A pompa e o martírio
RENATO JANINE RIBEIRO
Em 1559, John Foxe publica um livro de história imediata somada à história antiga que se chama "Atos e Monumentos desses Dias Tardios e Perigosos". Acaba de morrer a rainha Maria, a Sanguinária, que, para devolver a Inglaterra à Igreja Católica, mandou queimar vivos cerca de 300 protestantes, inclusive bispos e até o arcebispo de Cantuária. A obra de Foxe, que será conhecida como "O Livro dos Mártires", tornará o sacrifício deles em forte fundamento ideológico para consolidar a Reforma protestante inglesa.
Porque a Igreja Anglicana surgira com bases fracas: o empenho político de Henrique 8º em ter um herdeiro varão, em tomar os bens da Igreja Católica, em destruir o poder dela, que limitava o seu. Mas 300 pessoas mortas na fogueira, todas afirmando sua fé, mudaram o quadro. Um dos mártires marianos, um bispo, ao ser levado para o suplício, encontra uma estalajadeira. Ela está em prantos: "Sempre achei que o senhor era um oportunista que não acreditava no que dizia, mas hoje vejo que acredita mesmo".
Frases como essa mudam a história. Daí que os prelados católicos, acendendo as fogueiras, bradem que o martírio não está na maneira, mas na causa, pela qual se morre. Mas em vão. Evidenciam-se duas concepções opostas da religião, e não só dela: da vida, da sociedade. Os católicos têm pompa, poder, instituição. Os protestantes, a simplicidade, a palavra, a discussão e -finalmente- o martírio.
Veja-se Stephen Gardiner, que reparte com a Sanguinária o papel de mau, neste livro quase empolgante. Foi ministro de Henrique 8º. Ajudou-o a divorciar-se de Catarina, mãe da futura rainha Maria. Depois caiu em desgraça, só voltando ao poder sob Maria. Diz que sempre se conservou católico. Torna-se um dos chefes da repressão aos protestantes. Produz mártires. Mas ele mesmo, quando poderia ter sido um, no tempo do rei Henrique, não o foi. Poderia, como Tomás Morus, ter sido executado. Mas submeteu-se, traiu sua fé. Os 300 não traíram a deles.
O herói e o mártir aceitam morrer. Abraçam seu destino, proclamam que a vida não vale sem a honra, num caso, sem a verdade e a fé, no outro. Sacrificam o presente pelo futuro. São mortes que se tornam narrativas exemplares. Mas há diferenças. Heróis, pode haver de lados opostos -Augusto Matraga e Joãozinho Bem-Bem, no conto de Guimarães Rosa. Não pode haver mártires dos dois lados. O martírio invoca a verdade. O mártir dá testemunho de sua fé. Sacrifica a vida porque "esta noite cearei com o Senhor", dizem vários, ao pé da fogueira. Esse testemunho ou memória converte muita gente. "O Livro dos Mártires" é uma obra de catequese.
Isso explica um dado curioso. Para conferir a tradução, dei um "google" em busca do original. Mas durante o "download" notei um capítulo sobre um massacre de protestantes na Irlanda, em... 1641. Meio século após a morte de Foxe! E isso porque o texto disponível no sitewww.reformedreader.org é uma versão atualizada por William Byron Forbush, que o aumentou em um terço e em 300 anos. (Para um site sério, ver www.hrionline.ac.uk/foxe).
Fique claro que o livro que ora comento é uma boa tradução (apesar de uns erros de datas) do texto de Foxe. Tem credenciais literárias. Mas a internet, para dizer a verdade, atravessou o samba: torna-se difícil falar do Foxe autêntico sem levar em conta o Foxe "reloaded". Que é isso, reescrever um livro?
Foxe, de 1559, é um clássico. Nós, professores, defendemos os clássicos. Uma obra entra no cânone quando continua tendo o que dizer a públicos afastados no tempo e no espaço. Mas também somos ciosos da autenticidade. Mal toleramos as adaptações, quanto mais uma reescrita. Assim ficamos divididos, entre a abertura ao presente e a fidelidade ao clássico.
