Rosalind Krauss percorre a história da escultura moderna, do século 19 ao anos 70
A obsessão da passagem
IOLE DE FREITAS
Elaborada com recursos modestos diante da importância do livro, com qualidade de papel e fotolitos que não facilitam a visualização dos conceitos plásticos discutidos, e ainda com tradução pouco precisa, a versão brasileira está muito distante da aprimorada edição da Thames and Hudson (Londres, 1977).
Preparado para os estudantes do Massachusetts Institute of Technology (MIT), o estudo demonstra grande eficácia didática ao percorrer os mais instigantes momentos da escultura moderna, desde o século 19 até a década de 70. Com ousadia provocadora, pontua as grandes rupturas que impulsionaram as inovações dos processos escultóricos. Sustenta que a obra de Rodin (1840-1917) já detinha elementos da relação corpo e movimento que mais tarde foram elaborados por Robert Smithson (1938-1973) e Michael Heizer (1944), nos trabalhos de "land art" que realizaram no final dos anos 60 e início dos 70.
Partindo de "Spiral Jetty", de Smithson, e "Duplo Negativo", de Heizer, mediante fina análise a autora explicita um dos conceitos mais ricos da arte contemporânea: a idéia de "passagem", que, no dizer de Krauss, "é uma obsessão da escultura moderna". Assim, demonstra como imagens de "passagens", potencializadas em trabalhos como "Spiral Jetty", operam a "transformação da escultura -de um veículo estático e idealizado num veículo temporal e material".
A fluência deste pensamento relaciona momentos distintos da arte moderna, desenvolvidos em capítulos didaticamente dispostos. Tratam do tempo narrativo no relevo "A Marselhesa", de Rude (1784-1855), e da ausência de coerência narrativa em "A Porta do Inferno", de Rodin; da euforia da velocidade e do horror ao passado, aclamados no "Manifesto Futurista"; da reelaboração por Tatlin das colagens e guitarras de Picasso, soltando-as no espaço real; do denominador comum entre a obra refinada de Brancusi e a de Duchamp, tão agressiva e improvisada do ponto de vista formal; da evidência surrealista das esculturas de Giacometti e Man Ray; dos elementos curvos das esculturas de mesa de Anthony Caro que se organizam, prolongando-se para além da borda e despencando até um ponto inferior.
A queda súbita de uma coluna de 2m40 de altura com 60 cm de lado, colocada num palco, obra do escultor Robert Morris, abre um capítulo dedicado aos balés mecânicos, enquanto a análise dos trabalhos minimalistas de Carl André e Donald Judd encontra resistência por parte do crítico Michael Fried, forte interlocutor de Krauss, que no texto "Arte e Objetude" (1967) declara ainda encontrar resíduos de teatralidade na "minimal".
Adensando a discussão teórica, surgem observações sobre a relação tempo e espaço. O "Duplo Negativo" -uma terraplanagem escultural de Heizer, criada no deserto de Nevada- explicita esta questão. De dimensões enormes, com duas fendas de 30 m de comprimento e 12 m de profundidade feitas em duas mesetas, este trabalho determina que a única maneira de experimentá-lo é estar dentro dele, sendo no entanto impossível habitar o seu centro, já que corresponde ao vazio do desfiladeiro entre as duas mesetas. "Podemos apenas nos colocar em um dos espaços fendidos e olhar para a frente em relação ao outro. Na verdade, é sempre olhando para o outro que podemos formar uma imagem no espaço no qual nos encontramos." No "Spiral Jetty" (1970), a grande espiral de basalto e areia que penetra as águas do Grande Lago Salgado de Utah descreve um percurso que, ao ser executado, "evoca a reação vertiginosa ao se perceber descentralizado (...) em meio à vasta extensão de água e céu".
O agudo raciocínio do capítulo "Espaço Analítico: Futurismo e Construtivismo" -no qual as diferenças conceituais e plásticas existentes entre o "Desenvolvimento de uma Garrafa" (1912), de Boccioni, e o "Relevo de Canto" (1915), de Tatlin, são pontuadas com rigor- permite que ele seja estendido a outras relações envolvendo produções recentes. É o caso da comparação estabelecida entre a volumetria do projeto de Frank O. Gehry para o Museu Guggenheim de Bilbao (1997) e a "Garrafa", de Boccioni, citada por C. Van Bruggen num belíssimo livro ("Frank O. Gehry: Guggenheim Museum Bilbao", 1997) sobre este projeto.
Tal aproximação, feita entre outros pelo escultor Richard Serra, não encontrou eco junto ao arquiteto. Seria difícil decidir a questão, sem a contribuição teórica de Krauss. Para esta, há na obra de Boccioni a evidência de um "eixo central que organiza a obra em torno de um núcleo imaginado", segregando-a "do espaço real do mundo em que efetivamente nos movimentamos, para instalá-la firmemente em algo que somente pode ser caracterizado por um espaço conceitual". Krauss contrapõe a isto o "Relevo de Canto", de Tatlin, "uma obra que apresenta uma continuidade em relação ao espaço do mundo e depende deste para ter um significado".
Prosseguindo, pondera que a base da obra do futurista italiano, fundida em bronze como todo o corpo da escultura, isola-a do espaço natural, enquanto a obra de Tatlin "relaciona-se com um ambiente real, mais ou menos como a proa de uma embarcação cortando o volume da água, é compreendida em termos de sua dupla relação com o volume energizado do qual é a extremidade principal e com o meio resistente do oceano que cede ante seu avanço intencional".
Esta constatação, acentuando a qualidade antiidealista da obra do vanguardista soviético -despojada de um núcleo centralizador-, remete à estrutura do projeto arquitetônico de Bilbao, opondo-o ao teor idealista da "Garrafa", com seu centro vazio, desativado, mudo.
No projeto de Gehry, a turbulência dos volumes, que organizam o espaço do atrium, se estende num continuum -digno do pensamento de Deleuze em seu "Corpo sem Órgãos"-, criando salas de exposição em forma de quase-folhas ou proas de embarcações que, no dizer do próprio arquiteto, ancoram-se na trama urbana da cidade, invadindo as ruelas, a ponte e o rio. Tais salas habitam o espaço da cidade, como o relevo de Tatlin, que se situa no canto definido pelos dois planos de parede, habita o espaço do mundo.
Gehry lança seus volumes amolecidos, revestidos de titânio, num movimento descentralizado, e inicialmente verticalizado, para logo os contorcer e espalhar, descendo em direção ao rio como pontas duplas de embarcações. São chapas de titânio, de um terço de milímetro de espessura, que vibram e soam a cada lufada de vento no rio, em Bilbao. Cultura dos materiais? Tatlin? Construtivismo russo?
Muito mais: presença atualizada de uma sensibilidade estética que se desloca em passagens, vitais na cultura contemporânea. Seja se deslocando na "Spiral Jetty", no "Duplo Negativo", ou no espaço constituído pelas tensões existentes entre os volumes de Frank O. Gehry e a organização plástica das obras expostas no Museu, o sujeito (autor ou espectador) apreende a dimensão espaço-temporal enunciada por Krauss em seu livro.
Enfim, apesar de vários conceitos desse livro terem sido reavaliados e reelaborados pela autora em seus últimos textos (ver, por exemplo, "L'informe", com Yve-Alain Bois, Centro George Pompidou, 1996), ele continua a nos provocar.
Caminhos da Escultura Moderna
Rosalind E. Krauss Tradução: Julio Fischer Martins Fontes (Tel. 011/239-3677) 380 págs., R$ 37,50
Iole de Freitas é artista plástica.