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Daniel Aarão Reis Filho - 92 - Janeiro de 2003
A cruz, a espada e o partido
Foto da capa do livro Em guarda contra o perigo vermelho
Em guarda contra o perigo vermelho
Autor: Rodrigo Patto Sá Motta
Editora: Perspectiva - 297 páginas
Foto do(a) autor(a) Daniel Aarão Reis Filho

Seres desvairados, degenerados, vinham para causar sofrimento, fome, miséria e morte. Queriam escravizar o país em nome de interesses estrangeiros, de um verdadeiro império do mal, a União Soviética, reino da degradação moral, da opressão e da ineficiência. Uma gente insensata, covarde e pérfida, uma horda asiática, demencial, os comunistas brasileiros, chefiados por um cavaleiro da desesperança e do apocalipse, um Frankestein: Luiz Carlos Prestes.
Era preciso muito cuidado porque os agentes vermelhos não atacavam em campo aberto, nem defendiam suas idéias com honestidade. Infiltravam-se. Como bacilos. Deslizavam sub-repticiamente, como serpentes. Com seus largos tentáculos, como polvos, aproximavam-se solertes e atacavam, como lobos ou abutres, as pessoas honradas, ordeiras e trabalhadoras que constituíam a imensa maioria do povo brasileiro.
Para os comunistas, todos os métodos eram lícitos. Estavam sempre dispostos a tudo: a mentir, a trair, a assassinar. Para alcançar seus objetivos não hesitavam em lançar mão dos recursos mais sórdidos e condenáveis: engano, violência, tortura, destruição.
Traços e tintas fortes, às vezes caricaturais, literatura de combate, de choque, provocando a desconfiança, a inquietação, o medo, com frequência o pânico, eis as balizas que norteavam as campanhas anticomunistas em nosso país, pesquisadas e estudadas neste trabalho pioneiro.
O imaginário e a iconografia, às vezes, parecem pertencer a um mundo pretérito, longe no tempo, mas há muito poucas décadas, e durante décadas, foram capazes de mobilizar os espíritos, "armá-los" ou "rearmá-los", política e moralmente, prepará-los para enfrentamentos considerados decisivos, em que se bateriam escalas de valores distintas, civilizações antagônicas.
Numa sociedade convertida em arena, três instituições das mais estruturadas e tradicionais em nosso país. Do lado da ordem e dos valores cristãos, a Igreja Católica e as Forças Armadas, a cruz e a espada. Do lado da subversão e de uma outra escala de valores, alternativa, o Partido Comunista, a foice e o martelo.
Insurgindo-se contra os hábitos correntes dos estudos acadêmicos, que tendem em nosso país a privilegiar os derrotados e os deserdados da história, fazendo triunfar nas batalhas da memória os que perderam no terreno das lutas sociais e políticas, o autor deste livro ilumina os que preservaram e impuseram a ordem, os que venceram, tentando compreender o discurso que empregaram com êxito, persuadindo e convencendo as gentes, sobretudo suas técnicas e táticas de propaganda.
Em guarda, sempre em guarda, alertas e vigilantes contra o perigo vermelho. Desde os primórdios, quando triunfou a revolução de 1917, e ao longo dos anos 20, a propaganda anticomunista vai assumindo características específicas, encorpando, constituindo-se como núcleo essencial da cultura política nacional. Nos anos 30, no fogo cruzado da radicalização das propostas políticas (corporativismo/ fascismo/ liberalismo/ comunismo), o anticomunismo ganharia consistência, firmando-se como tradição, alimentada em matrizes doutrinárias de grande peso histórico: o catolicismo, o nacionalismo e o liberalismo. (Não seria o caso de considerar outras matrizes igualmente fundamentais, como o corporativismo, apenas aflorado no contexto do nacionalismo, e o trabalhismo, que embalou enquanto existiu uma vertente decididamente anticomunista?)
Dois grandes momentos históricos serão então escolhidos para uma análise mais detalhada.
Uma primeira conjuntura: as turbulências de 1935-1937, marcadas por episódios que alimentariam definitivamente o anticomunismo: a fundação da Ação Integralista Brasileira (AIB), em 1932, e a da Aliança Nacional Libertadora (ANL), em 1935. A eclosão da insurreição liderada pelos comunistas, em novembro desse último ano. A construção da mitologia da Intentona Comunista, reiterada por décadas de comemorações ritualísticas. E, em 1937, fechando um tempo, a consagração religiosa da repressão -a encíclica papal "Divinis Redemptoris" e a sinistra manobra que urdiu o Plano Cohen, legitimando o golpe do Estado Novo, instaurando uma longa noite ditatorial de quase oito anos.
A segunda conjuntura selecionada é a de 1961-1964, talvez o mais rico e complexo período de enfrentamentos sociais e políticos que a república brasileira conheceu -o contexto da guerra fria, radicalizando-se profundamente, na América ao sul do rio Grande, após o triunfo da revolução cubana. O filme começa agora a passar veloz: da posse à renúncia de Jânio Quadros, os anos conturbados de Jango -a investidura questionada, o parlamentarismo híbrido, as greves operárias, a denúncia crescente da baderna, as mobilizações populares, as marchas da família com Deus e pela liberdade, a sociedade rachando, fendida, a miríade de organizações de direita, empenhadas na propaganda anticomunista, a aproximação do desfecho e o golpe em defesa da democracia, matando a democracia para salvá-la e, com ela, a pátria, a família e os valores cristãos.
O anticomunismo, sustenta o autor, foi a principal linha de argumentação, o esteio, o cimento, das complexas e contraditórias frentes políticas e sociais que desfecharam os golpes de 1937 e 1964. Só por isso já mereceria ganhar relevância histórica, credenciando-se como objeto de estudo e reflexão.
Além disso, e ao contrário do que muitos sustentaram e ainda sustentam, não se tratou de uma farsa ou de uma operação de fachada, embora engodo houvesse (o Plano Cohen) e não faltassem manipulações oportunistas (a indústria do anticomunismo e a figura emblemática de Adhemar de Barros, aliando-se e anatematizando os comunistas segundo seus cálculos políticos e conveniências eleitorais).
O anticomunismo, mais do que tudo, exprimiu profundas convicções e um medo autêntico, o de ver ruir um mundo de referências, valores civilizacionais. Por outro lado, e para além dos exageros próprios da luta política e/ou dos delírios de publicistas e políticos demagógicos, não se articulou contra um fantasma, mas contra uma ameaça real e concreta, temível.
No limiar de um novo milênio, conclui o autor, o anticomunismo perdeu o viço, parece uma flor fanada (como desbotado parece o vermelho de seu inimigo histórico, o comunismo). Mas as mentalidades eivadas de conceitos e preconceitos, de valores e escolhas, que se deixaram seduzir durante tantas décadas por suas sirenas, metáforas e imprecações, terão igualmente desaparecido? Ou vicejam ainda, enrustidas, traduzidas por outros códigos, exprimindo-se em outras linguagens, como que hibernando, à espera, à espreita?


Daniel Aarão Reis Filho é professor de história contemporânea na Universidade Federal Fluminense.

Daniel Aarão Reis Filho é professor de história contemporânea na Universidade Federal Fluminense
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