculinos!
Justamente no momento em que se inaugurava o período na história da arte que recebeu o nome de "moderno", portanto antes de ser vivido, de encontrar o seu apogeu e depois o declínio, Baudelaire definiu a "modernidade", no primoroso ensaio "O Pintor da Vida Moderna", publicado em 1863 no "Le Figaro", com estas palavras: "A Modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável". Apesar das variações ou desdobramentos que se possam sugerir a propósito do sentido de "moderno" -como Fer e Frascina o fizeram com muita argúcia e também Harrison e Wood ao proporem uma reavaliação do termo segundo a ótica dos anos 60-, aí está, "avant la lettre", o traço fundamental do "moderno". Por essa, Hegel não esperava!
Arte Moderna - Práticas e Debates Vol. 1 - Modernidade e Modernismo Francis Francina e outros Tradução: Tomás Rosa Bueno 298 págs., R$ 72,00
Vol. 2 - Primitivismo, Cubismo, Abstração Charles Harrison e outros Tradução: Otacílio Nunes 270 págs., R$ 56,00
Vol. 3 - Realismo, Racionalismo, Surrealismo Briony Fer e outros Tradução: Cristina Fino 346 págs., R$ 67,00
Vol. 4 - Modernismo em Disputa Paul Wood e outros Tradução: Tomás Rosa Bueno 268 págs., R$ 55,00 Cosac & Naify Edições (tel. 0/xx/11/255-8808)
Victor Knoll é professor de estética na USP.