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Ronaldo Vainfas - 104 - Março de 2009
A religião de Rabelais
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Ronaldo Vainfas

 

O problema da incredulidade no século XVI

Lucien Febvre

Tradução: Maria Lúcia Machado

COMPANHIA DAS LETRAS

514 p., R$ 66, 00

 

O problema da incredulidade no século XVI é o principal livro do grande historiador Lucien Febvre (1878-1956). Fundador da revista Annales que, segundo Peter Burke, foi uma “revolução francesa na historiografia”, Febvre foi historiador militante. Combateu a favor da história como disciplina contra os historiadores chamados de positivistas, devido à excessiva valorização do conhecimento histórico objetivo e informativo. Na realidade, os adversários de Febvre, e de seu companheiro Marc Bloch, eram os historicistas inspirados na escola metódica alemã. Febvre foi por vezes injusto com os historiadores do século 19, como se vê nos Combates pela História (1953), exagerando o apego deles a uma verdade histórica absoluta.

Paciência. Febvre defendia com garra uma história-problema, uma história social livre dos nacionalismos tão exacerbados de seu tempo. Sempre foi cáustico em suas críticas, embora tenha preferido se aquietar durante a ocupação da França pelos nazistas. Tempos dramáticos. Escolhas difíceis. Marc Bloch preferiu entrar na resistência e morreu fuzilado em 1944.

Foi então que Febvre lançou seu livro dedicado às mentalidades na França do século 16. Publicado em 1942, trata de examinar a obra de François Rabelais (1494-1553), médico da corte e grande escritor humanista, autor dos clássicos Pantagruel e Gargântua, livros sobre os “horríveis e terrificantes atos e palavras de Pantagruel, filho do gigante Gargântua”. Trata-se de uma novela de enorme sucesso, contando as aventuras de Pantagruel, cujo nome significa “tudo alternado”, afamado por sua gula insaciável e apego às bebedeiras. Gargântua era um gigante também glutão.

Caracterizada pelo humor satírico, a obra é rica em vocabulário chulo e blasfêmias de toda sorte, descrição de vômitos e atos sexuais. Urina e fezes irrigam várias partes da novela. Por tudo isso, tais livros foram julgados heréticos e incluídos no Index de livros proibidos pela Inquisição, em 1564. Vários censores taxaram a obra de ateísta pelo forte desacato aos valores cristãos. O próprio Rabelais foi acusado de ateu e anticristão. E muitos críticos literários do século 19 endossaram a tese de um Rabelais ateu.

É nesta altura que entra a inovação de Febvre, defendendo a impossibilidade do ateísmo no século 16, com base na análise exaustiva do vocabulário da época. Foi então que o historiador lançou o conceito de “outillage mental” para aludir ao conjunto de crenças e sentimentos de determinada sociedade, antecipando a história das mentalidades.

Mas Febvre vai além. A genialidade da obra reside na demonstração cuidadosa da religiosidade do próprio Rabelais, homem que flertava com o calvinismo e, talvez por isso, fosse implacável com os santos e sacramentos. Febvre rastreia a exaltação de Rabelais à Bíblia, a citação de textos sacros em francês e mesmo a defesa da “justificação pela fé”, doutrina luterana. Por outro lado, Rabelais não está imune a valores católicos, como a caridade. Fides charita formata – fórmula cara aos escolásticos, não a Lutero ou Calvino. “Coexistência, no mesmo homem, de tendências opostas que o puxam cada uma para seu lado”, assim Febvre vê Rabelais.

Rabelais foi mais bem compreendido por Febvre do que pelo semiólogo russo Mikhail Bakhtin, também um especialista da obra rabelaisiana, autor de  A Cultura popular na Idade Média e no Renascimento (1965). Bakhtin extraiu da obra de Rabelais evidências de uma cultura popular carnavalizada e, portanto, crítica da cultura letrada e austera das elites. Rabelais deu voz, para Bakhtin, às tradições orais embebidas de paganismo e desprendidas de preconceitos morais. Utilizando Rabelais como fonte para o estudo de comportamentos, Bakhtin talvez não tenha alcançado que o grande satírico das novelas era o próprio Rabelais.

Por outro lado, também Febvre diz que seu livro não era mais um estudo sobre Rabelais, senão sobre as mentalidades francesas d’après Rabelais. Modéstia do autor, porque seu estudo desvenda os dramas de consciência do próprio Rabelais. No prefácio à presente edição, o medievalista Hilário Franco Jr. faz alguns reparos à obra, sobretudo à idéia de que os homens da época “desconheciam o senso do impossível”, logo não podiam ser ateístas. Alerta que, desde o século 13, usavam-se verbos como descroire (descrer) e mescroire (recusar-se a crer).

Nosso medievalista tem razão. Mas também a tem Denis Crouzet que, no pósfácio, dá excelente ponto final ao assunto: “o Rabelais de Lucien Febvre é alimentado de Lucien Febvre, mas o próprio Febvre estava inervado, possuído por Rabelais, a ponto de compreender seu tempo e seu próprio personagem de historiador no mais alto sentido”.

 

Ronaldo Vainfas é professor do departamento de história da UFF.
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