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Newton C.A. da Costa - 92 - Janeiro de 2003
A outra face
Filósofo francês examina a importância do apelo ao irracional
Foto da capa do livro O Irracional
O Irracional
Autor: Gilles Gaston Granger
Tradução: Álvaro Lorencini
Editora: Unesp - 290 páginas
Foto do(a) autor(a) Newton C.A. da Costa

Gilles Gaston Granger cursou a conceituada École Normale de Paris, sendo "agrégé" de filosofia e licenciado em matemática. Doutorou-se em filosofia pela Universidade de Paris (1953) com uma tese de grande relevância sobre metodologia econômica. Na França, seus mestres foram sobretudo Jean Cavaillès e Gaston Bachelard. É professor honorário do Collège de France e professor emérito da Universidade de Aix-en-Provence. Sua principal área de atuação centra-se na epistemologia, em que obteve notável projeção.
Esteve no Brasil de 1947 a 1953 como professor visitante da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, lotado no departamento de filosofia. Desde aquela época, tem vindo, de modo sistemático, a nosso país, contribuindo significativamente para o desenvolvimento da lógica e da filosofia entre nós.
Granger e W. V. Quine podem ser considerados como os pais da evolução contínua da lógica brasileira, em especial pelos livros "Lógica e Filosofia da Ciência" (Editora Melhoramentos, 1955), do primeiro, e "O Sentido da Nova Lógica" (Livraria Martins Editora, 1944), do segundo. Aliás, o autor desta resenha foi motivado fortemente por essas obras e por contatos posteriores com Quine e Granger. As atividades didáticas de Granger na USP, em particular, evidenciaram-se decisivas para o progresso da lógica entre nós, como, também, da filosofia. Se na década de 1950 só havia um lógico em nossa terra que publicava em revistas internacionais de renome, hoje são cerca de 200 pessoas seriamente dedicadas a investigações ligadas à lógica e a temas correlatos.
No presente livro, Granger discorre sobre o irracional. À primeira vista pode surpreender, pois o pensador francês devotou boa parte de seu esforço no campo filosófico procurando analisar e ponderar os vários aspectos e objetivos da razão. No entanto, o estudo do irracional complementa a sua investigação do racional. Granger não tenta fazer a defesa do irracional ou colocá-lo, em dignidade, ao lado do racional. O que ele deseja é meditar sobre o irracional e suas formas, pois tal indagação se mostra sumamente instrutiva para a própria compreensão do racional e pode auxiliar todos aqueles que intentam ser racionais. Por outro lado, Granger não se entrega à tarefa de inventariar o irracional como presença constante na vida humana, em todas as suas manifestações, mas se fixa em certos casos concretos, na ciência e na arte, muito significativos, nos quais o comparecimento do irracional se evidencia, por assim dizer, abertamente.
Para nosso autor, há três categorias de irracional. A primeira é o irracional como obstáculo. Assim, por exemplo, na criação matemática diversas vezes o matemático se defronta, no início comumente sem perceber, com a derrogação das próprias leis que deveriam reger o objeto criado, o que conduz a contradições e dificuldades imensas, como se deu com os números irracionais, os números imaginários e as antinomias da teoria de conjuntos. Após a tempestade, tenta-se superar os obstáculos encontrados e se ensaia voltar à racionalidade.
A segunda é o irracional como recurso. Lança-se mão do irracional, violando-se normas básicas, para se atingir algo novo. Tal se processa na ciência e na arte e, o que pode parecer uma inconsequência, também em lógica, embora não se tenha, no irracional dessa categoria, uma recusa do racional: busca-se, sobretudo, abrir novos caminhos, que muitas vezes acabam se convertendo em algo racional. A elaboração da chamada lógica paraconsistente enquadra-se nessa classe de irracionalidade, segundo Granger.
Enfim, a terceira categoria compõe-se do irracional como renúncia. Constata-se, nesse caso, uma recusa do racional, como ocorre, para exemplificar, quando o cientista foge do controle padrão de cientificidade e atribui aos objetos que investiga propriedades que contradizem o próprio estatuto da ciência. A fraca racionalidade da cosmologia contemporânea, a teoria fundamental de Eddington e a ordem implicada de Bohm constituem exemplos desse tipo de irracionalidade.
Na conclusão do livro, Granger resume sua concepção do irracional, confrontando-a com uma caracterização positiva do racional, especialmente do conhecimento racional: neste não há contradição, no sentido de que o encadeamento racional jamais é interrompido por impossibilidade de aplicar as regras previamente admitidas.

A paraconsistência
Granger efetua uma análise crítica bem interessante da paraconsistência. A lógica paraconsistente pode ser encarada como instrumento de manipulação de, por assim dizer, estruturas contraditórias; em particular, há pensadores que acham que o mundo ou que nosso conhecimento do mundo têm que ser inconsistentes (contraditórios). Essa posição nos obriga a aceitar a lógica paraconsistente com certa dignidade ontológica. Mas também ela pode ser concebida como método formal para tratar logicamente de estruturas linguísticas inconsistentes, sem compromisso com nenhuma visão filosófica determinada.
Granger percebe nitidamente essa alternativa ao afirmar: "Quanto à paraconsistência, erigida em sistemas de raciocínio pelos lógicos, ela nos pareceu, afinal de contas, organizando certas etapas do pensamento objetivo, ser apenas um recurso provisório para o racional". Parecem confirmar as intuições de Granger as recentes aplicações das lógicas paraconsistentes nos mais variados ramos do saber: filosofia, física, direito, robótica, engenharia de produção, reconhecimento automático de assinaturas, controle de semáforos, controle de trânsito, distribuição de energia em grandes usinas, bases de dados, computação flexível, teoria da mudança de crenças etc.
Na verdade, somos discípulo de Granger e ele é, assim, uma espécie de mentor da paraconsistência, em virtude da amplitude e versatilidade de suas idéias. Aliás, seu mestre Bachelard inclui-se entre os inspiradores da atual liberdade que impera no domínio da lógica, acima de tudo pelo seu livro "La Philosophie du Non" (1940). Qualquer pessoa culta poderá tirar proveito e terá prazer em ler o livro "O Irracional".
Em geral a tradução é boa, embora sejam necessárias correções a respeito de termos técnicos bem estabelecidos em certos domínios especializados. Na parte dedicada à perspectiva, por exemplo, convém traduzir "rebattre" por "rebater", "rebattement" por "rebatimento".


Newton C. A. da Costa é professor de lógica do departamento de filosofia da USP e autor, entre outros, de "O Conhecimento Científico" (Discurso Editorial).

Newton C.A. da Costa é professor do departamento de filosofia da USP.
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