Uma coisa é um clássico, outra, um livro vivo. Ele talvez possa ser reescrito. Não o faremos, se tivermos senso histórico ou considerarmos a obra como um documento. Mas, se acharmos que suas idéias valem ainda hoje, aceitaremos continuações.
Visite o leitor o complexo de palácios reais e templos budistas que está no centro de Krung Thep, a capital da Tailândia, que os estrangeiros chamam de Bancoc. Sentirá dificuldade em distinguir os prédios e obras que têm séculos -e os que têm décadas. E isso porque tudo continua vivo.
Vá a um pagode, lá ou na Birmânia. A arte que os gerou, que a nossos olhos teria o encanto adicional de ser antiga, continua viva. Isso é estranho para quem vem do mundo cristão, pois, mesmo sendo leigos, aqui nos acostumamos a ver a arte e a arquitetura dos grandes monumentos públicos como envelhecida. É de outra época. Hoje, teríamos de fazer coisa diferente.
Essa é a diferença entre o clássico e a obra viva. "Os Mártires", de Foxe continuaram vivos por séculos. Isso autorizou Forbush a atualizá-los. E isso reponta um pouco no prefácio a essa edição, que define mártir como mártir cristão, o que deixa implícitas duas idéias que seria inaceitável explicitar: não há mártires que não sejam cristãos; e cristãos de verdade são só os protestantes (católicos seriam, então, o quê?). Mas hoje Foxe está deixando de ser um livro vivo e tornando-se um clássico. Por isso merece ser lido, por exemplo, por quem queira conhecer uma obra notável da mídia do século 16, responsável pela consolidação do protestantismo na Inglaterra.
Pois, hoje, é impossível esquecer que houve ao menos um grande mártir católico -Tomás Morus. Ou que as chacinas, na Irlanda, vitimaram muito mais católicos do que protestantes (aqui, Forbush é desonesto). E pode haver mártires dos dois lados? Não pode -a não ser que deixem de ser mártires. Desde que o Concílio Vaticano 2º fez o entendimento com os protestantes superar os anátemas recíprocos, a linguagem de Foxe deixou de ser viva e passou a ser memória. Ou melhor, sua memória deixou de fundar, para só lembrar. Perdeu o vigor prospectivo, embora guarde valor retrospectivo. Por isso esta edição reproduz Foxe, o genuíno, e não Forbush, o kitsch.
Dizíamos que o senso histórico da diferença seria mais forte no mundo cristão do que, digamos, no budista. O plano da religião é o da verdade e talvez da eternidade. A arquitetura do pagode pode continuar viva. Mas os templos cristãos ou ocidentais são datados. A perseguição é do passado. Se ainda existe, é rara e marginal.
E por isso não é fácil ler esse livro. Ele nos faz pensar em intolerância. Nossa tendência é lamentar que não houvesse liberdade religiosa. Mas notem que jamais Foxe clama por ela. Mais tarde pediu à rainha Isabel que não matasse jesuítas, mas nem por isso pretendia um mundo em que católicos e protestantes convivessem. Queria reformar a sociedade e isso implicava um único credo. Não defende a liberdade na fé, mas uma fé verdadeira. Hoje o que podemos é entender que, numa época em que todo discurso político se expressava em termos religiosos, defender a Reforma era defender um tipo de sociedade. E isso exige, de nós, senso histórico.
Renato Janine Ribeiro é professor de filosofia política na USP e autor, entre outros livros, de "Ao Leitor sem Medo -Hobbes Escrevendo contra o seu Tempo" (Ed. UFMG).
O Livro dos Mártires
John Foxe
Tradução: Almira Pisela
O Mundo Cristão (Tel. 0/xx/11/5868-1700)
480 págs., R$ 69,00