A dialética de Marx
Gênese e Estrutura de "O Capital"
Roman Rosdolsky
Tradução: César Benjamin
Ed. Uerj/ Contraponto
(Tel. 0/xx/21/ 2544-0206)
624 págs., R$ 48,00
JORGE GRESPAN
Poucas vezes na história das ciências humanas um livro alcançou uma aceitação comparável à que mereceu "Gênese e Estrutura de "O Capital'". Trata-se, a rigor, de um comentário de grande fôlego sobre textos escritos por Marx como preparação de sua obra máxima, que viriam a público somente em 1939. Conhecida desde então abreviadamente como "Grundrisse", primeira palavra de seu título em alemão, a edição desses textos recebeu pouca atenção, até que Rosdolsky percebesse sua importância estratégica: ela poderia esclarecer espinhosos problemas metodológicos presentes na crítica marxiana ao capitalismo, especialmente no que tange à relação da dialética materialista com a hegeliana.
De fato, os "Grundrisse" surgiram da retomada dos estudos de economia política por Marx entre 1857 e 1858, que buscava submeter essa disciplina a uma crítica interna ainda mais aguda por meio da reapresentação dialética do seu conteúdo. Como pretendia enviar os manuscritos ao editor só depois de revisá-los minuciosamente, Marx permitiu-se uma grande liberdade de expressão, revelando articulações conceituais insuspeitadas e uma proximidade surpreendente à "Lógica" de Hegel, muito maior do que o simples flerte mais tarde confessado.
Projeto bem-sucedido
Tal proximidade representa, entretanto, um problema razoavelmente complicado. Os processos lógicos da dialética, principalmente o caráter constitutivo por ela atribuído à negação, estão assegurados, em Hegel, por pressupostos idealistas recusados enfaticamente por Marx. Por isso, há quem afirme ainda hoje a impossibilidade de uma dialética de caráter materialista. O livro de Rosdolsky contraria frontalmente esse ceticismo, demonstrando que o projeto de Marx foi bem-sucedido.
Mas talvez o grande mérito da crítica contida nessa demonstração é ser ela especialmente eficaz na direção inversa. Para Rosdolsky, o que levou os céticos a abandonar o projeto de uma dialética materialista fez que também marxistas dogmáticos a simplificassem: as duas posições aparentemente opostas padecem de uma apreensão insuficiente do método e da arquitetônica da obra de Marx. Ambas as perspectivas são comentadas no livro, em rápidos e eficientes ensaios que superam definitivamente objeções tradicionais de críticos do marxismo, bem como algumas interpretações consagradas da "vulgata".
Essa dupla limpeza de terreno é realizada a partir do estudo detalhado dos "Grundrisse", realizado exemplarmente nas cinco partes centrais do livro. Mediante a constante comparação do texto de 1858 com o das versões posteriores da crítica da economia política, até chegar à de "O Capital", é possível não só perceber o processo de elaboração dos conceitos, mas também esclarecer progressiva e regressivamente a complexa trama de sua exposição. Nisso se realiza a dupla hipótese do livro -absolutamente correta, diga-se de passagem. Em primeiro lugar, a forma não pode ser indiferente ao seu conteúdo, mas deve dialeticamente explicá-lo, de modo que o entendimento da estrutura da obra de Marx permite entender problemas de conteúdo. Em segundo lugar, a estrutura se constituiu ao longo do tempo, por meio de sucessivas tentativas e eventuais mudanças de projeto.
Portanto, às etapas da estruturação, enquanto forma de exposição categorial, corresponde uma gênese, enquanto busca da forma adequada à exposição. Por isso Rosdolsky dedica toda a primeira parte do livro e várias referências posteriores à discussão dessa gênese, recuperada por pesquisas em arquivo e pela análise das diferenças e semelhanças entre os textos examinados. Quando se estende nesses detalhes, não o faz por preciosismo ou exegese erudita e vazia, mas porque o processo em que se tramam os conceitos revela a forma precisa de sua articulação na obra final e, daí, explica sutilezas fundamentais em seu conteúdo.
Como resultado exemplar desse método bem-sucedido, não se pode deixar de mencionar o conceito de "capital em geral", descoberto por Rosdolsky nos "Grundrisse". Essa expressão havia passado despercebida até então, apesar de frequentemente empregada por Marx. Com ela se apresenta uma primeira definição de capital, fundamento das que depois virão enriquecer e tornar mais concreto o seu significado: é o capital determinado de acordo com a forma mesma em que se constitui enquanto capital, isto é, mediante sua relação com o trabalho assalariado. Só depois, e com base nessa relação, é que se pode avançar para as determinações mais complexas, mas derivadas, que consideram a concorrência entre os vários capitais individuais existentes na sociedade, pois a mútua exclusão desses capitais pode ser entendida apenas como manifestação da exclusão mais profunda, constitutiva, do trabalho assalariado pelo "capital em geral".
Munido desse conceito, Rosdolsky diferencia na estrutura de "O Capital" uma etapa inicial que corresponde a este primeiro nível "geral" e outra em que já se trata da competição intercapitalista e das suas consequências próprias. Teria sido o desconhecimento dessa distinção que levou a confusões e polêmicas estéreis, dentro e fora da tradição marxista, apontadas pelo autor. Seria possível inclusive contar parte da história do marxismo a partir desses equívocos, como a controvérsia sobre os mercados e sobre as equações de reprodução do capital, nas primeiras décadas do século 20, que geraram interpretações escatológicas ou, ao contrário, harmonicistas, de enorme repercussão política. Pode-se também lançar nova luz a antigos e recorrentes debates sobre alguns pontos difíceis da teoria econômica de Marx, como o papel do valor de uso, o problema do trabalho complexo ou a tendência à queda da taxa média de lucro.
A tudo isso procede diligentemente Rosdolsky. Por meio da discussão das formas assumidas pela exposição categorial, procura sempre esclarecer complexas questões de conteúdo, uma vez que busca a forma específica pela qual o próprio objeto se desdobra, revelando suas contradições constitutivas. Aí percebe-se muito bem a base da crítica de Marx ao capitalismo e à economia política, assim como da retomada da dialética hegeliana de uma perspectiva materialista.
O único problema é que falta na dialética reivindicada determinar claramente o lado negativo. É evidente que Rosdolsky trata das crises econômicas como o oposto da acumulação de capital, mas ainda assim elas não chegam a seguir todos os passos da trajetória pela qual o conceito de capital enriquece gradativamente seu conteúdo, correspondendo de fato ao seu oposto.
Fiel à sua descoberta do plano de pesquisa traçado por Marx em 1857, ele acredita que o tema das crises só seria definitivamente tratado num eventual livro sobre o mercado mundial, que completaria a obra marxiana e que jamais foi escrito. Por isso, as indicações anteriores sobre o tema poderiam ser somente "lacunares" e, mais ainda, a definição mesma de crise se restringe para ele à realização do valor do capital na venda das mercadorias produzidas, sem incluir as outras formas de desvalorização do capital sucessivamente descritas ao longo dos "Grundrisse" e de "O Capital". Essa restrição semântica relega a crise a um momento específico do processo capitalista e impede que este seja caracterizado como tendo nela o oposto que o acompanha em todos os momentos. Fica comprometida então a própria dialética materialista.
De qualquer modo, o livro que o público brasileiro agora tem em mãos é crucial para a reflexão sobre a obra de Marx e sobre o próprio capitalismo, em sua atual crise. É um desses divisores de águas na história do pensamento. Só é excessivamente otimista quando afirma que o estudo dos "Grundrisse" nos dispensaria de seguir o conselho de Lênin de ler "toda a "Lógica'" hegeliana. Diante dos problemas da dialética, uma boa leitura de Hegel ainda parece indispensável...
Jorge Grespan é professor de história na USP e autor de "O Negativo do Capital" (Hucitec).